“Ninguém, mesmo nos andares superiores, parecia perceber o contraste entre os convivas elegantemente vestidos e o estado de degradação do prédio. Ao longo dos corredores juncados de sacos de lixo não recolhidos, entre as lixeiras entupidas e os elevadores vandalizados, caminhavam homens trajando “dinner jackets”, e mulheres que erguiam a barra dos longos vestidos de noite ao caminhar por entre os cacos de garrafas partidas. O perfume das caras loções de após a barba se misturava com o odor das cozinhas repletas de lixo.”
A cena é de High Rise (1975), o romance em
que J. G. Ballard descreve um condomínio de
luxo de 2 mil moradores regredindo à selvageria quando os sistemas de
funcionamento (luz, água, ar condicionado, elevadores, etc.) entram em colapso. Profissionais
liberais londrinos, sofisticados e cheios de dinheiro, transformam-se em
selvagens, promovendo saques, estupros, espancamentos coletivos, numa regressão
à vida tribal onde vigora a lei do clã mais forte ou mais bem armado, em
depredações que se estendem pelo interior do prédio gigantesco.
O surto de selvageria descrito por Ballard é uma brusca
aproximação de contrários que coexistem à distância em nossa sociedade.
Qualquer grande cidade tem condomínios de luxo, tem guerras de gangs, tem
moradores de rua, mas cada um no seu lugar, no seu setor. Ballard os transforma
uns nos outros no interior do prédio de 40 andares e esse choque produz a
fagulha do fantástico. Moradores sofisticados de penthouses londrinas se
comportam como os personagens de Laranja Mecânica ou de Guerreiros da
Noite.
Também não há como não perceber a influência de Luís Buñuel
neste romance onde a selvageria dos burgueses enclausurados na mansão de O
Anjo Exterminador toma conta desses milhares de psicólogos, esportistas,
investidores na Bolsa, médicos, advogados. O edifício, agora, é uma espécie de
Alphaville paulistana que vai se degradando em cortiço, em monturo, em campo de
batalha.
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