sexta-feira, 25 de junho de 2010

2193) A capa sobre a lama (19.3.2010)




(A Hard Day's Night)

No final do século 16 Sir Walter Raleigh era um dos nobres da Corte presentes num evento social em que a Rainha Elizabeth I, ao caminhar, deteve-se, hesitante, diante de uma poça de lama. 

Todo mundo ficou pensando em alguma coisa para fazer, mas Raleigh adiantou-se e fez: arrancou sua capa de veludo, que custava uma nota preta, e a estendeu sobre a lama para que a Rainha não sujasse os sapatinhos e a barra do vestido. 

Qual a Rainha que não se apaixona, diante de uma galanteria como esta? Sir Walter caiu nas graças de Elizabeth, e o resto, como se diz, é História. 

Ou Estória, porque este episódio (segundo os historiadores) nunca ocorreu. Seu maior popularizador foi o romance histórico Kenilworth de Walter Scott (1821), em que o caso todo é recontado com certo charme.

Gestos assim se fixam no inconsciente coletivo de um povo, porque em 1899, em seu livro The Wind Among the Reeds, William Butler Yeats publicou um pequenino poema, hoje um dos mais famosos de sua obra, intitulado “He Wishes For the Clothes of Heaven”, que diz: 

Se eu fosse dono dos panos bordados do Céu 
tecidos com luz de ouro e de prata 
os panos azuis e escuros e negros da noite 
e da luz e da meia-luz do crepúsculo 
eu estenderia esses panos aos teus pés; 
mas, já que sou pobre, tenho apenas os meus sonhos 
e os estendi aos teus pés; 
pisa devagar, porque estás pisando sobre os meus sonhos. 

Além da historicidade do gesto (familiar a qualquer britânico, pela tradição), o poema encanta pela beleza das imagens e pelo paradoxo de alguém não ter nada precioso para oferecer a sua dama, mas este mesmo fato torna preciosa a única coisa que ele tem: os seus sonhos.

Tudo que mergulha e se deposita no inconsciente coletivo pode ser trazido à tona pelo humor, que é uma perfuratriz capaz de atingir qualquer Pré-Sal em dois segundos. Em 1964, Richard Lester dirigiu o primeiro filme sobre os Beatles A Hard Day’s Night. Uma das sequências mostra Ringo Starr saindo dos estúdios, onde os amigos esperam a hora do ensaio, e indo passear sem destino por Londres. 

A certa altura, ele está atravessando algo que parece um canteiro de obras (não tenho o filme à mão agora, estou citando de memória). Aparece uma dama elegante que hesita diante de uma poça de água e lama. Ringo cobre a poça com sua capa, a dama passa e sorri. Mais adiante, outra poça. Ringo repete o gesto, ela fica ainda mais feliz. Mais à frente, uma terceira poça. Ringo coloca a capa mais uma vez, a dama pisa... e afunda até desaparecer, pois era um buraco enorme.

John Lennon, na letra de “I’m so Tired”, referiu-se a Raleigh: 

Embora eu esteja tão cansado 
vou acender outro cigarro 
e maldito seja Sir Walter Raleigh 
aquele bastardo tão estúpido. 

É uma referência a outra lenda: que um criado de Raleigh teria despejado um balde dágua sobre o patrão quando o viu fumando, por não saber o que era aquilo. Raleigh foi um dos responsáveis pela introdução do tabaco na Europa.





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