quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

2422) A renovação da linguagem (9.12.2010)



Li num jornal literário este comentário de um crítico, que transcrevo sem citar a autoria, porque na verdade não me interessa contradizer o autor, e sim examinar por que motivo eu, que já disse a mesma coisa numerosas vezes, sempre o fiz com um certo desconforto e insatisfação. Dizia ele: “Fulano de Tal, com seu livro, não se propõe a renovar a linguagem literária. Ainda bem, porque de tentativas de renovação da linguagem a literatura brasileira está saturadíssima. Hoje em dia, essa prática se tornou lugar comum entre os escritores ‘bem’ pensantes. Mas afinal, depois de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, isso seria possível?”

Me parece verdadeiro, mas também me parece insatisfatório. Tenho uma certa impaciência com tentativas de “renovar a linguagem literária brasileira”, como se isto fosse tarefa para cada novo escritor que desembarca nas livrarias. Ao mesmo tempo me pergunto: será que acabou tudo com Guimarães Rosa e Clarice? Será que fechou a tampa, e não é preciso renovar mais nada? E, aliás, por que usamos o termo “renovar”? Renova-se uma literatura como quem renova um guarda-roupa durante uma viagem? Ou como quem renova um modelo de automóvel (tirando o acendedor de cigarros e botando um tocador de MP3, p. ex.)?

Não sabíamos (acho) que era possível ver o mundo com olhos como os de Kafka, até que Kafka surgiu e nos mostrou. Não imaginávamos (acho) que perscrutações íntimas, contraditórias, paradoxais e sem-desfecho, como as de Clarice Lispector, pudessem resultar em boa literatura; os livros de Clarice mostraram que sim. Muita gente escrevia romances sobre detetives durões que investigavam crimes brutais, cercados por mulheres sedutoras; eram livros rústicos, sensacionalistas, descuidados. Parecia impossível produzir boa literatura com ingredientes assim, mas Raymond Chandler mostrou que não. O romance regionalista rural era considerado um gênero estático, impermeável ao resto do mundo, sobre pessoas de baixo Q.I.; Guimarães Rosa mostrou que não.

Muitas tentativas de renovar a linguagem literária se frustram porque os autores, paradoxalmente, querem escrever parecido com o autor da renovação mais recente. A renovação se auto-destrói, cai no vazio, porque a comparação é inevitável entre o original e a cópia. O que seria de Rosa se tentasse escrever parecido com Afonso Arinos, e de Chandler se tivesse querido adotar o estilo de Dashiell Hammett, a quem admirava?

Não sei se todos os grandes autores queriam renovar nada. Queriam apenas se exprimir (acho) dentro de suas habilidades e seus limites. A literatura é uma Língua Geral cuja sintaxe e vocabulário pode receber acréscimos de qualquer autor. Os grandes individualistas trazem sua maneira de ver e maneira de dizer. Algo disso se incorpora. Mas aposto que eles não estavam querendo “renovar” nada. Escreviam assim porque não conseguiriam escrever de outra forma.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

2421) “The Diamond Age” (8.12.2010)



Li apenas dois livros de Neal Stephenson, e é como se tivesse lido vinte. Faz tempo não vejo um autor capaz de tal densidade informacional por página. Nevasca (“Snow Crash”), publicado pela editora paulista Aleph, com 470 páginas, tem mais peso específico do que a “Trilogia da Fundação” de Asimov. E agora acabei de ler este outro, que em 499 páginas é capaz de equilibrar uma balança que tenha no prato oposto toda a obra de Charles Dickens. A comparação não é despropositada, porque Dickens é uma das grandes inspirações de Stephenson para este romance vitoriano passado no futuro. Um dos prazeres proporcionados pela FC é essa possibilidade de decolar em voos históricos e sociológicos de longo alcance. Os escritores realistas acham que a FC é minúscula porque estão caminhando a pé e dela só veem o risco branco no céu azul.

A época da história é mais ou menos o ano 2100, quando a humanidade controla a nanotecnologia a ponto de todo mundo ter em casa, assim como tem hoje um microondas, um “compilador de matéria”. Basta digitar as coordenadas e ele produz dentro de alguns minutos uma calça, um par de sapatos, uma cadeira... Há limitações tecnológicas que impedem este aspecto de virar uma “varinha de condão”. A parte principal da história ocorre na região que hoje é Shangai, então habitada por uma sociedade neo-vitoriana de lordes e damas sofisticadíssimos a ponto de não recorrerem aos “compiladores”: roupas, móveis, etc., são todos feitos à mão, coisas que só pessoas riquíssimas podem encomendar.

Um Lorde lamenta que a nova geração esteja ficando muito acomodada e encomenda, para a futura Rainha, a criação de um e-book que não apenas contenha toda a formação cultural necessária a uma menina pré-adolescente, mas também estimule nela um temperamento rebelde, contestador, quase subversivo. Essa tarefa cai para J. P. Hackworth, que produz um Super-Livro, uma mistura de e-book e console-de-games em que a garota lerá histórias, aprenderá qualquer técnica (desde artes marciais até idiomas estrangeiros) e ao longo dos anos irá formando seu caráter através das etapas sucessivas das aventuras de “Princesa Nell”, um gigantesco game educativo, em que contracena (falando) com atores contratados para isto.

A grande reviravolta, que ocorre a cerca de 1/3 do livro, é que Hackworth tira uma cópia clandestina deste Super-Livro, e ela vai parar nas mãos de uma menina pobre, que passa a ser educada por ele ao mesmo tempo que a Princesa. Não, leitor, não diga que já viu como vai terminar. Isto é só a ponta deste iceberg barroco-cinemascope (como dizia Brian Aldiss), que vai em muitas direções (todas surpreendentes e plausíveis) ao mesmo tempo. O futuro descrito por Stephenson é estonteante em sua riqueza, diversidade e coerência de detalhes. As aventuras são divertidas, e existe aqui um pouco mais de maturidade do que em Nevasca, outro excelente livro mas que às vezes parece feito apenas para garotos que jogam joguinhos.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

2420) Flu: campeão por exclusão (7.12.2010)



E assim chegamos ao final de mais um Campeonato Brasileiro meia-bomba, decidido sem emoção em jogos onde os candidatos ao título enfrentavam times desmotivados ou rebaixados. Assim como ocorreu ano passado com meu Flamengo, o Fluminense foi campeão por exclusão. No confronto dos pouco competentes, foi o que errou menos, o que tropeçou menos, e, assim como o Flamengo, nem pode dizer que conquistou um título, mas que o título perdido por todos acabou caindo no seu colo. Que aproveite. (O Flamengo é um exemplo de como não aproveitar.)

Durante muitos anos sonhei, eu, fã do futebol, com um Campeonato Brasileiro disputado em pontos corridos, acreditando que fosse esta a fórmula mais adequada para premiar o melhor time. Hoje tenho minhas dúvidas, não quanto à eficácia da fórmula para escolher o vencedor (premia-se o time mais regular e mais consistente, o que não são critérios de se jogar fora), mas quanto ao resultado disto para o espetáculo.

Há muitos jornalistas que torcem o nariz para o presente modelo, e acho que estou começando a torcer o meu também. No ano passado vi um Flamengo travado e sem convicção ser campeão diante de um Grêmio que claramente não queria beneficiar seu rival, o Inter. Este ano vi um Fluminense travado e nervoso ser campeão diante de um Guarani tecnicamente fraco, psicologicamente entregue. Jogos chochos, sem técnica, sem emoção. Tive saudade daquelas decisões de alguns anos atrás em que só dois times podiam ser campeões: os dois que entravam em campo para se enfrentar, “com a faca nos dentes” e na ponta dos cascos.

Não digo isto para menosprezar o título tricolor. Foi merecido pela campanha sólida, mesmo com repetidos escorregões e tropeços em jogos bobos, que só não lhe custaram a Taça porque os adversários fizeram exatamente a mesma coisa. Foi merecido, por exemplo, por Conca, um jogador que não é nenhum Maradona mas é um exemplo de jogador que eu gostaria de ter no meu time, tanto pela técnica quanto pelo caráter (ou pelo menos o que percebemos dele pelas suas atitudes).

O título do Flu carimbou um valor simbólico especial para o técnico Muricy. Como os torcedores se lembram, logo quando Dunga foi demitido da Seleção após o fracasso na Copa a CBF convidou Muricy para ser o técnico, e ele aceitou. Isto foi às 10 da manhã. Ao meio-dia, Muricy informou a CBF de que o Fluminense não o liberava, e que ele, como tinha contrato assinado, tinha que manter a palavra e obedecer à ordem do Fluminense para que ficasse.

Muitos técnicos guardariam um gosto de azinhavre na boca e, mais adiante, iriam tirar o pé do acelerador, numa vingança quase inconsciente contra a diretoria que cancelou seu maior sonho profissional. Muricy trabalhou como um mouro e deu a Taça ao clube que o prejudicou. Isto deve significar alguma coisa, num futebol tão egoísta quanto o nosso. Não acho Muricy o sujeito mais simpático do mundo, mas é a ele (não à diretoria do Flu) que dou meus parabéns.

domingo, 5 de dezembro de 2010

2419) O repentista Bob Dylan (5.12.2010)




Toda criação poética é uma oscilação contínua entre o racional e o intuitivo, entre decisões planejadas e coisas que parecem cair do céu. 

“Toda”, no caso, é um exagero, porque se há milhões de poetas há milhões de poéticas; mas essa regra, que vale para mim, deve valer pra mais gente. 

Lembrem aquela famosa cena de Sociedade dos Poetas Mortos, em que um dos alunos de Robin Williams diz ser incapaz de escrever versos. Ele manda o garoto ficar de pé e fechar os olhos, manda-o girar sobre si mesmo e ficar dizendo o que lhe vem na cabeça, até que o garoto, que era o mais travado da turma, começa a balbuciar coisas e acaba gritando uns versos bem aceitáveis. Ele larga o garoto e diz no seu ouvido: “Nunca se esqueça disto”.

Nunca se esqueça de quê? De que a poesia não é necessariamente uma atividade de concatenação entre conceitos abstratos, como o raciocínio filosófico. Ela pode ser, e frequentemente é, uma justaposição de imagens concretas e contraditórias. A arte está em juntar as duas coisas. 

Em seu livro Positively 4th. Street, David Hajdu descreve como Bob Dylan compôs muitas das canções de seu primeiro disco genuinamente folk-rock, Bringin’ it all back home. Diz Hajdu, citando uma testemunha:

“Ele espalhava dúzia de fotografias arrancadas de jornais e revistas, arrumando-as no chão, e sentava entre elas com o violão. Começava com uma levada musical simples, um acompanhamento de blues que ele pudesse repetir indefinidamente, e então fechava os olhos. Não copiava as coisas literalmente das fotos, mas usava a impressão deixada por elas como um modelo visual para produzir uma linguagem caleidoscópica. Parecia estar cantarolando qualquer coisa que lhe vinha à cabeça, frases desconexas mas com sentimento poético. Quando surgia algo que lhe agradava, ele rabiscava aquilo às pressas, para não perder o clima, e fazia isso até ter versos suficientes para uma canção”.

Parece maluquice, mas cada um de nós tem métodos semelhantes. Um dos meus preferidos é ficar rasqueando o violão, cantarolando uma melodia sem letra, escolher um objeto qualquer no ambiente e procurar palavras que rimem com ele. Num instante a letra começa a aparecer. 

O método de Dylan (e o de Robin Williams) nos lembra que o motor da poesia é o intelecto, mas o combustível é a emoção. Um, sem o outro, não funciona. O intelecto é capaz de ficar uma tarde inteira parado, ponderando um adjetivo, mas quem escreve sabe que precisa botar o motor em movimento. Para isso, uns recorrem ao violão, outros ao uísque, outros a um baseado, outros a uma vida cotidiana insone e caótica que os deixa 24 horas por dia num estado alterado de consciência. Os surrealistas praticavam a escrita automática. 

Tudo é válido para “passar primeira” e tirar o cérebro da imobilidade. A grande criação literária (para muitos, é claro; nada disso se aplica a todo mundo) ocorre na terceira marcha. O problema é chegar lá.




sábado, 4 de dezembro de 2010

2418) As ilusões da memória (4.12.2010)




(cartum de Bennett)

O passado é tão modificável quanto o presente, pela simples razão de que o único lugar onde o passado existe é em nossa memória. 

Às vezes lembramos, com nitidez absoluta, coisas que nunca ocorreram a não ser em nossa imaginação. Mexemos nesses arquivos o tempo inteiro, e, assim como fazemos com os arquivos do computador, o mero ato da consulta nos faz corrigir um detalhe aqui, aumentar um espaço acolá, mudar uma formatação... 

Quando terminamos de acessar aquela lembrança, a mente pergunta se queremos salvar as alterações, e dizemos que sim. Invariavelmente. Lembrar um fato é modificar essa lembrança.

Num livro de Christopher Chabris e Daniel Simons se conta um episódio ocorrido com Hillary Clinton, que durante a campanha presidencial de 2008 recordou uma viagem que fez à Bósnia em 1996, na cidade de Tuzla, onde teria descido do helicóptero sob fogo de atiradores de elite, correndo abaixada para proteger-se. 

Repórteres que fizeram a mesma viagem publicaram fotos da chegada de Hillary, em que ela aparece sendo recebida diante do helicóptero, cumprimentando autoridades e beijando uma criança que leu um poema. 

A questão (levantada na campanha política) era: Hillary estaria sendo vítima de uma auto-ilusão, ou estaria mentindo deliberadamente?

Não posso responder pela ex-primeira dama, mas a verdade é que todo mundo, no momento em que está contando uma história, costuma enfeitar, corrigir, completar, arredondar, esticar, resumir. 

Não por intenção deliberada de contar mentiras, mas porque em nossa mente (ou pelo menos na mente de uma porção de pessoas) a função fabulatória muitas vezes entra de parceria com a função recordadora. Quando contamos um episódio em que estivemos envolvidos, somos levados a visualizar as cenas, reconstituir a sequência de ações, recompor fragmentos de diálogos. 

Quando alguém nos faz perguntas sobre detalhes que no momento não tínhamos observado, acabamos preenchendo essas lacunas por conta própria. Não por má fé, mas porque é mais fácil preenchê-las e continuar narrando do que interromper a narração, tentar lembrar, encontrar dificuldade, estancar a conversa... 

Lembramos que Fulano chegou em nossa casa, alguém pergunta como, e dizemos: “Chegou de táxi”. Não sabemos (e depois alguém pode provar que não foi verdade). Mas para não quebrar o ritmo da narrativa, preenchemos esse espaço vazio sem pensar muito, e vamos em frente.

Ademais, Freud (cuja estudos sobre falsas memórias são famosos) mostrou que nossa mente costuma misturar episódios diferentes num só. Lembramos de maneira vívida um fato da infância, mas noutra casa, e não na casa em que ele de fato ocorreu. Lembramos ter visto um filme na companhia de alguém; não foi, foi com outra pessoa. 

Lembramos sempre fragmentos, e às vezes somos forçados a pegar duas ou três cenas incompletas para com elas compor uma lembrança falsamente completa, mas que parece fazer sentido, tem uma aparência satisfatória.






sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

2417) Os planejadores e os espontâneos (3.12.2010)




(H. G. Wells)

Hoje liguei a TV às 10 da manhã e estava passando A Gata e o Rato, que era um dos meus seriados preferidos há 25 anos. 

Bruce Willis e Cybill Shepherd estão (pra variar) discutindo. Ele defende a espontaneidade nas conquistas amorosas (e em tudo na vida) e ela defende a análise e a cuidadosa ponderação de possibilidades antes de se decidir. (Toda a cena é um mero pretexto para ficarem jogando charme um no outro.) 

Pensei: “Ora que diabo, aqui estou revendo uma série de TV boba! Vai trabalhar, vagabundo!”. 

Desliguei a TV e peguei um livro autobiográfico de H. G. Wells, que estou consultando para a redação de um prefácio. E me deparo com a descrição que ele faz de seu relacionamento com a escritora Rebecca West, com quem ele manteve um romance extraconjugal, com um filho e tudo, durante anos.

Wells descreve e comenta o romance dela, The Judge. Os dois viram passar, numa cidade onde estavam a passeio, um juiz muito pomposo, cercado de acólitos. E ela lembrou uma notícia na imprensa sobre um juiz que morrera de enfarte num bordel; decidiu usar algo parecido. Imaginou a história de um juiz que seduz uma mulher sem saber que ela era a viúva de um homem que ele condenara à forca anos atrás. A mulher reconhece o juiz e o atrai ao seu quarto, pensando em matá-lo. Quando o juiz a vê empunhando uma faca, morre do coração.

A ideia daria um conto interessante, mas ela resolveu escrever um romance, pois achou que precisaria “forrar” melhor essa situação meio folhetinesca com verossimilhança psicológica. 

E começou a contar a história (“muito ousadamente”, diz Wells) antes mesmo do marido e da esposa se conhecerem. E de lá veio, tecendo a vida de um e do outro, criando “um livro do tamanho de uma baleia” e tentando conectar a infância de uma mulher em Edimburgo e de um homem no Rio. 

E o livro, segundo Wells, se conclui quando acontece o crime cometido pelo marido. Foi publicado com o título “O Juiz” porque era o que estava no contrato com a editora.

Wells conclui dizendo: “Ela escreve como um tear produzindo um tecido belíssimo sem ter a menor ideia de como será seu formato final, enquanto que eu escrevo para cobrir uma estrutura de ideias”. 

Conectando estes dois casais, não posso deixar de imaginar que aparentemente Wells e Maddie, “a Gata” se dariam bem, o mesmo ocorrendo com David, “o Rato” e Rebecca West. Ou talvez não, quem sabe? Talvez os opostos se atraiam. 

Em todo caso, existem de fato os escritores que planejam tudo que vão fazer (J. K. Rowling escreveu todo o resumo, inclusive o final, da série “Harry Potter” num caderno, antes mesmo de escrever o primeiro livro) e os que saem inventando pra ver no que vai dar. 

Hoje mesmo (é o dia das coincidências) li uma frase do poeta Robert Frost: “Nunca comecei um poema sabendo como vai ser o seu final. Escrever poesia é um ato de descoberta”. Acho que alguém está querendo me dar um recado, mas quero ser mico de circo se souber qual é.









quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

2416) Atravessando o abismo (2.12.2010)


É o único trajeto que ele percorre, às vezes diariamente, às vezes dia sim dia não. 

Nunca deixa de ser, para quem mora sozinho, uma aventura e um pesadelo. Sair do apartamento, descer dois lances de escada, chegar à rua, fazer compras rápidas, voltar para casa. 

Tudo não dura uma hora, mas para Seu Tomás equivale a caminhar num fio esticado entre dois arranha-céus. Oito décadas de ferrugem nas juntas não lhe ajudam os movimentos, e seis décadas de cigarro lhe empedraram os pulmões; mas não é o desgaste físico do trajeto que o faz estremecer. É o que ele se habituou a chamar, consigo mesmo, de Os Altos e Baixos. 

Por exemplo: sair de casa. Ao fechar atrás de si a porta, troca um olhar de passagem, no corredor, com a vizinha do 603. D. Lucíola: seu azedume, suas reclamações, suas fofocas. 

Profundamente infeliz, Seu Tomás se arrasta para o elevador, desce. À sua volta tudo poreja pessimismo e hostilidade. Pensa que se o prédio se incendiasse morreria feliz, vendo-o arder. 

Na portaria, Gilson, magrinho, de óculos, atencioso, lhe estende um envelope que acabou de chegar. O mundo se transforma. É o contracheque da aposentadoria, com seis dias de atraso. Seu Tomás o guarda como se fosse a chave do Paraíso, e é o Paraíso que encontra ao chegar à calçada e se misturar aos transeuntes. Bom dia, calçada. Bom dia, banca de revistas. Bom dia, ônibus lotados, carros, barulho, bom dia buzinas, bom dia vitrines e anúncios em néon. 

O Paraíso avança ao seu redor enquanto ele caminha, mas se fende com brutalidade quando ele se aproxima da banca, vê os jornais dependurados lado a lado como lençóis para secar, e vê o caderno de esportes lembrando a derrota da véspera. E ainda mais com uma manchete sarcástica. E o retrato do artilheiro, que passou em branco, com as mãos no rosto. E a notinha apocalíptica sobre a proximidade da zona de rebaixamento. E o rebaixamento do Paraíso a Purgatório, onde nas almas punge a dor da incerteza, uma dor talvez maior, porque em movimento incessante, que a dor da condenação, que pelo menos é a Paz do Nada. 

Uma noite moral se abate sobre o quarteirão. Seu Tomás desiste de ir à padaria, desiste com tal desânimo que se esquece de impedir que as pernas continuem a conduzi-lo. Não quer ir à padaria. Quer voltar para casa. Agora. Não. Quer deitar na calçada, agora. Quer enrodilhar-se como um cão friorento, como uma minhoca atingida, quer fazer como a serpente mitológica que engole a própria cauda até sumir por completo. 

Mas, ai! – as pernas o trouxeram à padaria, e quem está hoje no caixa senão Donana, a negrinha catita? Quando o vê ela abre um sorriso de dentes alvos e batom rubro. “Seu Tomás! Quem é vivo sempre aparece!” Os peitinhos estão ali, sob a blusa branca e engomada, prontos, quem dera, para qualquer eventualidade. Seu Tomás abre um sorriso, abre a carteira, abre um par de asas, faz a parte publicável do seu pedido, volta pra casa sem tocar o chão.






2411) As Instâncias do Poder (26.11.2010)

(Quando viajo este blog vira uma Casa da Mãe Joana. O artigo abaixo, de número 2411, era para ter sido postado aqui no dia 26 de novembro, quando foi publicado no Jornal. Não foi. Vai agora. Vale a numeração. Perdão, leitores.)



Tudo que o Imperador da Ruritânia faz está a cargo dos chefes de setor. O chefe de cada setor (ao qual chamaremos, de agora em diante, de Primeira Instância) está cercado, em seu vasto gabinete de trabalho, por dez sub-chefes, cuja função é providenciar para que suas ordens sejam executadas, e, em caso de dúvida, auxiliá-lo na sua tomada de decisões. Esses dez sub-chefes formam, portanto, a Segunda Instância. Cada um deles, por sua vez, tem cem assessores encarregados de distribuir tarefas, organizar as coisas. Somados, esses mil assessores formam a Terceira Instância, que constitui de certa forma a interface entre poder decisório/organizatório e a mão de obra encarregada de produzir resultados. Observe-se que cada um dos mil assessores tem a seu cargo mil funcionários.

Ora, sucede que um dia o Chefe do Setor de Diapasão amanheceu com enxaqueca, em plena reta final do Levantamento Estatístico de Afinações, a que cabia um recenseamento das afinações predominantes no Império. Todo ano era preciso contar quantas músicas haviam sido gravadas no tom de dó, quantas no tom de dó sustenido, quantas em ré, e assim por diante. Cabeça latejando, o Chefe, inundado de zeros e percentagens, virou-se para os sub-chefes e disse: “Quer saber duma coisa? Essa situação é kafkeana, dadaísta, ionesca. De agora em diante só se pode gravar música num tom. Sol bemol, por exemplo”. Dito isto, desligou o monitor para poupar energia, desceu para a cafeteria, tomou um tylenol e fez um lanche.

À tarde o videofone tocou. Um dos sub-chefes, o Número Oito, atendeu e disse: “Não, não sei, e não tenho tempo a perder com tecnicalidades. Não é fá sustenido, é sol bemol!” E desligou. O Chefe abaixou o jornal (onde estava conferindo a tabela do campeonato e calculando quantos pontos seu time teria que ganhar para fugir do rebaixamento). Ficou pensativo. Onde tinha ouvido, recentemente, a expressão sol bemol?... Engraçado, depois que uma enxaqueca passa o mundo parece meio irreal. Voltou à tabela.

No fim do expediente ele repassava a última planilha Excel com o recorte regional das estatísticas quando deu um pulo horrorizado e chamou o Número Oito. Este lhe garantiu que sim, a ordem fôra repassada e a esta altura já estaria provavelmente na Terceira Instância. O Chefe se desesperou. “Manda voltar! Era um modo de dizer!”. Depois de hora e meia de atividade febril, concluiu-se que seis dos subchefes tinham conseguido, por motivos vários, cancelar a ordem. Mas quatro deles (logo, eles, os mais eficientes! que injusta é a vida!) já tinham providenciado para que sua Terceira Instância desencadeasse o processo. Não demorou muito para que o noticiário das 19 horas informasse que a nova determinação estava sendo posta em prática em todo o Império, e que o Imperador assinara uma lei regulamentando sua execução. “A culpa é das telecomunicações eletrônicas”, disse alguém. “Tudo ficou fácil demais”.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

2415) O Ulisses israelense (1.12.2010)




(a tradução brasileira, de Nancy Rozenchan, pela Editora Imago) 

A literatura israelense contemporânea é pouco traduzida aqui no Brasil, e o único autor de quem consigo lembrar sem consultar uma enciclopédia é Amos Oz. 

Então, não sei avaliar (a não ser na base do chutômetro) a possivelmente complicada linha genealógica literária que para Joshua Cohen faz de Past Continuous (1977) de Yaakov Shabtai (1934-1981) o “Ulisses israelense”, meio século depois do de Joyce. 

A intenção de Cohen é tentar identificar em cada nação qual o livro que melhor dá continuidade às experiências estilísticas de Joyce: oralidade, fluxo de consciência, mescla de discursos aparentemente disparatados, dilatação da passagem do tempo, mistura erudito/plebeu, épico/banal, etc. Em algumas literaturas, esse momento só se dá muitas décadas depois do Ulisses

Cohen descreve assim o livro: 

“Escrito num único parágrafo, o único romance deixado completo por Shabtai é uma intrincada crônica da vida israelense em meados dos anos 1970. Frases intermináveis expõem o entrelaçamento das vidas de um grupo de amigos e parentes que se encontram nas ruas e nos salões de Tel Aviv após a morte do pai de um dos protagonistas. Discute-se socialismo e religiosidade, pratica-se sexo, os costumes dos judeus europeus são diagnosticados como irrelevantes, mas o que faz deste romance um marco da literatura em hebreu é o espantoso domínio do autor sobre as longas frases com cláusulas embutidas e digressões coloquiais”. 

Os três personagens principais são o fotógrafo Caesar, o tradutor Goldman e o pianista Israel. O livro se abre com a morte do pai de um deles em 1 de abril e se encerra com o suicídio do filho em 1 de janeiro, cobrindo o período simbólico de nove meses. É um livro várias vezes premiado em seu país, e considerado o primeiro romance escrito em hebreu vernacular. 

Uma resenha no New York Times lamenta a decisão dos tradutores norte-americanos de partir em ocasionais parágrafos uma obra que no original é um único parágrafo do começo ao fim (o tipo de decisão que provoca nos tradutores e editores conscienciosos um calafrio de presságio e insônias cheias de culpa). 

Diz Alan Leichuk no NY Times que a narrativa avança por meio de associações entre personagens, seguindo um deles por várias páginas, depois acompanhando outro com quem ele se relaciona, até encontrar um terceiro e passar a segui-lo, até que depois de várias voltas estamos novamente de volta ao primeiro e tudo recomeça. Ele comenta: 

“É o retrato mais prodigioso e provavelmente mais realista da sociedade israelense contemporânea; não há utopias de kibbutz, nem a mística de Jerusalém, nem otimismo sionista, nem heroísmo de Sabra, e sim um retrato de proporções balzaqueanas de uma família e de um povo em crise, vidas vividas no fim de um sonho que se desgarrou, e de um paraíso em explosão”. 

Um curioso reflexo do livro de Joyce num mundo judeu cuja existência Joyce talvez não conseguisse imaginar.









terça-feira, 30 de novembro de 2010

2414) Imprensa e liberdade (30.11.2010)




Toda vez que um governo anuncia qualquer medida de controle da imprensa, os jornais, rádios e TVs se assanham e se pintam para a guerra. E têm mais é que fazer isso mesmo. Se a imprensa não defender seus próprios interesses, quem vai fazê-lo? A Sociedade Protetora dos Animais? 

Alguns jornalistas, no entanto, como qualquer outra categoria, gostariam de ter liberdade ilimitada. Dizer o que bem entendessem, ficando tudo por isso mesmo; publicar qualquer coisa sem terem que prestar contas a nenhum tipo de controle externo. O que ocorre é que, como com qualquer cidadão, a liberdade do jornalista termina onde começa a liberdade alheia.

Na vida real, acabamos sempre chegando à situação expressa no velho clichê de “não devemos confundir liberdade com libertinagem”. A imprensa não tem liberdade para publicar injúrias, calúnias ou difamações – se um cidadão comum é punido pela lei, se o fizer, por que motivo uma empresa não o seria? 

A imprensa não pode pregar o ódio ou o racismo. O grande teste sobre liberdade de imprensa é sempre perguntar: Você defende a proliferação de jornais nazistas ou de estações de TV da Ku-Klux-Klan?

Durante o tempo da ditadura militar o antagonismo entre governo e imprensa era de tal ordem que se criou, principalmente em nós, jornalistas, a noção de que o governo está sempre errado (“porque todo governo é mal intencionado, é corrupto, e se pudesse calaria para sempre a boca da imprensa”) e a imprensa está sempre certa (“porque ela é a consciência crítica e o olho vigilante da população, e só trabalha movida pelos interesses mais altruístas, éticos e desinteressados”). 

Sejamos realistas – nem sempre é assim. Às vezes, os governos podem ser democráticos, e órgãos da imprensa podem ser golpistas. Às vezes, os governos podem estar pensando no bem da população, e alguns órgãos da imprensa podem estar pensando apenas em encher os cofres de dinheiro suspeito. E assim por diante. Ocorre em qualquer país, em qualquer época. É da natureza humana.

Já falei aqui que a maior liberdade de imprensa seria um jornalista poder publicar num jornal uma matéria de duas páginas, exaustivamente pesquisada, denunciando os trambiques do próprio dono do jornal. 

Sempre que digo isso, todo mundo ri: “Ora, isso seria impossível”. Por que é impossível? Ora, porque todo mundo sabe que dentro de uma empresa todos os interesses (dos empregados) estão subordinados aos interesses dos patrões. O jornal pertence ao patrão, e serve para defendê-lo. Qual o patrão que é doido de permitir esse tiro-pela-culatra, esse hara-kiri de voltar a arma contra si mesmo? 

Surge daí o corolário: é raro, raríssimo, um jornalista ter plena liberdade para escrever o que quiser. “Liberdade de imprensa” é uma expressão ideal, é como quando os professores de Física: “Em condições normais de temperatura e pressão...” ou então “Uma esfera ideal desliza sem atrito por um plano inclinado...” Não existe na vida real.