Um
inquietante artigo de Peter Garratt no The Guardian examina a literatura e a
vida de Charles Dickens em função do que poderíamos chamar “a arte de ouvir
vozes”. A tese do autor, bastante
plausível, é de que Dickens era um desses escritores que praticamente “recebem
os espíritos” dos personagens. Criando
os seus romances, improvisava longos diálogos que depois eram passados para o
papel. Diz Garratt que entre 1853 e sua
morte em 1870 Dickens realizou 470 performances públicas, que devemos entender
como conferências e leituras dos próprios livros com alto grau de
teatralidade. Parece que Dickens eram
bom nisso, porque viajou pela Europa e América fazendo essas dramatizações.
Ele
cita um testemunho do próprio Dickens sobre o ato da criação literária: “Quando
me sento para trabalhar num livro, algum poder benfazejo me mostra aquilo tudo,
e atiça meu interesse, e eu não invento nada, não mesmo, eu somente vejo, e
passo para o papel.” Segundo ele,
Dickens era interessado em mesmerismo, ilusões e alucinações. (Coisa que, uma
geração depois, iria interessar autores como Doyle, Wells, etc.) Ele provavelmente era um steampunk “avant la
lettre”, mas devia ter um certo desdém pela tecnologia. Seus garotos encardidos, maltratados nos
orfanatos, perseguidos nos becos, fugindo de todos, prefiguram essa literatura
dos marginais contemporâneos, só que uns marginais num mundo mais Julio Verne
do que o dele.
Diz
Garratt que “a experiência literária tem muito a ver com a experiência de
escutar a conversa alheia. Ler ficção é
um processo de permitir que as vozes dos personagens soem em nosso ouvido
interno, e de absorver os sons que produzem.”
Na minha experiência, foi Coelho Neto (Velhos & Novos) o primeiro
autor que vi descrever um fenômeno que para mim era óbvio: o fato de que
qualquer palavra que lemos vai sendo lida em voz alta por uma voz interior
muito semelhante à nossa. Não diria que
é um fenômeno do ouvido (meus tímpanos não ouvem nada), mas do pensamento puro:
pensar em palavras é imaginar seu som.
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