domingo, 24 de julho de 2016

4138) A arte de inventar regras (24.7.2016)



(foto: saite Catraca Livre)

Escrevi aqui, alguns dias atrás, sobre a chamada “poesia marginal”, movimento que no meu entender trouxe uma influência altamente positiva para as nossas letras.

No que me diz respeito como leitor e autor, a poesia marginal trouxe leveza, coloquialismo, humor e irreverência jovem para a poesia, no campo da temática. No campo da técnica, trouxe a fala das ruas para a página impressa, e devia haver um Prêmio Nobel de Literatura de 5 em 5 anos para quem pratica essa façanha, tão difícil quanto levar a Pirâmide de Quéops do Cairo para Paris.

Dito isto, parece até que sou partidário da extinção de elementos como métrica, rima, estrofe, forma fixa. Nada disso.

O verso livre (sem métrica obrigatória) e o verso branco (sem rima) não vieram para substituir os outros, e sim para serem opções a mais.  Uma nova forma de escrever, quando surge, não pretende extinguir as formas anteriores; e, aliás, não consegue.  São as formas que se extinguem a si próprias, quando deixam de ser úteis para quem escreve.  Rima e métrica (acho eu) continuam tão úteis hoje quanto eram há 200 anos ou dois mil anos.

Minha formação pessoal em matéria de poesia são duas escolas extremamente rígidas e exigentes: o Soneto e o Cordel. Perto dessas duas, a poesia aparentemente rigorosa de João Cabral de Melo Neto (por exemplo) é um carnaval de descontração. Daí que quando a “poesia marginal” pipocou por todos os lados, recuperando certas atitudes e certos processos verbais do Modernismo de 1922, isso foi uma água de coco na boca de quem, como eu, estava acostumado ao café-espresso da forma fixa.

Rima e métrica funcionam como algo que não tem (ao que eu saiba) uma palavra específica em português, mas que podemos definir como “restrições voluntárias” ou “regras arbitrárias auto-impostas”.  Em francês há o termo “contrainte” (pronuncia-se “contrant”) e em inglês o equivalente “constraint” (“constréint”). 

Para que serve isto?  Bem, muitas vezes um excesso de liberdade desorienta o artista (principalmente o iniciante), e algum tipo de restrição o ajuda a focalizar sua imaginação. A aparente dificuldade ajuda o poeta (o artista em geral) a concentrar qualidades que um excesso de conforto deixaria dispersas.

É isto que acontece quando estabelecemos que todas as linhas pares de um poema têm que terminar com os mesmos sons.  Ou que cada verso tem que ter um número fixo de sílabas.  Ou que todas as estrofes tem que ter o mesmo número de linhas, arrumadas da mesma maneira.  O poeta principiante, que pensa somente nas próprias emoções e nas próprias idéias, acha que isto é algo feito para prejudicar sua auto-expressão. Mas não é.

A luta do poeta com essas restrições auto-impostas é como a luta de um atleta com o levantamento de pesos numa academia: pra que fazer todo esse esforço, que não serve para nada?  A resposta é: serve para desenvolver os músculos do atleta. Quando falamos de poesia (e suas restrições: rima, métrica, etc.) esse esforço que parece desnecessário é para tornar o poeta mais hábil.  Fazê-lo explorar os limites do seu vocabulário – e do seu bom-senso, porque não basta encontrar uma palavra que rime com outra, é preciso que esta palavra dê a impressão de que entrou ali pelo seu sentido, e não pelo seu som. 

Do mesmo modo, o esforço para encaixar as idéias num metro, num ritmo, numa cadência, faz com que o poeta apure seu senso de ritmo, sua percepção de sutilezas.  Ele se torna capaz de produzir uma poesia mais leve, mais flexível, mais fluente, que não dê aquela impressão que nos dão os poemas mal feitos: a de uma coisa involuntariamente desconjuntada, sem jeito, cheia de solavancos. 

Num livro fundamental sobre tradução literária e linguagem, Le Ton Beau de Marot (Basic Books, 1997), Douglas R. Hofstadter diz: 

“Se você seleciona com habilidade o material de que vai precisar a fim de satisfazer as regras e restrições que você se impôs, vai dar a impressão de que está controlando o seu meio de expressão, em vez de estar sendo controlado por ele.  É um pouco o que ocorre com as grandes patinadoras no gelo.   A patinadora se identifica a tal ponto com as restrições e impossibilidades no seu trabalho que na hora da apresentação os seus movimentos dão a idéia de que ela está mostrando ao gelo ‘quem é que manda ali’ – quando na verdade sabemos que é o contrário.  A verdade é que, ao longo dos anos, quem manda ali é o gelo, até que o gelo a treinou tão bem que ela agora sabe o que deve evitar, e sabe o que fazer a fim de dar a uma platéia de pessoas leigas a impressão de que ela ‘faz ali o que bem entende’.  É preciso um longo aprendizado, dentro de um conjunto de regras e restrições, para que possa vir a ocorrer essa aparente inversão de comando”.

O poeta Tom Lehrer disse a Hofstadter: “Parece aos outros uma grande habilidade do poeta, mas ele apenas foi forçado a regiões inesperadas do espaço semântico (ou seja, o espaço de todas as idéias possíveis) por causa da rima, que é uma restrição auto-imposta”.  Em outras palavras, Lehrer diz que acaba pensando em imagens que jamais lhe ocorreriam se ele não tivesse a obrigação de rimar as linhas umas com as outras. 

Robert McKee, em seu manual Story – Substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro (Arte e Letra, 2006), diz o mesmo das aparentes limitações dos gêneros cinematográficos, e escolhe a poesia para dar um bom exemplo:

“Robert Frost disse que escrever verso livre é como jogar tênis sem a rede, porque quem mais estimula a imaginação são as convenções poéticas, que não passam de restrições artificiais e auto-impostas.  Digamos que um poeta decide escrever estrofes de seis linhas, rimando as linhas pares.  Depois de escrever a quarta linha, que já rimou com a segunda, ele se vê meio encurralado.  Precisa rimar a sexta linha com a segunda e a quarta, e o esforço para fazer isto talvez o inspire a imaginar uma palavra que não tem qualquer relação com o seu poema – ela apenas rima – mas essa palavra aleatória acaba gerando uma frase que produz uma imagem mental vívida, uma imagem que repercute nas cinco linhas anteriores, produzindo um novo significado, um novo sentimento, mudando o rumo do poema e lhe trazendo mais sentido, mais emoção.  Graças a essa limitação auto-imposta, o poema acaba alcançando uma intensidade que nunca teria atingido se ele pudesse usar qualquer palavra que lhe conviesse.  (...) O princípio da Limitação Criativa produz liberdade dentro de um círculo de obstáculos”. 

Cada poeta recomeça a poesia do Grau Zero. Cada poeta tem pelo menos uns cinco mil anos de experiências alheias para usar como lhe der na telha. Se ele não gosta de linguagem descontraída e de poemas-piadas, tudo bem, ninguém o está obrigando a escrever assim. Se não gosta de odes pindáricas ou de epigramas, tudo bem, não precisa escrever. Eu não escrevo sextilhas por que alguém me obriga, e sim porque acho a forma bonita, domino meia dúzia de truques relativos a ela, e ela me serve muitíssimo bem para produzir pequenos impactos poéticos no leitor.

O poema é seu. A regra é sua, a ausência de regras (se é disso que você gosta) também. A tradição existe como música inspiradora, não como obrigação. (A “poesia marginal” também já é uma tradição, entre tantas outras.)









sexta-feira, 22 de julho de 2016

4137) Sherlock e as cifras (22.7.2016)



Na sequência inicial do romance O Vale do Medo (que li como O Vale do Terror, numa tradução atribuída a Álvaro Pinto de Aguiar), Sherlock Holmes exibe a Watson uma mensagem criptografada que recebeu de um trânsfuga da quadrilha do Professor Moriarty. O sujeito chama-se Porlock e está tentando repassar uma mensagem a Holmes antes que o Professor desconfie da traição.

Holmes executa aqueles saltos acrobáticos de raciocínio que arrebatam tanto Watson quanto o leitor, mas que dependem sempre de uma suposição ousada do detetive que, ao ser confirmada, vejam só, era exatamente o que ele precisava para que desse tudo certo. Conan Doyle era engenhoso, mas não tão engenhoso quanto seus sucessores no gênero. Era escritor também de romances de aventuras, e Holmes era teatral e prestidigitador também, porque não dava para ser cerebralmente dedutivo todas as vezes.

Holmes mostra a Watson os números rabiscados numa tira de papel que ele extrai de um envelope. Referem-se a páginas e a palavras, diz ele; e rapidamente chegam a um Almanaque onde basta seguir uma numeração indicando página, palavra, coluna, etc. Copiando palavra por palavra, eles reconstituem o recado. ( O seriado de TV Sherlock, com Benedict Cumberbatch no papel título, usou esse código no episódio The Blind Banker, 2010.)

A certa altura da mensagem aparecem ao invés de números palavras, dois nomes próprios, um deles repetido. “Eram palavras que não seria possível encontrar no almanaque utilizado, e ele precisou escrevê-las” diz Holmes. Talvez esse pequeno deslize criptográfico tenha ajudado a desencadear a violenta história que envolvia o passado nebuloso de um tal Sr. Douglas, o senhor da mansão Birlstone.

Salta para 2016. Cory Doctorow (do saite BoingBoing) comentou, numa entrevista, o fato recente de que quando Edward Snowden foi entrevistado num local secreto pela jornalista Laura Poitras, foi registrada uma imagem de um livro de Doctorow, Homeland, entre o pertences pessoais de Snowden. O escritor disse que o livro foi entregue a Snowden pela própria jornalista. O objetivo dos dois era usar um livro para se comunicar com códigos numéricos desse tipo (livro tal, página tal, linha tal, palavra tal), onde é preciso saber que chave (que livro) está sendo utilizada. E como a conversa iria envolver termos técnicos com certa frequência, precisavam de um livro onde essas palavras pudessem ser encontradas facilmente.

Como organizar um código assim, e ser mais esperto do que Sherlock Holmes em pessoa? Duas cópias idênticas de um mesmo livro garantiriam exatidão absoluta. Dá pra tecer muitas variações dramatúrgicas. É possível ter dois livros que pareçam idênticos mas não o sejam; ou o contrário.  É possível também que sejam muito diferentes um do outro (duas antologias de poemas, p. ex.) mas coincidam num número mediano de páginas que são gêmeas, e é lá que se faz o código. Alguns romances recentes usaram variações disto. O Clube Dumas, de Arturo Pérez-Reverte, tem uma subtrama de código envolvendo ilustrações de livros raros.

O código mais bem sucedido de Conan Doyle, no entanto, tinha sido alcançado em 1903 com “The dancing men”, o conto com as famosas fileiras de bonequinhos em diferentes posições, rabiscados a giz, formando um código cujo arrazoado de decifração vai na mesma linha de O Escaravelho de Ouro (1843) de Edgar Allan Poe, o mestre que ele reverenciava.  O criptograma de Poe consistia em letras, números e sinais gráficos comuns. O conto de Doyle ganhou uma marca visual muito forte com o uso dos bonequinhos.  E é um dos melhores de todo o cânone.

Não sei até que ponto era familiar a Conan Doyle o conto do seu rival francês Maurice Leblanc, o criador de Arsène Lupin, porque em 1911 Lupin decifrava “O enigma dos raios solares” (Les jeux du soleil), contando quantas vezes, sucessivamente, um reflexo do sol era projetado de uma janela. Depois de anotada a lista de números, havia um pequeno anticlímax quando Arsène Lupin indicava ao narrador que considerasse 1=A, 2=B, 3=C e assim por diante.

As “histórias de códigos e de cifras” são um nicho específico da literatura detetivesca, mas são também uma espécie de gênero transversal, que pode estar presente em diferentes gêneros: espionagem, guerra, policial, aventura, terror. É qualquer história onde haja um código a ser decifrado por algum personagem, às vezes em conjunto com o leitor.

Voltando à The Valley of Fear, um romance de 1915, a lista de números anotada pelo delator Porlock para Holmes até que podia chamar a atenção e a desconfiança de alguém. Códigos mais sutis são disfarçados em ações anódinas. Um especialista nisto é Rand, um agente do serviço secreto que nos contos de Edward D. Hoch consegue ser mais esperto do que os espiões mais escorregadios. A mensagem subjacente a todos os contos envolvendo Rand é que qualquer série ordenada (e fielmente memorizada por pelo menos duas pessoas) pode servir de encriptação para as letras e os números que usamos para comunicar informações.

Robert Heinlein tem um conto onde aparecem dois presos numa cela. Estão sendo vigiados, em som e áudio, dia e noite, mas o preso mais antigo tinha consigo um baralho. O alfabeto inglês tem 26 letras. Um baralho tem 52 cartas. Valendo-se dessa coincidência, os dois atribuem valores, fingem jogar paciência e trocam mensagens de texto um com o outro, mesmo submetidos a um cerrado Big Brother orwelliano 24 horas por dia.

O Rand de E. D. Hoch é um macaco velho do Serviço Secreto, aquele cara que já viu tudo, mas cada história lhe revela uma novidade. Há um conto em que uma moça do escritório, agente dupla, está vazando informações preciosas para o inimigo. Rand manda examinar tudo dela, em casa, no trabalho, nada encontra. Segue-a pela cidade, por todos os bares que a moça frequenta. Ela conversa, bebe, fuma, ri, diverte-se inocentemente e Rand, a três mesas dali, vigia, vigia, e nada percebe. Até que pensa um dia: “Ela fuma o tempo todo.”  A moça soprava fumaça para a esquerda, para o alto, em jatos longos, em pequenas explosões de fumaça... “O outro cara a seguia de longe, mas podia vê-la sempre, e ela ficava mandando sinais de fumaça”, diz Rand, fechando a pasta do caso.

Há um código especial muito explorado por Ellery Queen: a vítima, depois de ser ferida ou alvejada, e depois do criminoso ter ido embora, ainda tem forças para um último gesto para denunciar quem a matou. Precisa ser algo que indique de maneira clara “Fulano”. Mas não pode ser algo como um nome escrito na areia, porque se Fulano voltar vai apagá-lo depressa. Tem que ser um gesto denunciando o criminoso, mas um gesto que o próprio criminoso não entendesse, nem a polícia. Quem acaba entendendo é Ellery Queen, numa série de deduções miraculosas.

Seria interessante uma história de espionagem onde uma mesma mensagem admitisse duas decifrações diferentes, mas possíveis de justificar, como certas provas de teoremas matemáticos. A série de números, lida com a chave X, diria: “dez encouraçados, cinco torpedeiros, um portaviões, latitude tal, longidude tal”, e decifrada de acordo com outro código os mesmos números estariam dizendo: “há dois agentes russos no Parlamento, três no Almirantado, quatro na Câmara dos Comuns”.






quarta-feira, 20 de julho de 2016

4136) A poesia intraduzível (20.7.2016)



Eu estava passeando pelo Templo de Delfos (http://www.elfikurten.com.br/2015/06/bertolt-brecht.html) quando me deparei com uns versos de Bertolt Brecht que eu tinha lido na idade certa. “Aos que virão” ou “Aos que virão depois de nós”, um longo poema sobre os tempos difíceis em que viveu, e que no caso de Brecht não foram poucos.  

Brecht é um grande poeta, tão grande que até seus poemas políticos são belos poemas (danem-se as exceções). Talvez o elogio de uma ideologia política, de uma religião, de uma bandeira social específica sirva de entrave ou de camisa-de-força para muitos poetas. Para outros, não.

É natural. Há talentos tão transbordantes de poesia que a derramam até nos mais inviáveis recipientes. Os poemas políticos de Brecht talvez tenham sido mais políticos do que hoje, na época em que surgiram, mas para nós valem hoje pelo que têm de poético. Há muitos belos poemas políticos dentro da obra de Carlos Drummond, de Pablo Neruda, de Cecilia Meireles, de Vladimir Maiakóvski, de Bob Dylan.

Brecht, para mim, foi acima de tudo um daqueles socialistas sinceros que nunca acertaram o pé pelo tambor autoritário. Caminhavam sempre numa zona de paixão personalíssima por um certo ideal de igualdade, e em tensão constante com qualquer regime vigente. Como Maiakóvski, como Eisenstein, como Tarkóvski. Dizer que não merecem ser lidos ou assistidos porque são esquerdistas é como não ouvir Bach porque era protestante, ou não ler Rimbaud por ter virado traficante de escravos. Qualquer um deles podia querer ser qualquer coisa. A arte, quando tem, transborda.

Um ponto forte da poesia de Brecht é o modo como ele usa pequenos sofismas filosóficos ou pequenas mudanças de ponto de vista que puxam o tapete do leitor. O chamado distanciamento brechtiano é muitas vezes um ângulo novo de uma história muito conhecida. Ele gosta também de parábolas, koans, microhistórias, canções bíblicas, sentenciosas, onde ele superpõe pequenas metáforas do mundo dos seres vivos e dos objetos à nossa volta. Nesse sentido, seu verso tem uma cadência mais bíblica do que a de muitos poetas cristãos. É a voz bíblica do Eclesiastes, dos Provérbios, dos Salmos, do Livro da Sabedoria. É bíblico quando produz parábolas de quatro ou de seis linhas, em estruturas bem nítidas. É bíblico como Leonard Cohen.

E vejam só, eu aqui deitando e rolando, e a verdade é que nunca li Bertolt Brecht, porque meu alemão não resolve nem as manchetes dos jornais. Só li as traduções dos poemas dele. Primeiro em português, português-de-Portugal e espanhol. Depois em francês e inglês, em muitas antologias, coletâneas, etc. Meu semestre de alemão no Instituto Goethe da Bahia me ensinou um básico muito útil, mas eu não sei se reconheceria aqueles versos que tanto reli, se visse uma estrofe como esta:

In die Städte kam ich zur Zeit der Unordnung

Als da Hunger herrschte.

Unter die Menschen kam ich zu der Zeit des Aufruhrs

Und ich empörte mich mit ihnen.

So verging meine Zeit

Die auf Erden mir gegeben war. (...)

No estado atual dos meus estudos, se lesse isso sem qualquer pista do que era, eu saberia que Städte é cidade, Zeit é tempo, Hunger é fome mesmo, e ficaria em dúvida sobre Erden, mas pensaria se era o mesmo que Earth. Com esses elementos, eu poderia até lembrar do poema de Brecht. Mas a prova final estaria na melodia, na cadência sonora das palavras do poema, aquilo que eu chamo o murmúrio, a toada subjacente, a presença sonora daquilo tudo.


A cidade, o tempo, o não sei o quê, a fome. Os homens, o tempo, alguma coisa séria entre eu e eles. Alguma coisa sobre o tempo, sobre a terra, e um não sei quê final. Um conteúdo assim, derramado nessa ordem, acabaria acordando minha memória, que diria, estremunhada: “aquele poema-textão de Brecht sobre anos de chumbo, Aos Vindouros ou coisa parecida”.

Lá em Delfos os versos aparecem em traduções de Paulo César de Souza e de Manuel Bandeira. Depois, remexi nas minhas estantes e localizei a mais antiga que eu lembrava, de Fernando Peixoto.

Primeiro, a tradução de Paulo César de Souza para esse trecho:

À cidade cheguei em tempo de desordem
quando reinava a fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
e me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
que sobre a terra me foi dado. (...)

(Digressão: No texto acima tomei apenas uma liberdade: iniciei os versos com letras minúsculas, seguindo o fluxo do texto em si. É dessa maneira que prefiro alinhar o que escrevo ou transcrevo. No original, todas as linhas começam com maiúsculas. Os editores-de-texto de hoje oferecem isso como primeira opção, acho. Mas eu prefiro quando o texto é pontuado como se fosse de prosa, sem levar em conta as quebras de linha; ele dá a impressão de um líquido derramado num recipiente e se acomodando bem direitinho.)

Esses versos de Brecht, curiosamente, têm uma cadência de sextilha. Não estou falando das sextilhas de três dísticos do cantador nordestino ou da Bíblia, mas a sextilha melódica do blues. Tal como nesses blues, a terceira e a quarta linha desse trecho são variações simétricas das linhas 1 e 2; e as duas linhas finais têm uma melodia diferente dessa. Não seria nada difícil verter uma estrofe assim para o inglês (ressalvando que as linhas não rimam entre si).

Falei estrofe mas esse trecho é o início da parte II do referido poema. Tal como Drummond ou Bandeira, Brecht incrustava trechinhos rimados e metrificados no meio de um texto cheio de linhas longas e linhas curtas. O verso visto de longe parece totalmente livre, mas ali dentro há muitos trechinhos de métrica repetida, impecáveis.

Na tradução acima, não se pode pedir melhor junção de um verso de doze sílabas seguido por um de seis sílabas. Para mim, como leitor champoliônico, mesmo que essa contagem 12/6 não seja a mesma em alemão, o tradutor manteve a relação verso longo / verso curto. Porque a natureza de certos tipos de poema requer que esses tamanhos se alternem, e às vezes o tradutor, a bem da compreensão, mexe nas frases e a linha que era grande fica pequena ou vice-versa. Isso para mim, como leitor, é mais incômodo do que ver um decassílabo ser traduzido com 9, com 11, com 12. Se tiver o peso do verso original, que diferença faz uma ou duas sílabas?

A tradução de PCdS segue a cadência, o murmúrio poético do original. Isso é mais fácil de seguir, de certo modo, quando o poeta usa quaisquer formas fixas de estrofe, formas recorrentes (dísticos, tercetos, quadras, sextilhas, etc.).

Além da extensão relativa das linhas, outra coisa importante, que pesa ainda mais na tradução da poesia, é tentar dar às palavras o mesmo peso que têm no original – abrindo ou fechando uma frase, p. ex.  Se isso no original corresponde a mais impacto, se dá um sentido adicional ao texto, é bom que se mantenha, embora nem sempre dê. Uma coisa que eu talvez mexesse seria a ordem proposta por PCdS. Em vez de “À cidade cheguei em tempo de desordem” (um dodecassílabo de que meu ouvido divide em segmentos assim: 3-3-2-4), eu seria menos fiel ao original, inverteria os termos e poderia dizer também: “Eu cheguei à cidade em tempos de desordem”, de cadência equivalente.

Eu botaria esse “tempos” assim mesmo, no plural. Me dá a idéia de tempos muito interessantes, diversos, contraditórios, plurais. (E porque o ouvido me lembra que em nordestinense esse uso, quando no singular, tem outra conotação, quando dizemos: “Não me provoque não que eu estou em tempo de explodir”, “Ele está em tempo de enfartar porque não consegue resolver esse problema”, etc.  É um equivalente nosso ao “a ponto de”.)

Na página aparecia outra tradução, olha de quem, Manuel Bandeira. Fui direto ao começo da Parte II do poema. Eis a versão bandeirana da coisa (com texto minusculado onde cabe):

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra. (...)

A cadência da primeira linha, neste caso, eu leio como 4-2-2-4. A segunda linha, em ambos, está igual, com seis sílabas e acentuação 4-2. (É engano meu ou o verso original alemão só tem cinco, mais uma átona que não conta?) Veja-se que Paulo César de Souza manteve nas linhas 1 e 3, as linhas longas, a mesma cadência 3-3-2-4: “À cidade cheguei em tempo de desordem”, “Entre os homens cheguei em tempo de tumulto”. Para mim basta esta repetição de cadência para tornar o verso sonoramente verossímil, mesmo (repito) que a contagem das sílabas em português seja diferente do que tem no alemão.

As duas linhas finais deste trecho precisam ser bem escolhidas, porque elas se repetirão pelo menos duas vezes nessa mesma estrofe. Quando Brecht diz “Assim passou o tempo / que me foi concedido na terra”, ele eleva o tom, mesmo usando palavras simples. Eleva porque em vez de descrever situações concretas, datadas, ele está falando meio filosoficamente, é quase um acerto de contas com a vida. Tem que ter o tom bíblico, mais eclesiástico do que escolástico, mais sentencioso do que retórico. ‘Cause the times, they are a-changing.

Os versos de PCdS são um de seis sílabas (cadência 2-4) e um de oito (4-4). Manuel Bandeira diz: “Assim passou o tempo / que me foi concedido na terra”. O primeiro verso é igual ao de PCdS, mas o segundo tem nove sílabas, com cadência 3-3-3, mais uma átona, “...ra”, que não conta. (Mais uma vez: posso estar pronunciando errado, mas em princípio o verso original alemão também tem nove, com cadência 3-2-4.)

Comparando as duas versões, percebi que nenhuma das duas era a que me vinha mais espontaneamente à memória. Essa era uma terceira: a da minha primeira e mais constante leitura, visto que tenho o livro comigo até hoje: Brecht – Vida e Obra (Rio, José Álvaro Editor / Paz e Terra, 1974, 2ª. edição),  de Fernando Peixoto, e o poema (provavelmente traduzido pelo próprio), aparece como Aos que virão depois de nós, no final, nas páginas 347-348.

Eis a tradução de Fernando Peixoto (minusculada ao meu modo):

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o  convívio dos homens no tempo da revolta
e me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.

Eu vejo algo de teatral nesse “Eu” que encabeça triunfante os dois dísticos iniciais. Muito mais forte, muito mais energético, do que “À cidade cheguei...”...  “Para as cidades vim...”. Para quem imprime o texto na página pode parecer prescindível, mas não imagino um ator, mesmo um ator brechtiano, que abrisse mão de iniciar uma frase de impacto com um monossílabo tão augusto. A página pode ser sutil, mas a presença física da voz do ator precisa se impor com as armas que tem. A palavra “eu”, em alto e bom som, é uma delas. Não deve ser malbaratada, mas precisa estar sempre a postos.

A tradução de FP me parece (talvez pelo vêzo de saber que ele é diretor de teatro) a menos preocupada com exatidão métrica e mais atenta para a emissão física pela voz de alguém. (Praticamente todo poema de Brecht era assim, mesmo os que não eram poema-de-peça, os que eram poemas-para-publicar.)  Seus primeiro e terceiro versos têm treze e dezesseis sílabas respectivamente, mas só percebemos isto quando os checamos de encontro ao original ou às outras traduções. Em si e por si, são versos longos que podem ser escandidos com vigor sem se diluir no meio do caminho: “Eu vim / para o convívio dos homens / no tempo da revolta”.

Comparando versões assim sempre podemos achar que uma tradução é mais fiel à linguagem, outra é mais bonita, outra mais próxima ao conteúdo, outra reproduz melhor as cadências semiaudíveis. E tudo isto vai produzindo em nossa imaginação uma espécie de ilusão, de fantasia: a fantasia de que lemos as frases escritas por Brecht num idioma que desconhecemos.


(Para mim, e acho que para a maioria dos leitores, isso forçosamente relativiza nossa apreciação dos poemas japoneses de Bashô, dos poemas médio-ingleses de Chaucer, dos poemas russos de Pushkin, dos poemas persas de Omar Khayam, e assim por diante.) 





domingo, 17 de julho de 2016

4135) "Submissão" de Michel Houellebecq (17.7.2016)




Este romance foi lançado na semana do atentado ao “Charlie Hebdo” em Paris, quando vários desenhistas foram assassinados por fanáticos jihadistas. (É esta a versão vigente na época em que escrevo; sei lá o que já terão descoberto sobre esse fato daqui a 50 anos.)  

Houve uma certa saia justa, porque podia ser até o livro certo, mas era na hora errada. Numa hora em que o Islã, ou pelo menos uma parte ruidosa e pungitiva do Islã, praticava uma carnificina, ninguém que tivesse lido ou tomado conhecimento deste livro deixaria de ligar as duas coisas, sabe-se lá com quantas arrobas de preconceito.

Soumission (2015) saiu no Brasil pela Alfaguara, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar. É quase uma ficção científica, um romance de antecipação ambientado no ano de 2022, num futuro-próximo em que um candidato muçulmano se elege presidente da França. 

Ben Abbes, o candidato da Fraternidade Muçulmana, vai para o segundo turno contra um candidato de direita, e com isso consegue o apoio da esquerda, e se elege. A França adere ao véu, ao Corão, iniciando um movimento de islamização da Europa.  Alguns personagens anunciam a substituição de uma civilização decadente por outra em ascensão.

Foi estranho estar lendo este livro justamente agora. Comprei por acaso, na calçada, e já estava mais ou menos na metade quando ocorreu o atentado que matou dezenas de pessoas em Nice (e que ainda não se sabe se foi atentado jihadista ou gesto pessoal de loucura). E depois a tentativa de golpe contra o presidente da Turquia, uma história ainda confusa no momento em que escrevo, mas onde houve um componente de atrito entre presidente islamizador e forças armadas “laicas”.

Não tinha lido outras coisas de Michel Houellebecq, que conheço apenas das entrevistas onde ele parece ser um excêntrico, desbocado, cheio de opiniões idiossincráticas, vasta erudição e verve verbal temível. O livro tem tudo isso. Ele também é meio chegado a temas de FC, provavelmente pertence àquela geração de intelectuais franceses que há 40 anos estavam lendo traduções de Philip K. Dick.

O narrador, François, é um professor da Sorbonne, solteirão, sem família alguma, que vive da fama dos seus trabalhos sobre a obra de J.-K. Huysmans, o autor decadentista de À Rebours (1884), Là-Bas (1891) e outros. 

François narra sua rotina, seus namoros com as alunas, suas saídas com garotas de programa, sua frustração profissional, etc., aquela tradicional crise da meia-idade do personagem do mainstream literário do Ocidente. Tudo se encaminha para mais um romance existencialista-realista-parisiense, mas chegam as eleições e Ben Abbas sobe ao poder. 

É uma guinada philipkdickiana na História, e François, a França, os franceses, todo mundo é jogado para uma realidade paralela.

Em momento algum (preciso reconhecer) Houellebecq faz uso de algum tipo de jargão, figura narrativa ou clichê da FC; também não dá aquelas piscadelas cúmplices para certo grupo de leitores de gênero (“prestem atenção neste nome próprio, é para mostrar que eu já li Fulano”). 

Seu livro é para os franceses seus contemporâneos. Pelo uso maciço de personalidades reais (políticos, pessoas da mídia, etc.) deve ser uma leitura divertida onde podemos ver políticos de verdade enredados, mesmo que à distância, numa realidade meio fantástica.

Digo meio à distância porque o narrador de Houellebecq só fala de si mesmo, é um simpático e patético poço de solipsismo. Ele só fala dos próprios problemas, mesmo sendo uma testemunha viva de um momento histórico mais importante do que, por exemplo, a Passagem do Milênio. 

É o Retorno do Reprimido, de certo modo. O refluxo dos colonizados, como uma flecha no coração do colonizador. A Europa invadida pelo Oriente; não pelos seus exércitos, mas pelos seus estudantes, pelos seus profissionais do subemprego, pelos seus carregadores do piano alheio, pelos seus biscateiros e pelos seus operários-padrão, pelos seus refugiados de guerra. 

Um exército que invade em paz. Invade querendo agradar a cidade invadida. Invade não num movimento bélico, mas numa onda geopolítica somada a um vagalhão demográfico. Não é o “uh-tererê!” da guerra.  É o tsunami silencioso dos tempos daquilo que chamamos paz.

E vejam só, na França islamizada-do-dia-para-a-noite de Submissão ninguém pega em armas, os mosqueteiros do rei não saem à rua, os filhos da pátria não formam seus batalhões, a guilhotina não fica fazendo traco-traco até o dia amanhecer. A França de Houellebecq parece aceitar passivamente essa troca de civilizações, quase como se estivesse cansada de ser o centro do mundo. (Sim, a França pensa que é o centro do mundo, e quem pode censurá-la por isso?)  Quase como se a submissão fosse o relaxamento final de uma tensão custosamente mantida; como se entregar-se ao inimigo trouxesse ainda mais prazer do que lutar contra ele.

E no entanto o livro continua a ser um romance existencialista. O leitor com perfil FC ou de romance histórico fica querendo saber o papel dos EUA e da Rússia nesse cataclismo, saber o delicado balanço político de potências vizinhas como Inglaterra, Alemanha, sei lá... Nada. Sabemos pouco do que acontece fora do quarto-e-sala de François.  Do que acontece fora da cabeça de François. 

Ele se deixa progressivamente atrair para o Islã, cuja Sorbonne privatizada lhe promete um salário três vezes maior e o direito a casamento poligâmico. Quem hesitaria? Diante de uma oferta dessas proporções, a França de Houellebecq não hesita, parece entregar-se de graça e sem luta, deixa-se tomar pelo inimigo, descobre na última frase que ama o Grande Irmão.







sexta-feira, 15 de julho de 2016

4134) Os leitores de Edgar Wallace (15.7.2016)





Quando li pela primeira vez o Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, por volta de 1972, um parágrafo me chamou a atenção. Um dos mistérios mais intrigantes do livro é o assassinato do tio de Quaderna, o narrador da história. Dom Pedro Sebastião é morto numa pequena torre sem acesso externo e com a única porta de acesso interno trancada por dentro, além de pessoas permanentemente ali, na base da torre e em volta dela. O fidalgo aparece apunhalado. Quem o apunhalou? Como entrou, e como conseguiu sair?

Esse é o enigma clássico de quarto fechado, ou crime impossível. É o subgênero que inaugurou o moderno romance detetivesco, porque “Os Assassinatos da Rua Morgue”, com que Edgar Allan Poe de certo modo criou o gênero em 1841, é o enigma de duas mulheres mortas num apartamento todo trancado por dentro. Como se evadiu o criminoso?

John Dickson Carr e Clayton Rawson são dois grandes prestidigitadores literários, especialistas nesse número. O locked-room mystery vai de uma precisão enxadrística até uma mirabolância barroca na invenção de métodos cada vez mais requintados de cometer um crime fisicamente impossível. E no entanto não há limite para a engenhosidade de discípulos de Doyle, Christie, Queen, Freeman, Van Dine, Edgar Wallace.

Comentando a morte brutal do seu padrinho sertanejo, no interrogatório a que é submetido pelo Juiz Corregedor que investiga o caso, diz Quaderna:

- O fato foi verificado no processo, Excelência: não havia indício nenhum! Eu não já lhe disse que isto aqui é um enigma sério, um enigma de gênio, um enigma brasileiro, sertanejo e epopéico? Ora, indício! Com indício é canja, qualquer decifrador estrangeiro decifra! No caso, não havia nada: nem vela dobrada, nem disco mortífero, nem botões de camisa, nem abotoaduras de ouro, nem fios de cabelo, nem alfinete novo, nem nada dessas outras coisas que costumam fornecer pistas aos decifradores dos ridículos enigmas estrangeiros!

Em momentos assim, Quaderna é uma espécie de Policarpo Quaresma com recursos de João Grilo para não se levar demasiado a sério. Nessa lista de Quaderna há pelo menos dois enigmas clássicos do crime de quarto fechado; é o autor pedindo a bênção a suas leituras de meninice e juventude.

Ariano se refere a dois romances do inglês Edgar Wallace, um dos maiores produtores e vendedores de romance policial da História: A Pista do Alfinete Novo (ou Na Pista...) e A Pista da Vela Dobrada. Em cada um deles, o objeto citado no título é encontrado na cena do crime e cabe ao detetive demonstrar como, por meio desse objeto, o criminoso conseguiu sair e, do lado de fora, trancar a porta por dentro, mediante cordões, mecanismos, etc.

Wallace foi fartamente traduzido em edições populares no Brasil. Uma busca superficial na web mostra livros seus pelas editoras Globo, Cultrix, Ediouro, Francisco Alves, Civilização Brasileira e Itatiaia.

Uma série importante de romances seus saiu pela antiga Coleção Amarela, da Editora Globo (de Porto Alegre). Publicada entre 1931 e 1956, a coleção publicou um total de 35 livros de Wallace, entre os quais esses dois romances. O Na Pista do Alfinete Novo saiu em 1936, e foi relançado (como A Pista do Alfinete Novo) em 1956; e A Pista da Vela Dobrada saiu em 1939. Ariano, morando no Recife a partir de 1934, pegando livros e revistas dos irmãos mais velhos, teve acesso à coleção, que coincide com um dos bons momentos da editora.

Sergio Karam fez uma pesquisa detalhada sobre a Coleção Amarela, que pode ser acessada aqui, no blog organizado por Denise Bottmann: http://colecaoamarela.blogspot.com.br/2016/07/apresentacao_10.html. Dá para pesquisar ou apenas para banhar os olhos nas reproduções das capas.

Ariano Suassuna gostava de romances policiais, e ao ser perguntado sobre Wallace confirmou lembrar desses dois livros. Além de outro: Os Olhos Velados de Londres, “a história de um criminoso cego”, dizia ele.

De fato: se a Vela Dobrada é o número 83 da coleção, os Olhos Velados é o 84, logo a seguir. Os dois são de 1939. Este terceiro romance eu não li na época, mas dos cerca de 150 livros da Coleção Amarela eu tive e li pelo menos um terço, antes dos 18 anos. Todo mundo leu Edgar Wallace. Até Virgolino Lampião tem uma foto famosa, feita por Benjamin Abrahão, lendo um romance dele.

Havia influência de Wallace no livro de Ariano? Não diretamente; o quarto fechado entra ali como entra João Melchíades ou como entra Castro Alves ou como entra um romance ibérico. É o caldeirão da memória fabulatória, a lembrança das histórias fantásticas, das viagens extraordinárias, dos indecifráveis mistérios.

Dom Pedro Dinis Quaderna, o herói narrador, não é um detetive convencional no Romance da Pedra do Reino. (Na minha opinião, ele é um dos principais suspeitos do tal crime.) Ele tem, no entanto, no seu jeito mercurial de ser, algo de matador de charadas, de enfrentador de grifos e de logogrifos, de xereta da vida alheia, de maquinador, e de poeta meio alucinado prontinho para ser trespassado por uma epifania. Ele quer decifrar o mistério do mundo, esta Onça Parda e Piolhenta.  

Ele pode não ter muito cacoete de detetive clássico, mas se diz, orgulhosamente: “Quaderna, o Decifrador”. Talvez essa fórmula seja até um eco do “Quaresma, Decifrador” mencionado a certa altura dos Contos de Raciocínio, as incursões de Fernando Pessoa neste nobre gênero literário.








terça-feira, 12 de julho de 2016

4133) Como começar um conto (12.7.2016)



(foto: Leszek Bujnowski)

Muitos eventos literários têm como vantagem adicional, além da chance de fazer palestras e participar de mesas, a possibilidade de conversar assuntos bem específicos, assuntos que só interessam a quem mexe com aquilo. Assunto que se você for conversar com parte da família ou dos colegas de trabalho vai encontrar um “hã?” como resposta. Eu estava tomando café da manhã no hotel com uma turma, esperando a van do evento, quando um cara disse:

- Eu gosto quando o conto começa in media res, já em plena ação. O conto que começa com um soco, uma explosão, a ação em pleno acontecimento. Sem firulas, sem aquelas introduções intermináveis de Machado de Assis.

Uma professora que estava na mesma mesa disse:

- Olha, eu até concordo que o recurso é ótimo, mas a verdade é que Machado usava muito. Assim de cara eu lembro dois contos de Machado, pelo menos, que começam assim, zás!...

Rapaz, eram cinco pessoas naquela mesa mas baixou um silêncio que só se ouvia a CPU de cada um a todo vapor.

O primeiro que eu lembrei foi o do alfinete, acho que se chama “História Comum”. Como era mesmo? “De repente caí na copa do chapéu de um homem que passava...” Já mergulhava assim, e além do mais tinha um ponto de vista inusitado, o do alfinete propriamente dito. O “de repente” aí é meu, é mais uma rubrica teatral do que uma parte da história. Não deve ter no original.  E acho que é “A carteira” que começa com algo tipo: “De repente ele abaixou a vista e avistou uma carteira caída na calçada...”  Um terceiro? Será que tem?

“A causa secreta”, o famoso conto várias vezes filmado, começa com um plano cinematográfico, um momento banal colhido de repente, com os três personagens num tablô e o narrador saltando de um para o outro, enquanto um rói as unhas, o outro cofia os bigodes e a mulher ajeita um bordado. Não tem explosão nem pode-se de dizer que é uma plena ação. Mas é um momento do tempo que já estava acontecendo e de repente a narrativa se engata nele. Quando a narrativa consegue produzir essa mágica das mágicas aí é moleza, é só contar a história. Esse conto começa com um momento teatral, um momento de tensa presença silenciosa, onde aparentemente nada acontece e tudo pode acontecer.

Terá um quarto conto? Bem, a professora pediu pra ver as cartas na mão de cada um. Um conferencista ao meu lado lembrou de um começo interessante: “Agora vou contar a história do...”  E aí embatucou. Um relógio de ouro? Um alfinete? (Não gostei porque já tinha lembrado sozinho.)

Outra convidada, já recolhendo a bolsa e as pastas, porque o rapaz da van estava na porta do salão de café do hotel, batendo as palmas das mãos uma de encontro à outra e dizendo bora pessoal:

- Você (eu) deveria lembrar do ‘Conto Alexandrino’, eu já li um texto seu elogiando esse conto, e não lembra do começo dele? E recitou:

“—O que, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue do rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro”.

Todo mundo riu porque a frase é boa. Eu lembrava do conto mas não do começo; fiquei meio em dúvida se começar o conto no meio de um diálogo tinha mais força ou menos força do que pegar no meio de ação sem palavras. Mas essa impressão acabou cedendo lugar a outra mais forte, porque se o texto de Machado era mesmo aquele (e é) olha que coisa, ele coloca cinco palavras de negação antes do verbo acreditar: “não, impossível, nunca, jamais, ninguém.”

A questão do Enter do conto ser com um diálogo foi lembrada por outra amiga nossa, no trajeto para a universidade. Ela lembrou o começo famoso: “Ah, o senhor é que é o Pestana?” – e ela batia as pestanas com graça. Fui conferir “Um homem célebre” e é a mesma coisa: já estava havendo uma festa, com piano e tudo, e essa voz feminina nos coloca no colo da história. Mas não era bem “no meio de uma ação”, era no meio de um bate papo inocente, a câmara discreta entrando pela janela indiscreta da vida.

Daquele café anotei alguns títulos no guardanapo, que não sou besta. Alguém votou em “Um apólogo”, mas este começa assim:

“Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: ...”

Não tem o que qualquer história minimamente realista nos dá: a sensação de que existia um mundo com tudo aquilo acontecendo e de repente a gente, através da história, está percebendo a existência daquele mundo. Não, isso aí é uma fábula, um mundo abstrato comentando o mundo real humano, mas só começa a existir quando a fórmula mágica é pronunciada. “Era uma vez” é um spell muito poderoso, deve ser poupado, tal como os personagens do Sítio do Picapau Amarelo poupavam o “faz de conta”, a fórmula mágica para tirá-los das enrascadas em que a imprevidência do romancista os colocou.

“Era uma vez” é um “abre-te sésamo”, uma dessas fórmulas mágicas que deixam o autor livre para contar a história que bem quiser. (Claro que não é a única fórmula mágica. Basta ver “A igreja do diabo”, que começa: “Conta um velho manuscrito beneditino que...”) É um começo rápido, um começo zás-trás, mas ele não está captando uma ação in media res, como enfatizava o desafio.

Outro conto machadiano que anotei foi meio às pressas, e ninguém na hora lembrou como era o nome. O que rabisquei no guardanapo foi: 

“O conto onde ele diz que a porta se abriu, mas na mesma hora interrompe e explica quem era o cara que estava contando a história, anos depois de acontecida, à esposa, aí depois ele volta para o fotograma onde tinha parado: “a porta abriu-se, chegou um rapaz, veio visitar os amigos...”

A memória é ingrata, além de traiçoeira. É um dos meus contos preferidos, o conto sobre Elisiário, o homem da opa que podia embrulhar o mundo, “Um erradio”. Um bom começo, mas não saía da minha cabeça o modo como o cara tinha descrito o impacto que esperava doinício do conto: um soco, uma explosão. Houve uma época em que a gente escrevia o conto e apostava todas as fichas numa “abertura Mike Tyson”, ou seja, estontear e abduzir o leitor nas primeiras trinta linhas.

“A cartomante” termina com um tiro, mas nenhum conto de Machado começa com um corte brusco de ação, ação física, não direi um crime ou um tiroteio, que são raridades nos seus contos, mas uma ação intensa, não falada, de um ou mais personagens. Nem por isso ele é o rei de enchimento de linguiça (que por si só não é sempre um defeito). Ele sabe usar com autoridade e economia essas fórmulas mágicas que têm um empuxo narrativo poderoso, capas de erguer juntos a história e o leitor. Olhe só o começo de “Cantiga de Esponsais”:

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra com alma e devoção.

Esse conto é pelo menos de 1884, ano em que saiu o metalinguístico Histórias Sem Data. É um conto escrito num passado remoto para nós, onde o autor nos convida (“a leitora” é cada um de nós) a imaginar outro passado que já era remoto para ele.  E ele o faz num movimento cinematográfico perfeito, como uma câmera girando numa grua, descendo e fechando em close. O cinema só seria oficialmente inventado onze anos depois, mas foi a literatura quem ensinou o cinema a ver.

Lero-lero introdutório todo mundo precisa usar de vez em quando. O que importa é que, quando a história pedir, o mesmo sujeito seja capaz do poder de síntese de um começo como o de “Umas férias” (1906):

Vieram dizer ao mestre escola que alguém lhe queria falar.
- Quem é?
- Diz que meu senhor não o conhece, respondeu o preto.
- Que entre.


Nem as histórias de Sherlock Holmes iam tão direto ao ponto.




 



domingo, 10 de julho de 2016

4132) Traduzindo o "Grande Sertão" (10.7.2016)



O livro que ilustra este post é da Editora 10/18 francesa; eu já havia folheado um volume com esta mesma capa, anos atrás, numa livraria. O título Grande Sertão: Veredas foi trocado por Diadorim. Para alguns puristas, seria o mesmo que rebatizar O Coração das Trevas como Marlow, ou O Velho e o Mar como Santiago. Além do mais, o ser folclórico que lhe adorna a capa, com suas calças branquinhas frouxas nas pernas, seu chapéu redondo, parece um vaqueiro do Pantanal ou dos pampas gaúchos, não sei, só sei que na minha memória visual não tem nada a ver com os vaqueiros dos Gerais e do sertão do São Francisco.

A obra de Guimarães Rosa teve traduções muito elogiadas para o italiano e para o alemão, por Edoardo Bizarri e Curt Meyer-Clason, cujas respectivas correspondências com o autor já foram publicadas. Na língua inglesa os resultados têm sido menos retumbantes. Há traduções para o Grande Sertão (Harriet de Onís) e para Primeiras Estórias (Barbara Shelby), talvez alguma outra, mas nada que produzisse um impacto maior. Parece que no italiano e no alemã houve uma entrega mais lúdica dos tradutores às inesgotáveis novidades verbais da voz que narrava o livro.

Agora a tradutora australiana Alison Entrekin divulgou algumas páginas do seu projeto de tradução do GS:V para o inglês. (Veja entrevista e link: http://tinyurl.com/z6cgsle). São as primeiras páginas do livro, páginas que além do problema da linguagem são extremamente dispersas de assunto, Riobaldo toca nos numerosos temas orquestrais da narrativa, mas como em todo início verboso desse tipo, ele está nos dando ali dicas ou revelações que ainda não temos como avaliar, porque é a primeira vez que estamos ouvindo falar na pessoa A ou no lugar B.

São aquelas páginas introdutórias que parecem ter a função de trazer o leitor mais facilmente para dentro do ambiente onde a história de verdade, a coisa real, vai começar a ser contada pra valer daqui a pouco, depois que todos os cavalheiros e as damas estejam bem assentados, bem acomodados, mas enquanto isso vamos encompridando a introdução para que na hora da narrativa decolemos  todos juntos. Ou seja: é o preâmbulo a-voo-de-pássaro sobre o livro e seu mundo, feito pelos contadores profissionais de histórias nos cafés do Cairo ou os memorialistas não-confiáveis de calçada de venda mineira. Só começa a história quando estiver todo mundo calado e prestando atenção.

O livro de Rosa abre-se com o sésamo famoso: “Nonada”. Eu sempre achei que a tradução inglesa para essa palavra mágica fosse “Nonothing”. Há alguns argumentos em favor disso. Primeiro, mantém a mesma letra inicial.  Se há algum conselho inexplicável que eu tenha para dar, que seja este: “A tradução de uma obra literária deve preferencialmente começar pela mesma letra com que começa o texto original.” Por que? Não sei. Porque assim fica mais bonito.

Nonothing tem também a mesma cadência, três sílabas na cadência fraca-forte-fraca, no-na-da, no-no-thing. É um pé de verso harmonioso em si mesmo, como a constelação das Três Marias. Muito bem. Alison Entrekin começa sua tradução assim: “Nonought”. O que é muito bom também. A inicial é mantida. O sentido é o mesmo, mas com um acréscimo positivo, porque não apenas “nought” (ou “naught”) é uma forma antiga para “nada”, mas sua pronúncia o aproxima de “not”, não. E isso enriquece essas variantes que o cérebro computa à velocidade da luz: não-nada, não-não.

Há o detalhe da cadência, que em “Nonought” é diferente. Esse “ght” final é uma daquelas muitas terminações quase-mudas de palavras, tão frequente em outras línguas e menos assim em nosso português, que tende a percutir cada sílaba como se fosse uma tecla. “Nonought” seria pronunciado talvez “no-nó-t”, com esse “t” (o som que a ele corresponde) constituindo uma meia sílaba, um esvair-se sem terminar. O que aliás se afina com o próprio romance, que não termina com a palavra “Fim”, e sim com o símbolo matemático do infinito.

Imagino não faltar muito para algum gonzo-tradutor propor “Na-nani-nanão” para essa famosa abertura, tão marcante quanto a da Quinta Sinfonia. Mas a parte divertida de traduzir é justamente ter tempo para ficar sopesando todas essas pedrinhas, sabendo que somente uma delas será usada.

Ou pensar numa possível abertura francesa: “Nenéant”. Mais uma vez três sílabas, só que agora em cadência diferente do original, mas uma cadência fraca-fraca-forte que evoca a cauda de uma serpente e no final a cabeça que se ergue. Mais um registro: a tradução inglesa antiga, de Harriet de Onís, ao invés de tentar agarrar “nonada” pelos chifres, adota uma paráfrase inofensiva: “It’s nothing.”

Diz Alison (que já traduziu Clarice Lispector e Chico Buarque, além de autores de projeção mais recente como Paulo Lins, Cristóvão Tezza e Daniel Galera):

“Tirei três semanas de folga do romance em que eu estava trabalhando, e traduzi três páginas [do livro de J. G. Rosa.] Sim, isso mesmo: três páginas, não três capítulos. Numa profissão em que alguns consideram 2 mil palavras por dia uma quantidade razoável como padrão, que tipo de lunático aceitaria de bom grado um texto onde só é capaz de produzir 860 palavras ao longo de três semanas? Claro que eu estava ainda ‘fria’; talvez dentro de mais algum tempo eu pegasse o ritmo da coisa e duplicasse esse número. Mas provavelmente não. Quando um texto é complicado, ele continua complicado.”





quinta-feira, 7 de julho de 2016

4131) Downton Abbey, Temporada 1 (7.7.2016)



Fui ver a primeira temporada dessa série de TV a cabo (Netflix), em parte por curiosidade e em parte por pesquisa. Minha época favorita na literatura e no cinema é a chamada Era Vitoriana. Depois dela, somente a era Pós-Vitoriana, que é justamente esta aqui. Os ano 1910. Aquele teatro social meticulosamente enredado em rituais, convenções, compromissos, proibições, obrigatoriedades. Talvez as pessoas daquele tempo não tenham sido assim mais do que nós mesmos somos hoje; mas, assim como não percebemos os roteiros que seguimos agora cegamente, eles também não percebiam os deles.

Quando comecei a ver a série percebi que ela era um spin-off, uma consequência ao mesmo tempo mercadológica e dramatúrgica do filme Assassinato em Gosford Park (2001), ótimo filme de Robert Altman interferindo meio americanamente numa típica história policial britânica. O famoso “country house mystery” ou “cozy mystery”, o mistério aconchegante. Uma casa de campo onde nobres, burgueses e seus criados interagem em várias tramas complexas de assassinato, inveja, romance, traição.

Gosford Park foi escrito por Julian Fellowes. O novo milênio trouxe reviravoltas econômicas e políticas no mundo, nenhuma das quais foi maior do que a Era da Hegemonia dos Roteiristas, um título que não ocorreria ao mais ousado autor de pulp fiction. Uma vitória mais improvável do que a da Revolta dos Sapateiros. Hoje, pelo menos na TV, há roteiristas que comandam o show, não são o roteirista de estúdio, que recebe encomendas vindas de cima e de desincumbe o melhor que pode. São autores com cacife para conceber os arcos narrativos, com possíveis finais igualmente fortes, e capaz de escrever (às vezes até se meter a dirigir) qualquer tipo de cena para mostrar como deve ser feito.

Séries que gostei e que têm diferentes medidas dessa receita foram True Detective, Breaking Bad, Game of Thrones, Arquivo X, conceitos narrativos que pertenciam mais aos que escreviam do que aos que estavam dirigindo. Quem diria que os roteiristas seriam os mamíferos, após o reinado sáurio dos produtores e diretores!

Julian Fellowes ganhou um Oscar de Melhor Roteiro Original com o filme de Altman, e alguns anos depois emplacou essa série que ele escreve, em princípio, sozinho, com várias pessoas dirigindo os episódios. Não tem o ritmo mais agitado de Altman, mas a própria quantidade de personagens a leva a ter narrativa rápida, mesmo com muitos quadros estáticos. Bons diálogos, cenas curtas, uma certa compressão narrativa que não exclui o suspense de manter situações que só se resolvem ao longo de vários capítulos.

O SBT tinha uma novela chamada Os Ricos Também Choram. O filme-sobre-aristocratas-britânicos acaba sempre revelando, não se sabe se por descuido ou se é por planejamento, que apesar de tudo eles são humanos “como nós”. Só que têm mais dinheiro, e uma espécie de hipnotismo que os domina sempre que certas palavras mágicas são pronunciadas. Eles chamam a isso “valores”, “conceitos”, “premissas inquestionáveis” e outras palavras vagas. No mundo deles, há certas frases que são como a lâmina da guilhotina. Depois que ela cai, de nada adianta subir de novo. Está feito.

Downton Abbey é o mundo dos livros de Henry James, aquele pessoal muito paparicado, muito advertido, muito preparado, muito imbuído das responsabilidades de sobrenome, dinastia, tradição. Aqueles salões sociais à base de intrigas sussurradas, alianças e armagedons, maquinações políticas e armadilhas amorosas. Só que, no presente caso, nada de melodrama ou folhetim. Ao contrário. Tudo à base de inuendos, nuances, entendimentos duplos, deslocamentos de sentido, elipses, síncopes subentendidas.

Era o mundo de Machado de Assis, também. Ressalvando a faixa aquisitiva, a latitude, o pedigri de nobreza, mas era também o da nossa Corte um mundo de salões, de ceias, de recepções, de valsas, de leques, de olhares dissimulados, de cochichos entre patrões e agregados, de coisas que não se deve dizer, de coisas em que pode-se apenas pensar o tempo todo.

Esse clima predominava talvez no tempo vitoriano. O que vemos em Downton Abbey é a continuação disso, o desagregar disso numa certa modernidade onde há uma permeabilidade social maior. Uma das coisas interessantes do seriado são as diferentes maneiras como ele mostra personagens incomodados pelos papéis sociais que precisam exercer, personagens recusando-se a entrar num jogo de fingimentos. Desconfortáveis com sua persona pública ou com as cobranças feitas a ela.

O filme onde Julian Fellowes testou a fórmula com sucesso, Gosford Park, tinha (conforme foi encomendado pela produção) algo de Agatha Christie: a labiríntica mansão, os ricos ruidosos, os criados vigilantes, um corpo na biblioteca. Cronologicamente, no entanto, Downton Abbey está menos para o tempo de Lady Agatha do que para o de Sherlock Holmes, que é de uma geração anterior. A primeira temporada da série de TV vai do afundamento do Titanic em 1912 até a declaração da guerra à Alemanha em 1914. Sherlock Holmes tinha 60 anos quando essa guerra começou. Poderia ter sido um hóspede eventual em Downton Abbey; era a época do seu último adeus.

Em Downton Abbey, a série, se reproduzem os mesmos vasos sociais comunicantes que havia em Gosford Park, o filme. A série é talvez mais emproada, mais cintura-dura, mas a comparação com Altman pode ser injusta. São concepções diferentes: um filme de duas horas e uma série com oito episódios na temporada de estréia. Os dois anos de peripécias dos oito episódios da primeira temporada dariam material folgadamente para uma das nossas novelas em horário nobre, uma novela de duração mediana.

Ao que tudo indica (não gosto de saber spoilers, então me informo pouco) Downton Abbey não deverá ter derrapagens na direção do fantástico, será uma ópera sabão-em-pó de época. A época tinha seu charme e tinha sua sombra. Para cada fidalgo da família de Lord Grantham há um servo seu ou serva sua que está sempre por perto, com fidelidade, rapidez e silêncio. Parece até que cada Dorian Gray tinha um retrato ambulante aos seus pés, definhando para servi-lo. Ou que cada doutor Jekyll tem como servo um Mr. Hyde, ou vice-versa. Não é o caso, me parece. Tudo indica que a dramaturgia será realista até o fim.  Mas por que o romance histórico seria menos nobre que o romance fantástico?


Acabei sabendo que na vida real Highclere Castle, o belo prédio onde se desenrola a narração estritamente realista de Downton Abbey, é um castelo que pertenceu a Lord Carnavon, o financiador da descoberta do túmulo de Tutankhamon, e uma das vítimas mais famosas da famigerada Maldição da Múmia. Fiquei sabendo também que alguns dos seus interiores serviram para as cenas do ritual erótico onde Tom Cruise se infiltra de penetra, em De Olhos Bem Fechados (2001) de Kubrick. São dois precedentes ilustres do quais o previdente Fellowes pode lançar mão para muleta de plot, caso um dia comece a faltar assunto.





terça-feira, 5 de julho de 2016

4130) A poesia marginal (5.7.2016)




A Flip homenageou este ano em Paraty a poeta Ana Cristina César, uma das figuras emblemáticas de uma geração poética concentrada no Rio e São Paulo. Eu daria como figuras também emblemáticas desses dois grupos Chacal, no Rio, e Glauco Mattoso em São Paulo, sempre ressalvando que quaisquer dois poetas são tão diferentes quanto quaisquer dois poemas, e que a poesia de cada poeta do mundo, boa ou ruim, é única e intransferível.  

Essa turma se espalhava Brasil afora, e cada capital, pelo menos, tinha seu surto de pessoas meio descabeladas vendendo livrinhos artesanais e recitando onde quer que pudessem ser ouvidos por alguém. A turma se chamou ou foi chamada de “poesia marginal”. Um termo que ainda hoje é questionado, defendido, relativizado ou metaforizado em mesas de bar. Cada um vê de um jeito.

Na Paraíba eu lia a imprensa alternativa da época, conhecia muitos poetas, e tinha a impressão de que “marginal” indicava uma coisa meio encalhada nas margens, ao invés de fluir com a credibilidade e o peso que tem a corrente principal do rio. Os critérios de qualidade ou representatividade são definidos na área dominada pelo mainstream estético. É a região da literatura formal, no sentido que damos a “economia formal”: a literatura das editoras. A literatura que requer contratos, protege direitos, taxa atividades, registra ISBN, escaneia código de barras. No extremo de sua cauda ou na aresta de sua barbatana está a literatura informal, a que não faz nada disso, a que (ou as que) escrevem, publicam e circulam como lhes der na telha e lhes couber no bolso.

Se a literatura que encontramos nas grandes livrarias e nas bibliotecas e nas premiações públicas e privadas e nas listas de mais vendidos e nos catálogos das editoras mais disputadas é o mainstream, a poesia marginal seria aquela sucessão de remansos, de poças, de infiltrações de uma água inquieta que, não conseguido correr na direção do mar junto com a corrente principal, resolve desbravar terra adentro.

Vista à distância, a informalidade econômica dos marginais de cantina de universidade e barzinho boêmio era a mesma do cordelista de gráfica e de feira. Era o livro de quem não tem direito ao livro.

O poeta marginal sabia que editora não ia fazer o livro do jeito que ele queria. E pensava: Vou fazer eu mesmo, tenho mil opções baixo-orçamento. O livro é meu, então se eu quiser eu boto palavrão, boto foto de cabeça pra baixo, boto capa do meu primo que desenha melhor do que eu, deixo a ortografia do jeito que Deus mandar. A marginalidade significava para muitos ser totalmente livre num pequeno espaço.

Viajando e recitando por aí, de 1980 em diante, percebi que para muitos leitores do público em geral (não os leitores das várias turmas que acompanhavam esses poetas, o fã-clube de cada um) a primeira conotação que vinha à mente ao ouvir a palavra marginal era “bandido, assassino, criminoso”.  No meu dicionário pessoal essa seria apenas a opção 2, mas as pessoas nos perguntavam: “Poesia Marginal?! Então vocês fazem poesia assassina, poesia estupradora, é isso?”  O fato de que os poemas não recuavam diante de palavrões, escatologia e humor politicamente incorreto não ajudava muito.

Talvez os olhos do público localizassem elementos de marginalidade no cabelo do pessoal, no modo de vestir, aquele jeito descuidado consigo mesmo, o jeito relaxado de ser. Muitos poetas ditos marginais se vestiam de maneira civil e corriqueira, mas a imagem que grudou foi essa. Em tal grupo pendia mais na direção de um contracultura de língua inglesa aclimatada nos trópicos (e no semiárido), em outros assumia tintas de universidade misturada a morro ou periferia, pois nada disso jamais saía de cena.

Uma das coisas mais abençoadas dessa poesia era a informalidade da forma e a graça do conteúdo. Duas libertações para quem até então vivera preso no cárcere geométrico da estrofe fixa e na seriedade existencial do poema longo. Todos pediam a bênção a Oswald de Andrade, que pode até nem ser o pai do poema piada, do poema relâmpago, do poema zás-trás, mas foi um dos seus grandes mestres e militantes.

Para alguns, o mais refinado autor do poema curto foi o marginal Paulo Leminski, que de fato trouxe para ele a velocidade verbal de uma katana. O poema curto em duas partes é uma forma que é a cara de Leminski. O hai-kai dele é uma lâmina descrevendo a marca do Zorro no ar.

Nenhuma literatura devia menosprezar as possibilidades do poema curto. (Nem do poema longo: penso no poema épico de 12 mil versos, ninguém o liga há tanto tempo que já teve ter descarregado a bateria, coitado.)  Ao poema curto cabe ainda mais a descrição do poema dada por Armando Freitas Filho no filme de Walter Carvalho sobre sua poética: algo pequeno, mas complexo. Invoco como provas disso, perante este tribunal, dois usuais suspeitos: o haikai japonês e a sextilha nordestina. Se nessas duas formas fosse impossível a perfeição, ninguém tentaria tanto. Tenta porque já viu a perfeição-possível brotar ali, numerosas vezes.

A frase devastadora, a piada instantânea, o aforismo acachapante, a metáfora perfeita, a definição definitiva: tudo isso é muito valorizado em nossa cultura verbal, e a poesia marginal (com todos os desdobramentos que a sucederam) deu repetidos exemplos de que é possível driblar o silêncio e a linguagem ao mesmo tempo, num espaço do tamanho de um lenço.

Pois é, eu ia comentar alguns aspectos editoriais que acho interessantes, aí fiz um cerca-lourenço tão grande que acabei numa vindicação do poema curto. Curto também porque na verdade eram livrinhos, opúsculos minúsculos, livretos, folhetos, amostras grátis. Poesia é feita de numerosas partes pequenas que podem ser rearrumadas de mil maneiras dentro de um retângulo. Eram livrecos, daqueles que não era muito caro mandar imprimir 100, porque vendendo 40 já pagava o custo, o resto você podia distribuir de graça, e daí em diante o que aparecesse era o da cerveja. Era melhor mesmo que fosse livrinho, pra ser pequeno, pra caber na bolsa do vendedor um pacote e no bolso do freguês uma unidade. Como às vezes o livrinho era datilografado, xerocado e reproduzido, o tamanho da letra era uma constante difícil de negociar. Em alguns casos ela determinava a quantidade de texto possível na página.

Passaram-se os anos. O rio estatal e corporativo ficou mais grosso, mais largo, e onde havia margens ele hoje corre, levando tudo consigo, para as cátedras, as efemérides, a História. Não é a marginalidade que finalmente solta âncora e faz-se ao mar.  É o capital, esse rio automultiplicado em zeros, que engrossa e chama tudo para dentro de si. O centro por enquanto se sustenta, e enquanto se sustenta ele engrossa, empurra as margens para a periferia, que é de onde vêm agora os cabeludos que eu fui ontem e que escreverão sobre estes tempos amanhã. O mainstream fornece a água financeira, o tempo, o movimento. As margens fornecem a terra, a substância.