domingo, 4 de abril de 2010

1865) O bonzo e o terrorista (1.3.2009)





Foi um imagem que marcou minha adolescência, nos agora inatingíveis anos 1960. Guerras lavravam pelo mundo afora; ditaduras prendiam e torturavam; tanques invadiam países e depunham governos eleitos pelo povo. Havia no ar uma sensação de revolta moral, de desespero impotente, e de que “era preciso fazer alguma coisa”. E então... um belo dia abríamos a Veja ou a Manchete e víamos a foto de um bonzo oriental ardendo em chamas. A história era sempre a mesma. O monge dirigia-se, com seu manto colorido, sua cabeça raspada, para uma praça cheia de gente, no centro de alguma grande capital européia. Derramava sobre si mesmo um galão de gasolina, sentava-se na posição do lótus, e riscava um fósforo. Permanecia imóvel e em silêncio enquanto o fogo o consumia, o carbonizava, até que seus ossos comburidos se esfarelavam e eram espalhados pelo vento, diante das câmaras das agências Reuters, UPI, Associated Press e outras.

Corte rápido. Passaram-se quarenta anos. Não vejo mais bonzos ardendo em chamas nas praças da Europa, mas isto não quer dizer que não haja mais gente disposta a dar a vida por um ideal político. O bonzo de hoje em dia é o Homem Bomba, o terrorista que amarra em volta do tórax dezenas de invólucros de explosivo plástico ou bananas de dinamite, veste um casacão por cima, e vai se explodir num restaurante ou num ônibus lotado. Morre do mesmo jeito; oferece-se para morrer do mesmo jeito. Passa dias se preparando para o próprio suicídio, assim como fazia o Bonzo. Sua morte não é resultado de um impulso, de um desespero momentâneo. Ele tem todo o tempo do mundo para se arrepender e mudar de idéia, mas não o faz. Em termos de bruta fé, de crença impura e sem vacilos, é tão sólido quanto o bonzo budista.

Muita gente irá considerar que a passagem do Bonzo para o Homem Bomba é a subida de um degrau numa escalada rumo ao absurdo. Antigamente, os pobres monges se suicidavam em sinal de protesto; hoje, terroristas sanguinários matam não apenas a si próprios, mas a pessoas inocentes que nada têm a ver com o peixe. Mas é justamente essa motivação que me faz ver as coisas de outro modo. Para mim, o absurdo era a morte do Bonzo. A morte do Homem Bomba é plenamente explicável pela lógica da guerra. Trata-se de fazer vítimas entre a população inimiga, aterrorizá-la, fazê-la sentir na carne as injustiças que comete e temer os inimigos que arranja. O que pode ser mais lógico do que isto? Pode ser moralmente censurável, mas que tem lógica tem.

O que ainda me deixa intrigado é o sacrifício dos Bonzos. Matar a si mesmo na esperança de que uma única morte, por ser auto-infligida, possa comover os que matam milhões de pessoas, e fazê-los parar! Que esperança mais utópica do que esta pode haver? E se não é essa a esperança deles, qual poderá ser? O suicídio dos bonzos é algo que nos dá um recado sobre a natureza humana, que não entendemos porque ainda não estamos maduros para entender.



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