quinta-feira, 5 de maio de 2011

2548) A simples arte do assassinato (5.5.2011)



Volta e meia estou citando Raymond Chandler nesta coluna, não porque ele seja o melhor autor de histórias policiais, mas porque ele foi um dos que melhor refletiram sobre elas. Chandler trouxe para a pulp fiction recursos narrativos de alguns de seus escritores preferidos (Somerset Maugham, Joseph Conrad, etc.). Ele antipatizava com o romance policial clássico (não tinha Agatha Christie em boa conta) e queria escrever histórias rudes, violentas, como as de Dashiell Hammett, mas com um refinamento de estilo que Hammett não tinha. Chandler foi um cara que disse para si mesmo: Vou escrever histórias assim mas vou tratá-las como se fosse (sei lá) Dostoiévski ou Henry James. Ao invés de se nivelar pelo nível das histórias já existentes, ele pensou consigo, “custa nada puxar a qualidade disso pra cima?”. E puxou de tal maneira que hoje o padrão de qualidade é o dele. Como se diz por aí, ele “elevou o patamar”.

Curiosamente, Chandler não menosprezava o romance policial ou a pulp fiction do jeito que menosprezava seu trabalho de roteirista em Hollywood. Certamente porque neste último caso o que ele desprezava era a arrogância, a presunção, a mediocridade banhada a ouro. Ele disse uma vez: “Se meus livros fossem muito ruins eu não teria sido convidado para trabalhar em Hollywood; e se fossem muito bons eu não teria aceitado”. O desdém e o sarcasmo com que ele via a si mesmo eram, de certa forma, um atenuante para as coisas terríveis que ele dizia sobre o trabalho alheio.

Isto não quer dizer que Chandler fosse impecável. Era um escritor cuidadoso, mas seus enredos, como aliás qualquer enredo de romance “hard boiled” ou de “filme noir” (o que é praticamente a mesma coisa) se baseiam em fatos surpreendentes acontecendo sem aviso e sem explicação a um detetive, e ele tendo que resolver os problemas à medida que eles desabam sobre sua cabeça, sem saber que diabo de complicação é aquela (e o leitor está na mesma condição). Há um episódio famoso sobre a filmagem britânica de The Big Sleep. O pessoal do roteiro virou a noite tentando deslindar aquela série de crimes. Não conseguiu e ligou para a Califórnia: “Chandler, afinal, quem matou o motorista?” E ele: “Não faço a menor idéia”. O romance “hard boiled” tem crimes demais, criminosos demais, histórias entrelaçadas demais.

Uma coisa preciosa que Chandler, se não inventou, executou com perfeição, é a técnica do narrador na primeira pessoa cujos pensamentos o leitor não compartilha. Seu detetive, Philip Marlowe, pratica uma porção de ações aparentemente irrelevantes (“fiz isso, fiz aquilo”) e só daí a 50 páginas a gente fica sabendo o que ele tinha em mente naquele instante. Num momento assim, sentimos a mão firme do autor, que não se permite fundir-se com o narrador, e só nos revela dele o que lhe convém. Todo livro existe num triângulo: autor, personagem e leitor. Quando os dois primeiros se misturam demais, perigo à vista.

2 comentários:

Anônimo disse...

"Todo livro existe num triângulo: autor, personagem e leitor"...e cada um enrolado em outro triângulo: RSI. Triangulais factais...ops, fractais. :)

Braulio Tavares disse...

OK, mas o que diabo é RSI?...