quarta-feira, 28 de novembro de 2018

4409) "O Outro Lado do Vento" (28.11.2018)



Este filme póstumo de Orson Welles, lançado este ano depois de décadas de desencontros e atrasos, está em exibição no Netflix, e vem acompanhado por uma espécie de making of com o título Eles Vão Me Amar Depois de Morto, uma extensa reportagem com todos os envolvidos na realização do filme, anos atrás, e com sua finalização recente.

Ou seja, é um argumento tipo A Noite Americana (1973) de François Truffaut: vemos um filme, o filme “de fora”, sobre uma equipe que está realizando um segundo filme, o filme “de dentro”. Na história de Truffaut, ele próprio encarna o diretor deste segundo filme, cujo título é Je Vous Présente Pamela.

No caso de Welles, o filme-que-está-sendo-feito é um daqueles filmes-cabeça europeus de raros diálogos e gente vagando sem rumo por entre cenários inquietantes.

O filme “de fora” começa com o encerramento de mais um dia de filmagem.  Uma caravana de gente – atores, técnicos, imprensa, figurantes, gente peruando a filmagem – parte imediatamente para um rancho próximo, para uma festa boca-livre onde cenas já editadas do filme-cabeça serão exibidas. A festa dura a noite inteira; o filme termina ao amanhecer.

O diretor desse filme-cabeça, chamado igualmente The Other Side of the Wind, é Jake Hannaford, interpretado por John Huston. É um personagem e tanto, e Huston é bom ator, no sentido de que é um sujeito de inteligência rara, exuberante, viril, desbocado, e parece entender bem o personagem, um gênio paparicado e impulsivo.

O filme “de dentro” mostra uma mulher bonita sendo estalqueada por um rapaz bonito, sem que uma palavra seja trocada entre os dois. A certa altura ocorre o que os resenhadores chamam “uma tórrida cena de sexo” num carro em movimento, à noite, à chuva, em plena estrada. Depois os dois vagueiam por entre cenários de estúdio abandonados, entregues à chuva e ao vento.

O filme “de fora”, mostrando a festa, lembra muito aquelas sequências de F For Fake (“Verdades e Mentiras de Orson Welles”, 1978), com câmaras misturadas à multidão e uma sucessão estonteante de pessoas desconhecidas gritando perguntas, respostas, chamados, alusões, argumentos, que talvez a gente só entenda mesmo quando vê o filme pela segunda vez.

Montagem picotada, imagem com qualidade variável, um efeito de descontinuidade, de algaravia ininteligível, desorientação, o que acaba nos levando para dentro da festa, que não é outra coisa senão isto. Huston é o centro de tudo, e na última meia hora de filme está visivelmente bêbado, ou interpretando bem o papel de bêbado.

Em torno da bebedeira e da projeção de parte do copião do filme, rolam as rivalidades, discussões, traições e provocações que esperamos encontrar num filme sobre Hollywood. Feito por alguém que teve de Hollywood as experiências que couberam a Orson Welles.

Um papel importante é o do diretor Peter Bogdanovich (Na Mira da Morte, A Última Sessão de Cinema, Lua de Papel, etc.), meio que reproduzindo junto a “Jake Hannaford” (Huston) o papel que viveu fora dos filmes, junto ao próprio Orson Welles: entrevistador, biógrafo, fã, especialista, etc.


(um ator, Welles, dirigindo dois diretores, Huston e Bogdanovich)

O núcleo do enredo deste filme tem aquele tema que eu chamo, pegando carona no filme de Sidney Lumet, a Longa Jornada Noite Adentro. Uma noite insone vivida por um grupo de pessoas em crise; uma narrativa interminável que se encerra com o nascer do sol.  Tipo A Noite de Antonioni, o Quem Tem Medo de Virginia Woolf de Edward Albee, a festa de A Regra do Jogo de Jean Renoir...

É a agitação às cegas de um certo pessoal do cinema, que acorda cedo, trabalha duro, e de noite está com a cabeça tão acelerada que força o corpo a não dormir, a poder de bebida, de drogas, de sexo, de brigas, de gargalhadas, de agitação sem sentido, de qualquer coisa que pareça fazer o tempo sumir no horizonte.

É a noite do iguana, a noite dos desesperados, a noite dos mortos vivos, a noite do espantalho; é a Longa Jornada Noite Adentro.












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