domingo, 28 de setembro de 2014

3616) Palavras sem rima (28.9.2014)





A lista A Word a Day, que assino há anos, trouxe uma postagem sobre um oficial norte-americano do século 19, chamado Henry Gorringe.  Ele foi o responsável pela transferência da chamada Agulha de Cleópatra (um obelisco egípcio) para o Central Park de Nova York.  Sua presença na lista, contudo, era por uma razão ainda mais rara: segundo os redatores, o nome dele é a única rima na língua inglesa para a palavra “orange” (laranja).



Rima é um negócio danado.  Quando dizemos rima, na poesia, estamos falando em geral daquilo que se denomina rima exata, ou rima consoante: laranja / canja, abacaxi / siri, futebol / sol, e assim por diante.  A poesia modernista, no entanto (João Cabral, Cecília Meireles, tantos outros) usou fartamente a rima toante, aquela em que os sons são meramente parecidos: Paraíba / vida, sino / caminho, alma / casa, etc.  Só pra resumir: a rima consoante, exata, tradicional, é aquela onde existe entre as duas palavras uma coincidência perfeita de sons a partir da vogal da sílaba tônica.  As palavras “conta” e “ponta” rimam, não importa se antes da vogal em questão vem um C ou um P.



Meu pai fez para minha avó (Vó Clotilde, que era a cara de Agatha Christie) um soneto chamado “Mãe”, que terminava dizendo: “Pois teu nome sem rima é o hemistíquio / do verso alexandrino de minh’alma”.  Quando o questionei, ele me interpelou: “Pois me diga uma rima para a palavra ‘mãe’”.  Eu disse, em-cima-da-bucha: “Bãe... tamãe...”, e ele me mandou pastar.  Não, não tem rima.  Assim como “sempre” também não tem. Dou um milhão de dólares por duas palavras terminadas em “...empre”, preu fazer uma sextilha que está engatilhada há anos.



Também não têm rima palavras como cérebro, víbora, câncer, nuvem, órfã, mil outras.  De vez em quando aparece um esperto exumando um vocábulo seiscentista, ou distorcendo de leve uma pronúncia pra aconchambrar um verso periclitante.  Vale?  Às vezes vale.  Guilherme de Almeida, artesão de mão cheia e bom poeta, tem um poema chamado “Berceuse da Rimas Riquíssimas” onde cataloga alguns desses truques, como por exemplo rimar “nuvem” com “nu vem”.  Existe o caso famoso de “cinza”, que só rima com “ranzinza”, mas um cantador de viola sabichão encaixou num verso a história de um cantador fanho que em vez de “camisa” falava “caminza”.


Palavras proparoxítonas têm rimas mais difíceis, porque há três sílabas que precisam ser iguais (cântico / romântico). As oxítonas são as de rima mais fácil, a começar pelas terminações de verbos (...ar, ...er, ...ir, ...por).  Quando Monsueto dizia “Pra que rimar amor e dor?” estava exprimindo uma nostalgia afetiva e também uma impaciência estilística.


2 comentários:

Fraga disse...

Braulio, meu kirido: a rima de mãe o Caetano já resolveu primorosamente (eu, pelo menos, me convenço a cada vez que ouço a canção) em Meu Bem, Meu Mal:
Meu mar e minha mãe
Meu medo e meu champanhe.
Perfeita rima pra cérebro seria o seu anagrama mitológico, Cérbero (de restrita e até previsível aplicação num verso).
Câncer pode rimar pobre e dolorosamente com esfíncter, ainda mais se o primeiro se localizar no segundo.
Quanto ao seu milhão de dólares, me candidato a U$500 mil com uma rima (vc não estipulou se consoante ou toante) pra rimar com sempre: é trempe, aqui nos pampas aquelas 3 hastes de ferro unidas, que servem pra se cozinhar com braseiro ou lenha ao ar livre. Mas não quero sua fortuna, basta vc me presentear com exemplar do seu próximo livro, hehe. É um prazerzão frequentar este seu curral de palavras, onde vc arrebanha e doma todas. Abração!

Braulio Tavares disse...

Nobilíssimo Fraga: nem vem que não tem! "Champanhe" corre na mesma raia que "bãe" e "tamãe". Trempe não rima com sempre (olhe onde está o R nas duas). Cérbero não rima com cérebro (olhe onde está o segundo E nas duas). Câncer na verdade só tem uma rima: Neuromancer.