Como todo mundo, Jorge Luís Borges foi crítico de cinema durante uma fase de sua vida. Um texto seu de 1941 desce o sarrafo em Hollywood por “difamar” Robert Louis Stevenson com sucessivas deturpações de sua história O Médico e o Monstro. (Acusação semelhante poderia ser feita ao mercado editorial brasileiro, que há várias gerações traduz desta maneira caricata o título original, e mais sutil, The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde). Argumenta JLB que no livro de Stevenson existe um elemento de surpresa que o filme desdenha. No livro, somos induzidos a ver no Dr. Jekyll o protótipo do bom sujeito, e em Mr. Hyde o típico canalha criminoso. Quando no capítulo nono ficamos sabendo que os dois são a mesma pessoa, isto é uma revelação de ordem moral: o ser humano é dual. A força da demonstração brota dos julgamentos que proferimos quando supúnhamos que se tratava de dois indivíduos distintos.
Borges ironiza o diretor do filme: “Victor Fleming suprime todo o assombro e todo o mistério: nas cenas iniciais do filme, Spencer Tracy apura sem medo a versátil beberagem e transforma-se em Spencer Tracy, com peruca diferente e traços negróides”. Para mim, este problema de escalação de elenco é muito semelhante a um que experimentamos no Brasil, quando Walter Avancini fez a sua bem sucedida adaptação do Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa para a televisão. Avancini escolheu Bruna Lombardi para o papel de Diadorim, certamente pelo fato de que a atriz tem olhos verdes, como o personagem; mas com isto eliminou de cara toda a surpresa da revelação final de que Diadorim, tido como homem desde o começo da história, revela-se no episódio final como mulher.
Borges propõe dois atores diferentes para encarnar o médico e o monstro, com um “transformando-se” no outro no final. Eu proporia um Diadorim interpretado por um ator pouco conhecido, que fosse bonito, de olhos verdes, e que pudesse, em retrospecto, ser aceito como uma mulher disfarçada. A angústia de Riobaldo, no Grande Sertão, é o fato de ser homem e sentir que está apaixonado por outro homem. Fica difícil acreditar nessa angústia quando vemos o ator apaixonado por ninguém menos que Bruna Lombardi. A culpa não é da atriz, que se saiu masculinamente bem no papel, mas no fato de que, num “star system” como o de Hollywood e o da Globo, a “persona” pública dos atores sempre se sobrepõe aos personagens que interpretam. (Deixo de lado o segmento de público que desconhece Bruna Lombardi; é de nós que estou falando.)
O importante é tornar plausível para o espectador a ilusão inicial (Jekyll e Hyde são duas pessoas, Diadorim é homem), fazer com que ele creia nisto tanto quanto os personagens. Só assim pode-se capitalizar as emoções geradas por esta ilusão para dar mais força à reviravolta final. Só temos uma revelação legítima quando ela envolve a ruptura com algo em que acreditamos com força, com sinceridade, como uma verdade íntima e pessoal.
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