segunda-feira, 19 de julho de 2010

2289) “Casamento do Céu e do Inferno” (9.7.2010)



(Drummond, por Portinari)

O terceiro poema de Alguma Poesia (1930), livro de estréia de Carlos Drummond, é uma espécie de grão original de onde brotarão inúmeros outros, expandindo o primeiro, contradizendo-o, questionando-o, desmentindo-o, aprofundando-o. Drummond tinha uma amplitude temática impressionante, mas, como todo poeta que vai fundo, circula reiteradamente por entre um número finito de situações. Este “Casamento” (que no título ironiza William Blake e sua visão grandiosa do choque entre o Sagrado e o Profano) faz parte das primeiras investidas modernistas contra a moral pequeno-burguesa e a noção do amor romântico, que justifica essa moral e lhe doura a pílula. Nos versos iniciais, termos como “azul de metileno” e “diurética” cortam de cara qualquer possibilidade de romantismo açucarado (uma terminologia plebéia que lembra Augusto dos Anjos).

CDA contrapõe o jeitão meio atabalhoado dos defensores da pureza ao dos semeadores do pecado. De um lado, os anjos, que se limitam (como a mãe do poeta, no poema anterior, “Infância”) a espantar mosquitos dos cortinados das lolitas, e São Pedro, que dorme. Do outro, o Diabo modernista, armado de luneta. Drummond satiriza a poesia parnasiana de Bilac, que dizia, em “Virgens Mortas”: “Quando uma virgem morre, uma estrela aparece, / nova, no velho engaste azul do firmamento”. Drummond afiança: “...diz-se que tem virgens tresmalhadas, incorporadas à via-látea, vagalumeando...” E se Drummond avisa que o Diabo tem um “olho torto” e espreita tudo “por uma frincha”, ecoa também Bilac no mesmo soneto, quando faz aos namorados uma advertência pudica: “Piedade! Elas veem tudo entre as moitas escuras...” Drummond iguala as virgens mortas e o Diabo no mesmo voyeurismo sacana.

Drummond fala que o mundo está cheio de suspiros de “bocas machucadas”, e que “os corpos enrolados / ficam mais enrolados ainda / e a carne penetra na carne”. Imagino que na época este verso terá causado um ligeiro escândalo. Bilac, um dos mais sensuais dos nossos poetas, usava imagens assim, mas as usava envoltas nos véus de musselina da mitologia grega ou outro maneirismo aparentado. Drummond, em seus versos sem métrica nem rima, diz a coisa com o nome da coisa e o leitor não consegue ver naquilo outra coisa senão a coisa.

A estrofe final é de uma sem-cerimônia libertária: “Que a vontade de Deus se cumpra! / Tirante Laura e talvez Beatriz, / o resto vai para o inferno”. A citação às musas de Petrarca e de Dante Alighieri manda a pureza de volta para a Idade Média. Nos tempos modernos, parece dizer o poeta, toda mulher só pensa mesmo naquilo, então, fazer o quê? E que saborosa ambiguidade a desse ótimo “Que a vontade de Deus se cumpra!” Ou seja, se o mundo está entrando numa época de “liberou geral” é porque Deus quis. O poeta diz uma frase de velhinha cristã fazendo o pelo-sinal, mas a diz num tom de quem esfrega as mãos satisfeito e olha o mundo com um olho... ousarei dizer que “torto”?

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