sexta-feira, 5 de novembro de 2010

2393) Monteiro Lobato e a negra velha (5.11.2010)



O livro de Monteiro Lobato Caçadas de Pedrinho está tendo sua utilização nas escolas questionada, sob acusação de racismo. (Não, não foi proibido: o Conselho Nacional de Educação apenas recomendou que as edições do livro tragam uma ressalva explicando o contexto cultural em que o livro surgiu.) A personagem de Tia Nastácia, a cozinheira do Sítio do Picapau Amarelo, é frequentemente xingada pela boneca Emília de “negra burra, negra beiçuda” e outras coisas nesse tom. O próprio narrador onisciente do livro, volta e meia, diverte-se ridicularizando esta ou aquela ação da negra, como quando diz que ao ver uma onça ela subiu pelo mastro da bandeira feito “uma macaca de carvão”. Bastou isso para que um leitor indignado protestasse, dando início à polêmica pública.

Existe um livro tristemente famoso que se intitula, se bem me lembro, Comunismo para Crianças, cujo autor defende a tese de que a obra infantil de Lobato fazia parte de uma campanha para disseminar o Comunismo dentro da nossa juventude. Espero que não apareça um dia “Racismo para Crianças” dizendo que ele é um perseguidor da raça negra. Lobato tratava os negros de acordo com o diapasão de sua época, assim como Mark Twain, cujo Huckleberry Finn sofre esse mesmo tipo de acusação. Daí a achar que esses livros são ativamente racistas é uma coisa completamente diferente.

Tia Nastácia, aliás, é descrita na maior parte do tempo como uma personagem cheia de aspectos positivos. É carinhosa, dedicada às crianças, e amada por elas. No Picapau Amarelo ela é raptada pelo Minotauro e levada para o labirinto de Creta; em O Minotauro Dona Benta e seus netos vão à Grécia para salvá-la, e ali descobrem que ela amansou o “monstro de guampas” dando-lhe bolinhos para comer. Em A Reforma da Natureza, após o fim da II Guerra Mundial os líderes e reis da Europa querem reconstruir o mundo de acordo com bases civilizadas e humanistas. Quem é que eles chamam para dar-lhes conselhos? Dona Benta e Tia Nastácia, que fazem as malas e rumam para o Velho Continente para ensinar à Europa a arte de bem viver.

Tia Nastácia e Dona Benta exprimem o lado popular e o lado erudito de uma mentalidade matriarcal, compassiva, humanista, que Monteiro Lobato via como alternativa para um mundo de líderes belicosos e cheios de ambição. O sucesso do “Picapau Amarelo” deve muito a ambas. Um livro como Caçadas de Pedrinho inclui uma dúzia de epítetos zombeteiros contra os negros, mas se fosse proibido isso privaria todos os leitores – inclusive os leitores negros – de conhecer uma bela personagem negra de nossa literatura. Eu li esse livro com 8 anos e nunca achei Tia Nastácia uma personagem inferior ou ridícula. Talvez seja porque cresci numa casa onde havia negras velhas ajudando a cuidar de mim, e aprendi desde cedo a considerá-las gente, apenas gente, iguais a qualquer outra pessoa.

4 comentários:

Kadu Mauad disse...

Inácia. É uma negra que assistenciou minha vó e ajudou a criar o meu pai. Ela até hoje está. Menos turrona certamente. Imagino que a vida não deve lhe ter sido muito fácil. Mas sempre que olhava lá estava a Inácia pronta para o que desse e viesse.
Dela guardo só coisas boas.

Abraço, BT.
Kdu.

PS: Leu "Diário de Bitita".

Braulio Filho disse...

Ótima argumentação. O contexto sempre deve ser observado nos tratamentos inter-raciais para se evitar distorções e excessos, de parte a parte. Não conhecia esse trabalho seu (Leio o JPB), mas ja (Ctrl+D).
Saudações cordiais.

ANDREA CARVALHO STARK disse...

maravilhoso artigo, Braulio! Meus filhos também leem e não enxergam isso, pois as referencias de raça que eles possuem vem de suas madrinhas negras, escolhas de afeto e não de diferença, mais de uma imensidão de amigos nossos que frequentam nossa casa, negros, judeus, cristãos, católicos, nordestinos e portugueses dos ramos da família etc.

aroma, disse...

isso acontece pq os "defensores da raça", qualquer que sejam, veem sempre "mais". a de se perceber que as diferenças, todas as diversidades, serão tratadas como tal, e diferentemente. ngm quer mais esta tal de igualdade, que massifica num ideal (e num ideal branco de valores, diga-se).
otima defesa \o