segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

0807) A ética de Dom Quixote (19.10.2005)



(desenho de Picasso)

Dom Quixote é doido. Quanto a isto, parece haver consenso na aldeia da Mancha. Ele acredita em dragões, em gigantes, em feiticeiros tenebrosos capazes de transformar num passe de mágica um exército de guerreiros num rebanho de ovelhas, e vice-versa. Ora, todo mundo sabe que tais coisas não existem. O mundo não é assim, nunca foi assim; e o próprio Dom Quixote nunca viu tais coisas acontecerem em carne-e-osso à sua frente. Ele só encheu a cabeça com essas idéias malucas por causa das novelas de cavalaria que vivia lendo. Neste aspecto, um leitor de agora se identifica plenamente com o pragmatismo dos habitantes da aldeia e de Sancho Pança.

Tem um outro lado do fidalgo, no entanto, que nos deixa incomodados quando começamos a mangar dele. Apesar de visivelmente “de cabeça feita” pelos romances de cavalaria, Dom Quixote expressa uma porção de valores éticos que, em princípio, não têm nada de malucos. Pelo contrário. O seu nível ético é infinitamente superior ao dos indivíduos que o cercam. Ele acredita na Beleza, na Verdade, na Liberdade, na Honra. Ele acha que a função de um homem rico e poderoso (como acredita ser) é proteger a virtude da donzelas, socorrer pessoas em perigo, evitar que os mais fortes pilhem e espoliem os mais fracos, defender os honestos contra os desonestos e os pacíficos contra os violentos.

O choque-de-realidade que Dom Quixote sofre o tempo todo ao longo de suas aventuras não é apenas o de constatar que não existem gigantes, é o de constatar que não existem moças virtuosas ou homens honestos. O mundo inteiro parece mergulhado numa teia de falcatruas, de negócios escusos, de egoísmos. O fidalgo não é apenas um sujeito que quer implantar o mundo da fantasia sobre o mundo da realidade: ele quer implantar o mundo da honra sobre o mundo da lei-de-Gérson, das maracutaias, dos interesses mesquinhos com que se depara a toda hora.

Daí o uso moderno do termo “quixotesco”, que mostra o quanto nossos tempos modernos entendem a essência ética do Dom Quixote. Nunca chamamos “quixotesco” a um sujeito que julga estar contactando magos, avistando elfos ou sendo abduzido por extraterrestres. Quando vemos um cara no meio da rua brigando contra adversários invisíveis, chamamo-lo de maluco, e o remetemos de imediato pra João Ribeiro. Mas chamamos de “quixotesco” um sujeito que tenta viver de acordo com um plano ético elevado demais para caber a maioria das pessoas que vemos aparecendo na TV. Ser quixotesco é enfrentar inimigos poderosos e reais, é travar batalhas perdidas contra conglomerados financeiros ou megacorporações multinacionais, é achar que é possível travar uma guerra-de-um-homem-só contra a mistura de cinismo niilista, resignação apática e cumplicidade esperta que mantém de pé essa Coisa aí. Que Coisa é esta? Ora, meu caro leitor, eu posso estar ficando doido, mas não acho que seja um gigante. Visto daqui, parece mais com um Moinho de Moer Gente.




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