terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

1603) Cento e dez navalhas (2.5.2008)




A primeira brotou na sua mão quanto ele acabou de borrifar a espuma no queixo e nas bochechas. Pensava ter pegado no armariozinho do banheiro o prestobarba de sempre, mas quando foi dar a primeira raspada viu no espelho o relampejar da lâmina, e viu o cabo de osso escuro abrindo-se em ângulo, como os ponteiros de um relógio marcando oito e vinte. Olhou assustado, examinou-a, colocou-a sobre a pia. Deu alguns passos até o corredor para perguntar à esposa o que era aquilo, depois deu de ombros, seria algum presente, ou ela tinha comprado para si própria... A segunda surpresa veio quando não a achou. Usou o prestobarba e esqueceu.

A segunda navalha estava dias depois sobre a mesinha do porteiro, quando chegou em casa; mas o porteiro não estava ali para responder perguntas. Passou-se. Dias depois viu a terceira ao folhear uma revista, no escritório; e a quarta horas depois, num anúncio da TV; e a quinta, quase em seguida, na vitrine de uma loja de quinquilharias, quando voltava do almoço.

Vieram se sucedendo, ou talvez fosse sempre a mesma, mesma lâmina, mesmo cabo de osso, todas clones umas das outras. Uma brotou no bolso de seu paletó e ele a deixou lá, guardada, tocando com a ponta dos dedos para sentir seu peso, até que numa dessas vezes não mais sentiu, e ela não estava lá. Antes que fossem dez acostumou-se a contá-las, primeiro porque estava preparando um pequeno discurso sobre coincidências – “olha, se fossem duas ou três vezes, tudo bem, mas não pode ser coincidência você ver a mesma coisa, de maneira inexplicável, oito vezes em uma semana...” Só que logo eram nove, dez, onze.

Com a atenção exacerbada pelo mistério, ele as reencontrava por toda parte. Logo já procurava por elas. Encontrou uma numa canção de Chico Buarque sobre um malandro; outra, num livro de Plínio Marcos visto na prateleira de uma livraria; outra num fotograma de Buñuel. Com o passar dos meses, as aparições se amontoaram às dezenas, foram se tornando cada vez mais indiretas, sob a forma de palavras casuais numa conversas, detalhes quase imperceptíveis no quadro ou numa foto, ou até mesmo em formas abstratas (a silhueta de um pássaro preto de encontro ao céu nublado, um leque entreaberto na mão da personagem de um filme) que a traziam de volta, mimetizada, solerte, sutil.

Vê-las era sempre inesperado, por mais que ele soubesse ser inevitável. A surpresa passou a residir no modo indireto e alusivo como surgia. Não mais como o luzidio objeto brotando com peso e presença num lugar impossível, mas como uma forma esquiva que se desdobrava num relance (“Lembra de mim?..."), deixava-se entrever num vislumbre somente para os seus olhos, e um segundo depois, na continuidade do movimento, sumia para sempre. Foi com alívio e saudade que a de número cento e dez lhe surgiu de novo diante do espelho, sólida e oferecida, e ele aceitou-lhe o recado, e se sentiu como Moisés desacorrentando o Mar Vermelho.

Um comentário:

Fraga disse...

Clap, clap, clap!