quinta-feira, 14 de abril de 2016

4102) Julio Cortázar, os Beatles e os hippies (14.4.2016)



Quando a contracultura roqueira explodiu no mundo ocidental em meados da década de 1960, Julio Cortázar era um circunspecto senhor argentino de seus 50 anos, morando em Paris com a esposa, Aurora Bernárdez, trabalhando na Unesco e já famoso pelo romance O Jogo da Amarelinha (Rayuela, 1962), publicado nos primeiros anos da década. 

Um intelectual cheio de leituras filosóficas e influenciado pelo Surrealismo. 

Em princípio nada o identificava com aquela coorte de criaturas hirsutas e esfarrapadas cantando iê-iê-iê.  Lembro de nos anos 1970 mostrar os livros de Cortázar aos meus amigos malucos-beleza dizendo o velho papo de “você tem que ler esse cara, esse cara é doido demais”. Eles pegavam o livro, viam na contracapa a foto de Julio de terno e gravata e sentenciavam: “Vestido desse jeito careta não pode ser doido. Mande ele desencaretar, e aí traga de novo.”

E no entanto foi Cortázar o inventor dos cronópios, uma das criações literárias que para mim melhor exprimem o espírito da contracultura anglo-americana, aquele misto cambiante de ingenuidade, alegria de viver, imprevidência, imprevisibilidade, imaginação, prazer lúdico de mexer em tudo e por tudo.

Existe alguém mais cronópio do que os Beatles? Se não os Beatles reais, pelo menos os Beatles mostrados nos filmes de Richard Lester (A Hard Day’s Night, 1964; Help!, 1965).  Um grupo de rapazes mordazes e felizes, dançando na rua, correndo pra todo lado, brincando com qualquer objeto que lhes caísse às mãos, fazendo trocadilhos, sempre em movimento, sempre de alto astral.

Numa carta datada de Genebra (7-3-1966), para o pintor e poeta argentino Eduardo Jonquières (em Cartas a los Jonquières, Alfaguara, 2010), Cortázar troca confidências e comentários com o amigo distante. 

Fala da emoção de receber o primeiro exemplar da tradução norte-americana de Rayuela (Hopscotch, traduzido por Gregory Rabassa), fala de ter terminado de ler Pale Fire (Fogo Pálido, 1962) de Nabokov, e a certa altura diz:

“Você não vai acreditar, mas ontem fomos assistir Help!, o filme dos Beatles, e tampouco vai acreditar, nos divertimos muito. Acontece que quando a pessoa vive à beira na inópia [=penúria, escassez] lança-se a explorar as zonas mais absurdas da programação cinematográfica, e acontece também que isto lhe reserva grandes surpresas. Se você viu o filme, terá percebido que sociologicamente é um documento de primeira ordem sobre a ‘alienação’, tão celebrada e difundida nos salões das velhas sabichonas todas as sextas-feiras à cinco da tarde. Nem os Beatles nem o diretor do filme sabem, provavelmente, que nos deixaram um curioso testemunho do robotismo dos ‘sixties’. Primeiro que tudo, os 4 Beatles são robots, bonecos de cera que não têm relacionamento algum nem entre si nem com os demais. (Símbolo evidente: a casa com as 4 portas, que finalmente consiste em um único aposento, mas tampouco aí há possibilidade de contato, pois até para conversar de uma cama para a outra os B. utilizam o telefone e além disso limitam-se a monossílabos muito britânicos. Etcétera: é para dar calafrios se se leva a coisa a sério, pelo qual é melhor rir-se das aventuras absurdas que acontecem a esses pássaros simpáticos.)”

Alguns anos depois, noutra carta (Viena, 1-10-1970), Julio narra uma viagem que fez a Wiesbaden (Alemanha) para uma conferência, e os passeios que fez de carro, sozinho, por aquela região. E diz a certa altura:

“Vi o belo vale do Neckard, cheio de ecos de Hölderlin e com um vinho sobrenatural, e Heidelberg me fascinou. Estranhas circunstâncias me puseram em contato com um grupo de hippies, e durante toda uma noite descobri até que ponto não somente não são o câncer social denunciado pelos bem-pensantes, mas que o câncer é precisamente tudo aquilo que os rodeia e os hostiliza; em todo caso, nesse grupo havia algo muito parecido com a felicidade, com o fim de uma longa viagem, com uma reconciliação. A marijuana ajudando, claro (eles a fumam, e fumamos sentados nas escadarias da catedral, o que em si já era engraçado, e sem que a polícia interferisse em momento algum, apesar do cheiro, que tem muito pouco a ver com o incenso). E eu durante todo esse tempo lendo (relendo) Pedro Salinas, do qual vou organizar uma antologia, e tudo isto se harmonizava tão bem com esse pessoal fora-do-sistema.”

Em Ultimo Round (México, Siglo XXI, 1969), Cortázar reproduz a foto de uma pichação de parede na Venezuela, registrada na revista Rocinante, que diz: “Aqui habita la poesía – los cronopios vs. el sistema”.  Uma pichação que não ficaria deslocada nos muros de Abbey Road ou na esquina de Haight/Ashbury em San Francisco.





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