domingo, 7 de dezembro de 2014

3678) Traduzindo começos (7.12.2014)


Em seu livro de memórias If This Be Treason, Gregory Rabassa comenta suas grandes traduções da ficção latino-americana. Um dos primeiros romances que traduziu foi Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez, e ele dedica longos parágrafos a comentários. A expressão “cem anos”, por exemplo, pode ser traduzida como “a hundred years” ou “one hundred years”, e ele diz que optou pela última, para destacar o aspecto quantitativo (“one”), pois se trata de uma conta nítida, fechada, “como numa profecia, algo definido, uma contagem regressiva, não é uma centenas de anos qualquer”.

O livro tem um dos começos mais famosos da literatura recente: “Muchos años después, frente al pelotón de fusilamiento, el coronel Aureliano Buendía había de recordar aquella tarde remota en que su padre le llevó a conocer el hielo”.  Em inglês ficou: “Many years later, as he faced the firing squad, Colonel Aureliano Buendía was to remember that distant afternoon when his father took him to discover ice.”

Rabassa comenta todas as opções desse pequeno trecho. Lembra que pelotão de fuzilamento é “firing party” na Inglaterra e “firing squad” nos EUA.  Discute se é melhor traduzir “había de” por “would” ou por “was to” (opta por esta).  O verbo recordar pode ser “remember” ou “recall”: ele opta por “remember”, “porque dá a impressão de uma ´recordação mais profunda”.

A “tarde remota” virou “distant afternoon”. Por que?  Rabassa considera que para o leitor inglês a palavra “remote” está muito associada a controle remoto, robôs, etc., e que gostava do adjetivo “distante” (um adjetivo relativo a espaço) quando aplicado ao tempo.  Para ele, um problema delicado era o fato do Coronel, menino, ter sido levado para “conocer” o gelo.  Rabassa traduziu o verbo por “discover”, descobrir.  Por que?  Rabassa lembra que se trata de um primeiro encontro, de um aprendizado; em inglês, usar "to know” daria a sensação de que o menino disse: “How do you do, ice?”, mas que quando a gente sabe algo pela primeira vez está “descobrindo” esse algo.

Duas linhas de texto a traduzir podem produzir sem esforço duas páginas de teorizações.  Muitas são intuitivas, feitas ao correr da escrita, ao ritmo da digitação, quase nem chegam a ser verbalizadas intimamente pelo tradutor. Vai ser isso, não aquilo, assim fica melhor, troca essa pela outra, ajusta o ritmo, a sonoridade, a próxima, por favor!  São processos que já foram teorizados por antecipação, ou talvez na primeira-vez-de-todas em que um problema semelhante se apresentou. O tradutor lê, deixa-se impregnar, concentrado, do que a frase original lhe trouxe, digita a sua.  E vai em frente, que a esteira tá rolando.

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