Outro dos grandes da ficção científica em todos os tempos
nos deixou esta semana. Pouco conhecido no Brasil (não lembro da tradução de
nenhum livro dele aqui), Gene Wolfe era tido nos EUA como um autor “difícil”,
pela sua erudição e pelo estilo elíptico, cheio de alusões.
Ele gostava de obras sequenciais, uma série de romances
que vão pouco a pouco ampliando um ambiente vasto e heterogêneo, com surpresas
e revelações em cada capítulo. Cada livro era como a temporada inteira de uma
série de TV, terminando numa encruzilhada que nos deixava ansiosos para ler
logo o próximo.
Era um narrador de aventuras em larga escala, mas isso
não o impedia de produzir contos curtos de grande impacto e originalidade.
A vida, afinal, não é uma coisa elevada, e sob muitos ângulos ela é exatamente o contrário da pureza. Sou mais sábio agora, embora não muito mais velho, e eu sei que é melhor ter todas as coisas, as mais elevadas e as mais rasteiras, do que apenas as coisas superiores.
(The Shadow of the Torturer, p. 223)
Tinha um temperamento lúdico, brincalhão. Um dos seus
romances se intitula Pandora, by Holly
Hollander, o que fez dezenas de redatores e diagramadores imaginar que
Holly Hollander era a autora do livro. Sua coleção de contos mais famosa
chama-se The Island of Doctor Death and
Other Stories, and other stories, porque “The Island of Doctor Death and
Other Stories” é o título da primeira história do volume.
Aliás, neste livro há três contos que são recriações
literariamente sofisticadas dos contos de aventura e terror dos pulp magazines. Os três se intitulam respectivamente “The
Island of Doctor Death and Other Stories”, “The Death of Dr. Island” e “The
Doctor of Death Island”.
Tive a sensação, que tantas vezes experimentei ao conversar com pessoas
idosas, de que as palavras ditas por ele e as palavras que eu ouvia eram coisas
diferentes, e de que havia em sua fala uma profusão de insinuações, de pistas e de
implicações tão invisíveis para mim quanto seu hálito, como se o Tempo fosse
uma espécie de branco espírito que se interpunha entre nós e que com suas
mangas pendentes apagava, antes que eu ouvisse, a maior parte do que tinha sido
falado.
(The
Sword of the Lictor, p. 212)
Gene Wolfe nasceu em Nova York, estudou no Texas, lutou
na Guerra da Coréia, formou-se em engenharia. Durante muitos editou a revista Plant Engineering (“Engenharia de
Indústrias”), e quando foi homenageado em 1984 numa convenção de FC lançou uma
coletânea de contos intitulada Plan[e]t
Engineering. Aliás, ele é um dos inventores da máquina que fabrica a batata
Pringles.
Li pouca coisa da obra dele, que é vasta. O romance The Fifth Head of Cerberus (1972) é um
tríptico de histórias que se relacionam distantemente umas com as outras, mas
cada vez que a gente volta e relê um trecho vai descobrindo novas alusões e
costurando uma rede vertiginosa de significados. As três histórias ocorrem num
planeta de colonização francesa, e envolvem clonagem, pesquisas antropológicas,
extermínio de aborígenes.
E essa garota com quem você sonhou (tu me perguntas), como era ela? Envolta
em sombras, mas era como a descrevi. Nua. Nenhuma mulher é capaz de me excitar
enquanto estiver usando uma simples nesga de vestimenta; e certa vez em
Roncesvaux, quando tentei externar minha paixão por uma garota que se recusava
a despir uma espécie de colete com as costas nuas, fracassei miseravelmente.
Queria explicar a ela o que havia de errado, mas receava que ela risse de mim;
por fim consegui falar, e ela riu, mas não como eu temera, e me contou sobre um
homem que a fez usar um anel (que ele trouxe no bolso, e depois retirou do dedo
dela assim que não foi mais necessário, pois era valioso), pois nada conseguia
sem ele; (e desde então ouvi contar de outro homem em Sainte Croix que, incapaz
de penetrar os muros de um convento, vestiu uma mulher com o hábito das freiras
apenas para despi-la em seguida). Depois que ambos nos divertimos com essas
histórias, ela fez o que eu lhe pedira, e descobri que usava aquele colete para
ocultar uma cicatriz – que cobri de beijos.
(The Fifth Head of
Cerberus, p. 234)
Sua obra
mais famosa é a série The Book of The New
Sun, que consta de quatro romances: The
Shadow of the Torturer (1980), The
Claw of the Conciliator (1981), The
Sword of the Lictor (1982) e The
Citadel of the Autarch (1983). É uma história complexa situada num
mundo que parece uma ambientação de fantasia heróica, com espadas, cavalos,
carruagens, mas que aos poucos começamos a situar no futuro remoto – é uma
Terra que depois de viajar pelo espaço regrediu ao medievalismo. Uma das melhores (e mais "literárias") séries de FC que já li.
Há um quinto volume, The
Urth of the New Sun, (1987) que é uma espécie de “adendo” à série
principal.
No meu livro de poemas Os Martelos de Trupizupe (1984) fiz uma citação de um belo trecho
dessa série, que tem entre outras coisas um fundo religioso (Wolfe era um autor
católico, numa FC norte-americana povoada por protestantes e agnósticos).
No último livro da série, o personagem vem numa longa caminhada, e chega
a uma praia, conduzindo consigo um Espinho que é considerado, na religião lá
deles, um objeto sagrado, uma espécie de relíquia. Ele faz, por algum motivo, uma troca deste
Espinho por outro; e é neste momento que ele tem uma revelação sobre o
verdadeiro significado daquele símbolo religioso que ele carrega e protege
durante tanto tempo:
A idéia que me atingiu, ali na praia – e me atingiu
de fato, fazendo-me mesmo cambalear – foi que se o Eterno Princípio residia
naquele Espinho recurvo que eu trouxera ao pescoço durante tantas léguas, e se
ele agora residia no novo Espinho que eu acabava de colocar ali, então ele
residia também em todas as coisas, em todos os espinhos de todos os arbustos,
em todas as gotas dágua do mar. O
Espinho era uma Garra sagrada porque todos os espinhos eram Garras sagradas; a
areia em minhas botas era areia sagrada, porque vinha de uma praia de areias
sagradas. Todas as coisas tinham se
aproximado do Pan-Criador e O tinham tocado, porque todas as coisas tinham
brotado de Sua mão. O mundo inteiro era
uma relíquia. E eu arranquei minhas
botas, que tinham viajado comigo desde tão longe, e as arremessei às ondas,
porque eu não devia pisar calçado em solo santo.
(The Citadel of the Autarch, p.
258)
O “Livro do Novo Sol” mereceu um glossário-estudo de
Michael Andre-Driussi, Lexicon Urthus
(1994), que se tornou uma referência obrigatória para qualquer estudioso da
obra, bem como para seus tradutores. Os quatro romances ganharam um total de 7 prêmios e 16 indicações.
A obra de Wolfe é de um perfil único na FC
norte-americana. Por um lado, ele era um engenheiro de formação, um articulador
rigoroso de efeitos, com um olho sempre atento para a plausibilidade dos
cenários delirantes que concebia. Por outro, era um humanista da velha escola
européia e posso compará-lo a Jorge Luís Borges e a G. K. Chesterton, pela
riqueza e variedade de referências
culturais. E tinha, como tantos garotos de sua idade, uma formação de leitor
criado na jângal inesgotável da pulp
fiction dos anos 1930-40-50.
Isso que vocês chamam de “nada” é o que mantém todas as coisas
separadas umas das outras. Quando ele desaparecer, todos os mundos nascerão.
(The Fifth Head of Cerberus, p. 95)
Um comentário:
Bráulio
Excelente texto. Já tinha lido mas não conseguia comentar pois o proxy da empresa onde trabalho barrava. Acho que foi a única homenagem feita ao Wolfe por um autor de grande nível no Brasil ou mesmo dentro da imprensa. Sua traduçao do texto do Wolfe já se tornou clássica. Espero que algum dia você possa traduzir todo o Livro do Novo Sol.
ps Estou na torcida de mais livros de FC escritos por você.
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