terça-feira, 8 de março de 2011

2496) Contraintes (5.3.2011)




“Contrainte” (con-TRÉNT): palavra francesa que pode ser traduzida como “restrição auto-imposta”. É quando um artista diz: “Proponho-me a fazer uma obra sem ultrapassar tais e tais limites, ou na qual será obrigatório proceder assim ou assado”. 

Parece um convite à excentricidade, mas a verdade é que toda obra de arte principia por aí. Quem compõe uma música para cavaquinho só pode lidar com as notas que cabem num cavaquinho. 

O crítico Rudolf Arnheim escreveu um dos melhores livros sobre a linguagem do filme, A Arte do Cinema, defendendo com brilhantismo a teoria de que a riqueza da linguagem cinematográfica decorre de suas limitações iniciais: ser mudo, ser em preto-e-branco, ter a imagem limitada pra um retângulo, etc.

Na literatura temos “contraintes” famosa como o formato obrigatório de muitos gêneros poéticos, como o hai-kai, o soneto, etc. E existem aquelas “contraintes” excepcionais, como a de Georges Perec e de Ernest Wright, que escreveram romances inteiros sem usar a letra “E”. 

Fiquei sabendo agora de outra obra que para mim é prova da existência de mais um autor fora-de-esquadro. Trata-se do livro Never Again, de Doug Nufer (http://www.amazon.com/o/asin/0971248567/ws00-20), que parece ser a história de um jogador compulsivo que quer se regenerar. O livro tem uma “contrainte” que é coisa de maluco: como o título indica, o autor se compromete a não mais usar qualquer palavra que venha a aparecer no texto. 

Ou seja, cada palavra só pode ser usada uma vez. Imagine a dificuldade de alguém para omitir as palavras mais comuns da língua (o, a, os, as, um, uma, uns, umas, de, em, para, que...).

O livro começa parecendo um livro normal: “When the racetrack closed forever, I had to find a job. Want ads made wonderlands, founding systems barely imagined”. (“Quando a pista de corridas fechou para sempre, tive que procurar um emprego. Anúncios de ‘procura-se’ projetavam fantasias, criando sistemas que mal se poderia imaginar.”). 

Veja-se que logo no comecinho do livro o autor já queimou algumas palavras essenciais: “When”, “the”, “I”, “to”, “a”. E por aí vai. 

Quando chegamos à página 4, o autor já descarregou todo seu suprimento de conectivos e palavrinhas curtas, e as frases vão ganhando um aspecto assim: “Tilt? Nodded acceptance unclogs processional drainpipe. Headtalk gestures convey protodocuments: workpass, memo allocating stingy directional information”. Lamento, mas não vou perder meu tempo tentando traduzir.

Uma regra como esta pode produzir boa literatura? Talvez não, mas a verdade paradoxal é que a literatura não tem como objetivo apenas produzir boa literatura. A literatura serve para sabermos os limites do que é possível fazer com palavras. “Boa literatura” é uma pequena fatia dessa pizza, a fatia que uma cultura, numa época qualquer, resolve considerar mais significativa ou mais deleitável que as outras. A Boa Literatura é um efeito colateral, e não o objetivo da literatura.





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