domingo, 27 de abril de 2008

0379) Os que escutavam (6.6.2004)




A força de um bom poema reside tanto no que ele diz quanto no que ele deixa de dizer. Algo semelhante ocorre nas boas histórias de mistério, que quando se encerram parecem ser ainda mais misteriosas do que durante seu transcorrer, e nos deixam com mais perguntas do que respostas.

O poema “The Listeners” do inglês Walter De La Mare (1873-1956) sempre me produziu esta impressão. Nunca o li em tradução, e fico imaginando como se traduziria seu título. “Os ouvintes”? Não gosto: a palavra tem entre nós uma conotação muito forte de “ouvintes de rádio”, é uma palavra muito contaminada de contexto. “Os que escutam”? Não sei.

Em todo caso, o poema começa dizendo: “—Há alguém aí? – perguntou o Viajante, batendo na porta banhada pelo luar, enquanto seu cavalo mastigava a grama no solo fértil da floresta.” 

É uma noite de lua, e esse cavaleiro veio bater à porta de um casarão aparentemente deserto. Um pássaro esvoaça da torrezinha do solar, assustado pela batida, mas “ninguém se debruça da balaustrada, enquanto ele permanece ali, perplexo e imóvel.”

O Viajante bate mais uma vez, com força: “Há alguém aí?!” 

A casa está às escuras e parece abandonada, mas o poeta revela que ela está ocupada por “uma horda de fantasmas que escutam aquela voz vinda do mundo dos homens.” O Viajante sente a estranheza daquele momento, daquela ausência de respostas, e volta a esmurrar a porta com toda força, erguendo a cabeça para as janelas e bradando: “Pois digam a todos que eu vim, e que ninguém respondeu! Digam que eu cumpri minha palavra!” 

Sua voz volta a ecoar no interior sombrio da mansão. Os fantasmas o escutam, mas não ousam fazer o menor movimento. Eles ouvem quando o Viajante caminha até o cavalo; ouvem seus pés montando nos estribos, e o som das ferraduras sobre as pedras. E o silêncio retorna, mais pesado do que antes, quando o som dos cascos do cavalo se perde à distância.

Que lugar é este? Que mansão é esta? Não sabemos. Vemos o desfecho de uma história que não nos foi contada, mas que ressoa dentro de nós como as batidas do cavaleiro noturno ressoam à porta da casa deserta.

Por que esse homem voltou? Por que os fantasmas lá dentro se escondem, silenciam, fazem de conta que não o ouvem chamar? Quem é esse Viajante que vem de tão longe, a essa hora, somente para cumprir uma palavra dada?

Temos a estranha sensação de que já vimos esta cena. A sensação de que já fomos aquela pessoa que para cumprir uma promessa bate em vão à porta de uma casa abandonada; e de que já fomos aqueles que se escondem e escutam alguém batendo à nossa porta, para um acerto de contas do passado distante.

Temos a sensação de que vivemos num país de surdos, de fantasmas amedrontados, e que há um homem que bate à porta deste país, para nos lembrar de um compromisso antigo; mas não temos força para atender. Fingimos que não o ouvimos, na esperança de que um dia ele pare de nos chamar.





2 comentários:

Unknown disse...

uma beleza esse seu comentário sobre o poema e a "escuta", porque estutar é mais do que ouvir, é querer com os ouvidos, dar conta de algo. Mesmo que seja indecifrável, mesmo que se escute só os fantasmas da memória. Muito bacana. obrigada.
abs
Lilian Zaremba
liliazaremba.blog.uol.com.br

Anônimo disse...

Simplesmente adorei essa interpretação do poema!
Me ajudou a entender algumas partes com o ingles mais antigo :)
obrigada!
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Estava na aula hj e minha professora falou que o nosso 'Traveller' pode significar Jesus Cristo chegando e batendo a nossa porta, mais nós nos recusamos a abri-la ou a escutar seu chamado.
eu achei interessante esse ponto de vista e confesso que não tinha pensado nisso antes..
beijos :*

Lyh