O filme O Tesouro
de Sierra Madre (1948) de John Huston foi na sua época uma superprodução da
Warner Brothers. É uma história de faroeste – sujeitos miseráveis arriscando
tudo na mineração de ouro – e por trás dessa aventura um estudo sobre ambição,
paranóia, cobiça.
Peguei o DVD pra ver de novo por causa do episódio de A Balada de Buster Scruggs, dos irmãos Coen
(comentado aqui no blog, em 11 de fevereiro passado) onde Tom Waits faz um
garimpeiro solitário que descobre uma jazida e depois é atacado por um
espertalhão que quer se apoderar dela.
Era uma coisa comum no garimpo: bandidos que ficavam
rondando, deixando que alguém fizesse o trabalho duro de cavar a terra, e
quando o cavador achava alguma coisa eles caíam em cima, matavam o cara e
exploravam o filão.
No Tesouro, Walter
Huston (ator extraordinário) explica, em sua primeira cena, por que o ouro é
tão valioso. “É a quantidade de trabalho humano, de gente que se esforça para
achá-lo e arrancá-lo. Ouro só serve pra fazer pulseira e obturar dentes” (algo
assim).
Seu personagem é o personagem mais complexo do filme de
John Huston. A “estrela”, Humphrey Bogart, ótimo ator, faz um sujeito, Fred
Dobbs, obsessivamente querendo ficar rico. Os outros, o velho Howard (W. Huston)
e o jovem Bob Curtin (Tim Holt) têm planos pessoais para o futuro, quando
venderem o ouro. Dobbs diz apenas que pensa em ir a um banho turco, depois a um
restaurante bem caro e ficar devolvendo pratos, mandando preparar de novo.
“E depois?”, perguntam os outro. Dobbs não sabe. Dobbs é
o capitalista Yang, o que só pensa em ganhar sem parar.
É um minerador típico, e nisso incluo as grandes empresas
mineradoras que fazem bilionários pelo mundo afora arrancando ouro, ferro,
manganês, nióbio, diamante. Querem arrancar, vender pelo melhor preço,
enriquecer... e depois? E depois dos jatinhos com pias de ouro, dos vinhos de
100 mil dólares, dos bunkers subterrâneos para sobreviver ao Juízo Final?
Howard (o personagem de Walter Huston) é a mente mais lúcida
num filme de sonâmbulos. É espertalhão, descolado, safo, experiente. Tal como o
ator – que, segundo se diz, não falava uma palavra de espanhol, mas decorou as
falas (muitas) e as diz com fluência espantosa.
Howard ajuda os índios mexicanos, fazendo respiração
artificial num garoto que se afogou; passa a ser visto como milagreiro. E ele
mesmo pisca o olho para os colegas, decidido a faturar em cima do prestígio
adquirido, mas sem enganar a si próprio.
Quando vão embora, depois de extrair o ouro, ele diz aos
colegas que precisam fechar as feridas da montanha. “Que papo é esse?”,
estranham eles. E ele diz: “A montanha nos deu seu ouro. Não podemos deixá-la
toda aberta, toda escavada. Temos que tratá-la bem”.
Hoje seria classificado como um discurso “eco-friendly”,
mas é a persistência (positiva, acho, neste caso) da velha mentalidade
animista. A natureza é viva. Ele sente, ela nos vê, ela percebe, ela se relaciona.
Um animismo que pode muito bem excluir o espiritual, o sobrenatural, e exprimir
um senso profundo de identificação entre bichos de carne e osso (e pás e
picaretas) e o lugar de onde arrancam a sobrevivência.
No fim do filme, quando o ouro é desperdiçado e derramado
por bandidos ignorantes, cabe ao velho Howard reagir com gargalhadas diante de
tantos meses perdidos. E ele ensina o amigo jovem (interpretado por Tim Holt) a
reagir da mesma forma.
Não há como não lembrar de outro filme sobre uma mineração
que não dá certo, Zorba, o Grego
(1964) de Michael Cacoyannis. Ali, na sequência final, vem abaixo o sistema de
cabos e roldanas instalado para transportar os troncos de árvores (que
forneceriam a madeira para escorar a mina). E o velho Zorba (Anthony Quinn) cai
na gargalhada, e arrasta no riso o jovem Alan Bates. E os dois começam a dançar na areia da praia.
Como se diria no Nordeste, “desgraça pouca é meio de
vida.”
Temos uma tendência a ver nessas duas reações, no final
desses dois filmes, uma expressão de vida, de liberdade, um dar-de-ombros
diante das perdas materiais. E é uma visão correta. Perdeu-se tudo?! Dane-se,
bora fazer outra coisa.
O capitalismo tem um lado Yin e um lado Yang, um lado
libertário e um lado trancador.
A visão Zorba, a visão Howard (curiosamente projetada, em
ambos os filmes, em atividades de mineração) faz predominar no final o lado Yin
da coisa. Um impulso que arrasta o capitalismo, um impulso de mobilidade, de
ação: vamos tentar, vamos tentar de novo, vamos fazer outra coisa, mas com o
mesmo espírito, depende só de nós.
O outro lado, a face Yang, é o do capitalismo meramente
predador, a mandíbula come-come. O capitalismo-usura, o capitalismo
acumulação-de-fortunas, o capitalismo ascético, sem prazer, sem alegria, o
capitalismo insetóide que sabe apenas devorar. Os banqueiros bilionários e soturnos
de terno preto, que almoçam qualquer coisa e cujo sofá da sala está puído.
O cinema passou um século, em filmes como estes,
celebrando o lado alegre do capitalismo. O capitalismo-aventura, o capitalismo
iniciativa-pessoal, o capitalismo jogo, cassino, roleta, de apostar tudo sem
medo de perder. O lado Yin, que de certa forma seria expresso nesta estrofe do
famoso “Se...” de Rudyard Kipling (trad. Guilherme de Almeida):
Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,
e perder, e ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.
Um resenhador mal-humorado diria que é por causa dos
Zorbas vestindo Armani que a Lehman Brothers quebrou e o Fyre Festival deu com
os burros nágua.
Fazer o quê? O capitalismo tem esse lado vibrador,
dinâmico, individualista. O sujeito hoje está na capa de todas as revistas
econômicas do Ocidente e poucos anos depois está na cadeia. Qual o problema? “Dane-se,
quando a gente sair, bora fazer outra coisa.”
A Sierra Madre é a Mãe Natureza, está sempre ali, aberta,
disponível, expondo suas riquezas mais íntimas, “como uma mulher nua deitada à
luz do sol”. Alguns, como o velho
Howard, querem tirar apenas o que precisam para levar uma vidinha tranquila,
voltada para outras coisas.
Outros são os Fred Dobbs, os Pac-Men obcecados, os
famosos wonder-boys que pensam apenas no próximo bilhão de dólares. Diante
deles, que se cuidem a Sierra Madre e o rio Paraopeba.
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