quarta-feira, 17 de abril de 2019

4457) Gene Wolfe, 1931-2019 (17.4.2019)




Outro dos grandes da ficção científica em todos os tempos nos deixou esta semana. Pouco conhecido no Brasil (não lembro da tradução de nenhum livro dele aqui), Gene Wolfe era tido nos EUA como um autor “difícil”, pela sua erudição e pelo estilo elíptico, cheio de alusões.

Ele gostava de obras sequenciais, uma série de romances que vão pouco a pouco ampliando um ambiente vasto e heterogêneo, com surpresas e revelações em cada capítulo. Cada livro era como a temporada inteira de uma série de TV, terminando numa encruzilhada que nos deixava ansiosos para ler logo o próximo.

Era um narrador de aventuras em larga escala, mas isso não o impedia de produzir contos curtos de grande impacto e originalidade.

A vida, afinal, não é uma coisa elevada, e sob muitos ângulos ela é exatamente o contrário da pureza. Sou mais sábio agora, embora não muito mais velho, e eu sei que é melhor ter todas as coisas, as mais elevadas e as mais rasteiras, do que apenas as coisas superiores.
(The Shadow of the Torturer, p. 223)

Tinha um temperamento lúdico, brincalhão. Um dos seus romances se intitula Pandora, by Holly Hollander, o que fez dezenas de redatores e diagramadores imaginar que Holly Hollander era a autora do livro. Sua coleção de contos mais famosa chama-se The Island of Doctor Death and Other Stories, and other stories, porque “The Island of Doctor Death and Other Stories” é o título da primeira história do volume.




Aliás, neste livro há três contos que são recriações literariamente sofisticadas dos contos de aventura e terror dos pulp magazines. Os três se intitulam respectivamente “The Island of Doctor Death and Other Stories”, “The Death of Dr. Island” e “The Doctor of Death Island”.

Tive a sensação, que tantas vezes experimentei ao conversar com pessoas idosas, de que as palavras ditas por ele e as palavras que eu ouvia eram coisas diferentes, e de que havia em sua fala uma profusão de insinuações, de pistas e de implicações tão invisíveis para mim quanto seu hálito, como se o Tempo fosse uma espécie de branco espírito que se interpunha entre nós e que com suas mangas pendentes apagava, antes que eu ouvisse, a maior parte do que tinha sido falado.
(The Sword of the Lictor, p. 212)

Gene Wolfe nasceu em Nova York, estudou no Texas, lutou na Guerra da Coréia, formou-se em engenharia. Durante muitos editou a revista Plant Engineering (“Engenharia de Indústrias”), e quando foi homenageado em 1984 numa convenção de FC lançou uma coletânea de contos intitulada Plan[e]t Engineering. Aliás, ele é um dos inventores da máquina que fabrica a batata Pringles.


Li pouca coisa da obra dele, que é vasta. O romance The Fifth Head of Cerberus (1972) é um tríptico de histórias que se relacionam distantemente umas com as outras, mas cada vez que a gente volta e relê um trecho vai descobrindo novas alusões e costurando uma rede vertiginosa de significados. As três histórias ocorrem num planeta de colonização francesa, e envolvem clonagem, pesquisas antropológicas, extermínio de aborígenes.

E essa garota com quem você sonhou (tu me perguntas), como era ela? Envolta em sombras, mas era como a descrevi. Nua. Nenhuma mulher é capaz de me excitar enquanto estiver usando uma simples nesga de vestimenta; e certa vez em Roncesvaux, quando tentei externar minha paixão por uma garota que se recusava a despir uma espécie de colete com as costas nuas, fracassei miseravelmente. Queria explicar a ela o que havia de errado, mas receava que ela risse de mim; por fim consegui falar, e ela riu, mas não como eu temera, e me contou sobre um homem que a fez usar um anel (que ele trouxe no bolso, e depois retirou do dedo dela assim que não foi mais necessário, pois era valioso), pois nada conseguia sem ele; (e desde então ouvi contar de outro homem em Sainte Croix que, incapaz de penetrar os muros de um convento, vestiu uma mulher com o hábito das freiras apenas para despi-la em seguida). Depois que ambos nos divertimos com essas histórias, ela fez o que eu lhe pedira, e descobri que usava aquele colete para ocultar uma cicatriz – que cobri de beijos.
(The Fifth Head of Cerberus, p. 234)

Sua obra mais famosa é a série The Book of The New Sun, que consta de quatro romances: The Shadow of the Torturer (1980), The Claw of the Conciliator (1981), The Sword of the Lictor (1982) e The Citadel of the Autarch (1983). É uma história complexa situada num mundo que parece uma ambientação de fantasia heróica, com espadas, cavalos, carruagens, mas que aos poucos começamos a situar no futuro remoto – é uma Terra que depois de viajar pelo espaço regrediu ao medievalismo. Uma das melhores (e mais "literárias") séries de FC que já li.


Há um quinto volume, The Urth of the New Sun, (1987) que é uma espécie de “adendo” à série principal.

No meu livro de poemas Os Martelos de Trupizupe (1984) fiz uma citação de um belo trecho dessa série, que tem entre outras coisas um fundo religioso (Wolfe era um autor católico, numa FC norte-americana povoada por protestantes e agnósticos).

No último livro da série, o personagem vem numa longa caminhada, e chega a uma praia, conduzindo consigo um Espinho que é considerado, na religião lá deles, um objeto sagrado, uma espécie de relíquia.  Ele faz, por algum motivo, uma troca deste Espinho por outro; e é neste momento que ele tem uma revelação sobre o verdadeiro significado daquele símbolo religioso que ele carrega e protege durante tanto tempo:

A idéia que me atingiu, ali na praia – e me atingiu de fato, fazendo-me mesmo cambalear – foi que se o Eterno Princípio residia naquele Espinho recurvo que eu trouxera ao pescoço durante tantas léguas, e se ele agora residia no novo Espinho que eu acabava de colocar ali, então ele residia também em todas as coisas, em todos os espinhos de todos os arbustos, em todas as gotas dágua do mar.  O Espinho era uma Garra sagrada porque todos os espinhos eram Garras sagradas; a areia em minhas botas era areia sagrada, porque vinha de uma praia de areias sagradas.  Todas as coisas tinham se aproximado do Pan-Criador e O tinham tocado, porque todas as coisas tinham brotado de Sua mão.  O mundo inteiro era uma relíquia.  E eu arranquei minhas botas, que tinham viajado comigo desde tão longe, e as arremessei às ondas, porque eu não devia pisar calçado em solo santo.
(The Citadel of the Autarch, p. 258)

O “Livro do Novo Sol” mereceu um glossário-estudo de Michael Andre-Driussi, Lexicon Urthus (1994), que se tornou uma referência obrigatória para qualquer estudioso da obra, bem como para seus tradutores. Os quatro romances ganharam um total de 7 prêmios e 16 indicações.


A obra de Wolfe é de um perfil único na FC norte-americana. Por um lado, ele era um engenheiro de formação, um articulador rigoroso de efeitos, com um olho sempre atento para a plausibilidade dos cenários delirantes que concebia. Por outro, era um humanista da velha escola européia e posso compará-lo a Jorge Luís Borges e a G. K. Chesterton, pela riqueza e  variedade de referências culturais. E tinha, como tantos garotos de sua idade, uma formação de leitor criado na jângal inesgotável da pulp fiction dos anos 1930-40-50.

Isso que vocês chamam de “nada” é o que mantém todas as coisas separadas umas das outras. Quando ele desaparecer, todos os mundos nascerão.
(The Fifth Head of Cerberus, p. 95)







Um comentário:

Daniel disse...

Bráulio
Excelente texto. Já tinha lido mas não conseguia comentar pois o proxy da empresa onde trabalho barrava. Acho que foi a única homenagem feita ao Wolfe por um autor de grande nível no Brasil ou mesmo dentro da imprensa. Sua traduçao do texto do Wolfe já se tornou clássica. Espero que algum dia você possa traduzir todo o Livro do Novo Sol.

ps Estou na torcida de mais livros de FC escritos por você.