Alguém devia editar uma antologia de Carlos Drummond sob o título de Poemas de Aceitação, e essa recolha nos revelaria um lado importante e profundo do poeta.
Drummond tem um estoicismo que pende mais para o zen do que para o masoquista, e não envolve uma resignação passiva da realidade, mas um gesto filosoficamente assertivo, conquistador, de aceitar a realidade dominando-a, subjugando-a através de um abracadabra filosófico que se exprime em palavras poéticas.
Temos a sensação de que se alguém despejasse sobre Drummond todos os blocos da Pirâmide do Egito ele seria capaz de (se lhe dessem alguns minutos) descobrir uma fórmula verbal de aceitar sua enxurrada e manter-se intacto na base do entulho.
A aceitação tem sete faces, como tudo que CDA compôs, porque um poema não é uma bula de remédio, fórmula exata e definitiva do produto que acompanha. Um poema é o registro sismográfico das inquietações intelectuais e emocionais de um sujeito, e sua tentativa de dar um nó de tinta em volta de cada problema.
Um problema sério do jornalismo cultural de hoje em dia (não me atrevo a chamar isso de “crítica literária”) é uma profunda incompreensão do que é a criação literária. Há sujeitos capazes de, num perfeito jargão acadêmico, criticarem um autor por “contraditório” simplesmente porque dois poemas dele, num mesmo livro, exprimem idéias opostas.
Quem chega à poesia pelas fórmulas didáticas, e não pelos poemas, nunca vai saber o que é poesia. (E me refiro aos poemas no cru, sem anestesia, sem assinatura, sem comentário, sem preparação, o poema caído de uma fenda no céu no colo do leitor).
Em Alguma Poesia, cujos 80 anos foram comemorados ano passado, surge o singelo “Poema que Aconteceu”, uma dessas pequenas epifanias não-poéticas, não-conceituais, não-estéticas que os poetas tantas vezes procuram. Escrever algo que representa a vida, mas a vida sem enfeites, a vida sem beleza ou drama, a vida sem profundas palavras ou nobres conceitos, a vida que lateja nos animais e nas plantas. “Life, and life only” como disse Bob Dylan. Uma tentativa de auto-despojamento que Alberto “Fernando Pessoa” Caeiro conseguiu por outros meios e caminhos.
Nenhum desejo neste domingonenhum problema nesta vidao mundo parou de repenteos homens ficaram caladosdomingo sem fim nem começo.
Não é apenas a letargia dos nossos domingos urbanos e modernos; é a polaróide de um instante sem desejos, sem problemas, sem movimento, sem palavras, sem espaço nem tempo. A vida em Modo Sleep, a vida latente mas com o intelecto desligado. O corpo apenas, vivendo um segundo de cada vez. E ele conclui:
A mão que escreve este poemanão sabe que está escrevendomas é possível que se soubessenem ligasse.
A mão sem Eu, a mão sem mente, a mão mediúnica, a mão-desenhando-a-mão de M. C. Escher, a mão que produz a poesia sem que o dono precise pensar. (Claro que, como Escher, Drummond sabe que está sugerindo algo impossível).
Um comentário:
Uau, suas duas últimas estrofes me pegaram desprevenida. Profunda a escolha de palavras.
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