terça-feira, 12 de janeiro de 2010

1511) Os edifícios eternos (16.1.2008)




(foto: Markus Senn)

Tempos atrás, numa inevitável mesa de bar, andei perorando contra a especulação imobiliária que “passa o rodo” em ruas antigas e em prédios históricos para instalar em seu lugar uns monstrengos de concreto com nomes de pintores famosos. 

Essas minhas diatribes não significam que sou contra o progresso, ou contra os edifícios de apartamentos (moro num deles, aliás). Acontece que todo mundo que se apega afetivamente a uma paisagem tem o direito de desejar que a existência dela se prolongue o máximo possível. 

Em Campina, demoliram anos atrás a casa em que eu nasci, na descida para o Ponto Cem Réis e o Alto Branco, para abrir uma rua de acesso, sendo que já existia outra rua de acesso a poucos metros de distância. Pergunto eu que necessidade tinha de demolir minha casa!

Manuel Bandeira tem um divertido poema sobre o Recife de sua infância. Fala que passou trinta anos sem voltar ali, que todo mundo elogia o quanto a cidade está crescendo e se pondo bonita, e diz no final: 

Revi afinal o meu Recife. 
Está, de fato, completamente mudado. 
Tem avenidas, arranha-céus. 
É hoje uma bonita cidade. 
Diabo leve quem pôs bonita a minha terra! 

Vejam bem: o poeta nem sequer diz que a cidade ficou horrorosa, ao contrário, reconhece que ficou bonita. Mas ele não a queria bonita e diferente, queria-a feia e igual. Queria-lhe a permanência. A permanência impossível.

É direito dos jovens de ontem amar um quarteirão de casinholas e lamentar sua substituição por um shopping-center, assim como será direito dos jovens de hoje amar esse mesmo shopping-center e lamentar um dia sua substituição por um quartel militar norte-americano. 

Cada um se afeiçoa à paisagem que serve de pano-de-fundo à sua história pessoal. Quando caminho pela Esplanada do Castelo, aqui no Rio, acho aquilo uma beleza: ruas largas e claras, prédios baixos, imponentes... 

Não tenho saudade do Morro que existia ali, e que foi botado abaixo no começo do século, à força de dinamite e de mangueiras de alta pressão. Que sinta falta do morro quem o freqüentava; eu sentirei falta da Esplanada, se um dia a vir ensombrecida por um mega-viaduto.

O mesmo Manuel Bandeira, ao celebrar com tristeza o beco em que morou na Lapa, disse: 

Vão demolir esta casa. 
Mas meu quarto vai ficar, 
não como forma imperfeita 
neste mundo de aparências: 
vai ficar na eternidade, 
com seus livros, com seus quadros, 
intacto, suspenso no ar! 

Não há imagem mais bela em nossa poesia para essa persistência da memória, em que o destruído se imortaliza. 

Por volta da mesma época desse poema, Drummond celebrava assim a destruição de Stalingrado pelo exército nazista: 

Mas o assombro, a fábula 
gravam no ar o fantasma da antiga cidade 
que penetrará o corpo da nova. 
Aqui se chamava 
e se chamará sempre Stalingrado. 
-- Stalingrado: o tempo responde. 

Que os prédios recém-chegados saibam receber com respeito o espírito das casinhas de porta-e-janela que lhes coube substituir.






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