sábado, 13 de dezembro de 2008

0662) O xadrez quádruplo (3.5.2005)



Minha adolescência ociosa e inquieta me conduziu a incontáveis tarefas de Sísifo, aqueles projetos grandiosos e intermináveis que só nos parecem factíveis porque somos jovens e o excesso de energia em nossas veias nos dá uma sensação inebriante de onipotência e eternidade. O xadrez quádruplo não foi a menos insensata das coisas que tentei inventar aos dezesseis anos.

A idéia inicial, como de hábito, não era minha. Colhi-a num romance policial de Anthony Boucher que tinha o improvável título de O caso do valete amarrotado. No meio da trama, que ocorre (para variar) na mansão de um milionário onde se dá um crime misterioso, menciona-se várias vezes que o tal Mr. Garnett costumava convidar amigos “para jogar partidas de xadrez quádruplo”. Naquele tempo não havia Google nem Internet, e eu não tinha como verificar se esse tal jogo existia ou não. Na dúvida, decidi fazer com que existisse. Ainda tenho uma dezena de folhas de papel rabiscadas a lápis onde tracei-lhe as primeiras regras.

O tabuleiro foi a primeira coisa. Está na cara que o tabuleiro comum de 64 casas não comportaria os quatro exércitos envolvidos (que, se não me engano, estabeleci que seriam Brancas, Pretas, Verdes e Vermelhas). Aumentar algumas casas do tabuleiro era indispensável, mas os primeiros esboços que fiz deixavam os peões “de quina” em relação uns aos outros, ameaçando-se mutuamente. Daquele jeito, em vez de começar com um tradicional P4R as partidas já começariam com vorazes trocas de PxP. Minha solução ainda hoje me parece a mais correta: um tabuleiro central de 100 casas (10x10), com mais 64 casas adicionais distribuídas pelos lados, em quatro grupos de 16 casas onde ficariam aquartelados os quatro exércitos, nas posições convencionais.

A primeira jogada seria das Brancas, depois jogaria a equipe à sua esquerda, digamos que fossem as Verdes; depois as Pretas, e por fim as Vermelhas. O jogador que sofresse um xeque teria que esperar sua vez para defender-se; e não seria impossível que uma jogada anterior à sua o livrasse do xeque, ou o agravasse em mate. Lembro-me que levei muito tempo pare decidir o que ocorreria com as peças dos dois primeiros exércitos a sofrerem mate, se ficariam simplesmente congeladas em suas posições até o final (o que parece mais lógico e mais fiel à história da partida), ou se com a derrota suas peças seriam retiradas do tabuleiro, o que sem dúvida equivaleria a quase que zerar o jogo.

Não o entediarei mais, caro leitor, com estas experiências de escultura em fumaça. Hoje parece uma perda de tempo; mas jamais o foi para aquela mente jovem que zumbia febrilmente 24 horas por dia, no deslumbramento de reinventar um mundo que mal começava a descobrir. Criar o xadrez quádruplo nunca me pareceu mais absurdo do que escrever poemas surrealistas, compor rocks, imitar os roteiros de Glauber Rocha, estudar filosofia com Padre Maia, latim com Sevy Nunes e sociologia com Beatilo. Era tudo uma coisa só.

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