quinta-feira, 15 de abril de 2010

1911) Os tamarindos de Augusto e de Edgar (24.4.2009)




Eram magros, sombrios, neurastênicos. Ambos obcecados pela morte, ambos carinhosos com a família e os amigos mais próximos. Viveram em hemisférios diferentes, um na Paraíba, o outro na Nova Inglaterra, e separados por cerca de um século, mas habitaram ambos o mesmo mundo gótico e soturno, cheio de ameaças. 

Uma herança genética os predispunha à morbidez. Tiveram que arrastar durante toda a vida adulta o pavor da doença, a penúria financeira, o dever doloroso de sobreviver num mundo que não os entendia e não os comportava. Um morreu com trinta anos, o outro com quarenta.

Augusto dos Anjos era leitor de Edgar Allan Poe. Num questionário reproduzido em suas biografias, ele afirma que seus autores preferidos são Edgar e William Shakespeare. 

Falamos em influência quando temos certeza de que o autor mais recente leu de fato a obra do autor mais antigo, mas toda influência não passa de uma ressonância específica. Milhares de versos são lidos, e entram por um ouvido e saem pelo outro. E há um verso que se incrusta, por ressonância, na memória daquele leitor, e nunca mais o abandona.

Daí talvez o temor neurótico de Augusto em relação ao “Deus Verme”, o “fator universal de transformismo”, o qual não é muito distante do “Verme Conquistador” de Edgar, que é o herói da peça intitulada “Homem”. 

O Corvo que grasna “Nunca mais!” para um é talvez um dos “corvos carniceiros” cuja “asa de mau agouro” o outro tanto teme, e, que, ao comer suas fibras “há de achar nelas um sabor amargo”. 

O morfético que invade a tasca onde acontece uma bebedeira, na parte VII de “Os Doentes”, não é muito diferente da Morte Rubra que surge nos salões do Príncipe Próspero.

Ambos tentaram, num ambiente literário municipal e tacanho, circundar com a mente o formato do Universo. Sofreram a pior das torturas, a da alma inesgotável que quer tudo saber, tudo entender, e percebe estar presa a um pedaço de carne mortal. 

Augusto se refugiava à sombra de um pé de tamarindo, chorando “bilhões de vezes com a canseira de inexorabilíssimos trabalhos”, e desejando que após a morte sua sombra repousasse ali para sempre. 

Debaixo do tamarindo

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore de amplos agasalhos
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da flora brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade,
A minha sombra há de ficar aqui!

Edgar, em seu soneto “À Ciência”, louva essa “filha legítima dos tempos antigos”, que “espreita o coração do poeta como um abutre”. Queixa-se ele à Ciência: dessacralizaste o mundo, afugentaste os deuses e os espíritos que povoavam a Natureza, “...e, quanto a mim, arrebataste o sonho de verão à sombra do tamarineiro”.


SONETO -- À CIÊNCIA
(tradução: Milton Amado)

Ciência! Do velho Tempo és filha predileta!
Tudo alteras, com o olhar que tudo inquire e invade!
Por que rasgas assim o coração do poeta,
abutre, que asas tens de triste Realidade?

Poderia ele amar-te, achar sabedoria
em ti, se ousas cortar seu voo errante e ao léu
quando tenta extrair os tesouros do céu,
mesmo que a asa se eleve indômita e bravia?

Não furtaste a Diana o carro? E não forçaste
a Hamadríade do bosque a procurar, fugindo,
estrela mais feliz, que para sempre a esconda?

Não arrancaste à Ninfa a carícia da onda,
e ao Elfo a verde relva? E a mim, não me roubaste
o sonho de verão ao pé do tamarindo?


Sonhos de verão de dois rapazes magros, neuróticos, de olhos fundos, nascidos em mundos de escravidão recente e urbanização conflituosa. Observadores das madrugadas decadentes da cidade, das doenças, da peste, da mortandade de um mundo insalubre.

Encostados a um pé de tamarindo, com um livro aberto na mão, um deles pedia ao "sol brasileiro" que lhe queimasse os destroços; o outro celebrava "o sol à minha volta, em seu outono tinto de ouro".  Dentro deles era tudo uma Sombra só, e o tamarindo foi o de mais doce que a vida lhes deu.




2 comentários:

Maxwell F. Dantas disse...

Se o pós-morte for mesmo como os espíritas descrevem, acredito que ambos, dos Anjos e Poe, devem estar causando estranheza tanto aos anjos quanto às almas perdidas.

Finrod disse...

Na próxima Braulio... as frutas alienígenas de Lovecraft daria um comparada bel legal tb. rsrs