(Fernando Pessoa fazendo um poema)
Comentei ontem nesta coluna episódios ocorridos com Augusto dos Anjos e Cole Porter, que em momentos de doença grave compuseram versos impecáveis. Uma espécie de crispação mental foi capaz de elevá-los a um estado alterado de consciência, a uma epifania criativa.
Outro episódio curioso, e em alguns pontos semelhante, é narrado por Fernando Pessoa numa carta a Mário Beirão, em fevereiro de 1913 (“Crise psíquica”, em O Eu Profundo).
Pessoa atravessava uma fase de atividade febril, escrevendo aos borbotões. Uma fase que ele denominava “crise de abundância”, em que a mão mal tinha tempo de registrar por escrito a cachoeira de versos que lhe brotava da mente.
O poeta (que tinha fobia de trovoadas, desde a infância) voltava para casa certo dia, quando o céu carregou-se de nuvens escuras, e uma chuva pesada começou a cair. Tenso, angustiado com a possível proximidade de um ribombar de trovões, Pessoa apavorou-se e começou a correr para casa. Mas (como diria Veríssimo) deixemos que o próprio Fernando nos conte o que aconteceu.
“Atirei-me para casa com o andar mais próximo do correr que pude achar, com a tortura mental que você calcula, perturbadíssimo, confrangido eu todo. E neste estado de espírito encontro-me a compor um soneto – acabei-o uns passos antes de chegar ao portão de minha casa --, a compor um soneto de uma tristeza suave, calma, que parece escrito por um crepúsculo de céu limpo. E o soneto é não só calmo, mas também mais ligado e conexo que algumas coisas que eu tenho escrito. O fenômeno curioso do desdobramento é coisa que habitualmente tenho, mas nunca tinha sentido neste grau de intensidade.”
Eis o tal soneto, que ele intitulou Abdicação:
Toma-me, ó Noite Eterna, nos teus braçose chama-me teu filho... Eu sou um Reique voluntariamente abandoneio meu trono de sonhos e cansaços.Minha espada, pesada a braços lassos,em mãos viris e calmas entreguei,e meu cetro e coroa – eu os deixeina antecâmara, feitos em pedaços.Minha cota de malha, tão inútil,minhas esporas dum tinir tão fútil,deixei-as pela fria escadaria.Despi a Realeza, corpo e alma,e regressei à noite antiga e calmacomo a paisagem ao morrer do dia.
A história torna-se plausível quando vemos que o soneto, apesar de bom, tem todas as imperfeições de um improviso: repetição de palavras que se enfraquecem mutuamente (“braços”, “calma”), um primeiro terceto bem fraquinho, rimas óbvias.
Existe no entanto uma coerência estilística na descrição desse Rei que se despe de seus atributos de realeza; e existe verossimilhança psicológica nesse percurso mental de quem foge às angústias e às batalhas da vida real para regressar à paz dessa Noite simbólica.
Que um indivíduo seja capaz de produzir um poema tão articulado enquanto corre na base do pernas-pra-que-vos-quero debaixo de um toró, é para mim uma prova definitiva de que todo momento poético é um momento de loucura sob controle.
2 comentários:
Tal fato realmente confabula com a coluna anterior. Em momentos de grande tensão, abrimos nossa mente para as idéias. Curioso, hein?
Eu gosto de escrever romances e contos, mas há meses estou sem inspiração. Talvez eu precise passar por uma dessas tensões. =)
Será que é esse o problema? Eu lhe perguntei, mas era uma pergunta retórica, *há tempos não o via, eu sabia de seus posicionamentos, nem sei bem o porquê eu me emaranhei numa conversa com ele.
O supermercado estava vazio, a geladeira estava vazia, a minha cabeça cheia de coisas loucas atravessando a rotina, bagunçando a segunda-feira, eu precisava andar entre as prateleiras, buscar entre as verduras, pisar no ladrilho azul e amarelo( ou era branco encardido), escutar os ruídos, olhar os mendigos do lado de fora, fechar o livro.
“O mundo está melhor”. Ele me afirmou convicto, eu queria ter essa certeza. “Antes a maioria andava descalça, agora boa parte está calçada.” Eu brinquei querendo encerrar o assunto: O mundo está mais calçado, mas precisava ser Nike.
Rimos, ele havia se vestido de universitário...” neodesenvolvimentismo... o neomarxismo ... as leis... a ciência consciência”....Às vezes, eu me pergunto se perdi o trem? Ele entrou, eu não comprei o bilhete.
“Eu vou fazer sopa de Pelati com Petit Poá, passa lá em casa, vai todo mundo”
E saiu com a suas certezas, pagou a balconista, um real para o menino do estacionamento, cumprimentou o porteiro e foi fazer a sopa de tomate com ervilha para este suposto todo mundo. Eu fiquei no devaneio de um mundo pior, embalado por Há Tempos, Legião Urbana.
Postar um comentário