sexta-feira, 16 de julho de 2010

2275) Borges vai a leilão (23.6.2010)



A casa de leilões Bloomsbury, de Nova York deve leiloar hoje uma certa quantidade de livros e manuscritos de diversos autores, entre eles John Steinbeck, Thornton Wilder, Julio Verne e Jorge Luís Borges. O filé do leilão será um manuscrito do famoso conto borgiano “O Jardim das Veredas que se Bifurcam”, do qual não existe, ao que parece, nenhuma outra cópia do próprio punho do autor (o conto é da época em que Borges não tinha ficado cego). A Bloomsbury afirma que é o documento borgiano mais valioso já levado a leilão, e espera vendê-lo por uma soma entre 200 e 300 mil dólares. Fui no saite da Bloomsbury e capturei imagens das 12 páginas do manuscrito, na caligrafia miúda e insetóide de Borges, em que as letras quase não se enlaçam umas nas outras, mas sucedem-se isoladas, embora juntinhas. Acho que muita gente tem esse prazer meio fetichista de ver como é um texto famoso escrito de próprio punho pelo seu autor, com as correções, rasuras, substituições, flechinhas puxadas do meio de um parágrafo para indicar uma frase escrita na margem.

Este conto tem um interesse especial para os leitores norte-americanos. Foi o primeiro conto de Borges publicado nos EUA, no famoso Ellery Queen’s Mystery Magazine, revista cuja edição brasileira é muito conhecida dos aficionados da literatura policial. Em 1948 o EQMM publicou uma tradução desse conto feita por Anthony Boucher, com uma apresentação bastante elogiosa sobre o “Señor Borges”, que na época era conhecido apenas nos círculos literários de Buenos Aires.

Como sou tiete, fui no saite da casa de leilões e baixei as 12 páginas do manuscrito, para tirar uma dúvida, entre outras coisas. Quem já leu este famoso texto sabe que ele conta o encontro do narrador com um sinólogo, Stephen Albert, e que o nome desse personagem é o mesmo de uma cidade onde se deu um fato importante da I Guerra Mundial. Esse sobrenome é um detalhe essencial para o conto (embora o motivo dessa importância só se revele nas últimas linhas). Ora, na edição norte-americana (tenho um exemplar do EQMM de 1948) o sinólogo se chama Stephen Corbie, nome de outra cidade envolvida na I Guerra. Essa disparidade sempre me inquietou; será que havia duas versões do conto, usando cidades diferentes para dar nome ao personagem? Ver o nome “Stephen Albert” escrito pelo próprio punho de Borges elimina pelo menos uma das possibilidades. Tudo leva a crer que Ellery Queen usou do poder discricionário concedido aos editores para substituir, sabe-se lá por que razões historiográficas, o nome da cidade sugerida por Borges por outra que a seu ver seria mais plausível (pelo menos aos olhos de um leitor norte-americano). Editores fazem isso o tempo inteiro. O próprio Ellery Queen jamais terá imaginado que esse conto de um argentino desconhecido chegaria um dia a ser leiloado por uma fortuna. E fico imaginando a cara de Borges ao receber a revista pelo Correio e ver que tinham trocado o nome do seu personagem.

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