domingo, 21 de julho de 2013

3244) Lima Barreto (21.7.2013)




Há um movimento nas redes sociais, lançado por Josélia Aguiar, Álvaro Costa e Silva (“Marechal”) e André Vallias, e divulgado pela tradutora Denise Bottmann (do blog “Não gosto de plágio”) para que a Festa Literária de Paraty (Flip) de 2014 homenageie a obra de Lima Barreto. Há outros possíveis homenageados, como Rubem Braga. Essas homenagens causam sempre um momento de hesitação e remorso, porque de um modo geral todos os sugeridos merecem, e a gente, mesmo celebrando o escolhido, fica com pena dos descartados. Em todo caso, Lima Barreto é uma escolha justa, e mesmo que não se confirme vou aproveitar para conhecer melhor sua obra, da qual já li vários contos e artigos, mas nenhum romance. (Pois é, galera, não tenho problema em revelar o que não sei. O pouco que sei já me garante.)

Lima Barreto (1881-1922) teve que batalhar contra muitos preconceitos. Primeiro, o da cor, que o fez compartilhar o destino de Cruz e Sousa, Machado de Assis (em parte) e outros autores negros ou mestiços de cem anos atrás, num Brasil branco que cerrava fileiras em torno de sua brancura como um time que está ganhando o jogo de 1x0 mas sente no adversário cada vez mais volume de jogo.

Outro preconceito foi devido à bebida e à loucura, um karma permanente do destino literário. Já frequentei o prédio da UFRJ na Praia Vermelha, no Rio, inclusive para fazer palestras, e sempre alguém comenta que foi ali que Lima Barreto ficou durante suas internações psiquiátricas. Algo parecido me ocorreu quando visitei há 30 anos o antigo presídio da Ilha Grande, e lembrei de Graciliano Ramos e suas memórias do cárcere. Alguns dos grandes escritores brasileiros do futuro talvez sejam pessoas de que nem eu nem vocês jamais ouvimos falar, pessoas que talvez estejam hoje numa cadeia, ou numa clínica de desintoxicação. Quem pode garantir?

Um traço notável de Lima como escritor é a clareza e a precisão de sua prosa, sem nada daquele maneirismo dos beletristas do seu tempo. Lima era direto, coloquial, usava um português sem paletó nem gravata, e isso era muitas vezes alegado como falta de cultura. Já comentei aqui nesta coluna o livro que contrapõe artigos de Lima Barreto e de Coelho Neto sobre futebol (O Fla-Flu literário, de Mauro Rosso, http://bit.ly/13yAvnj). É espantosa a atualidade da linguagem de Lima, comparada à do autor de “Sertão” – que aliás admiro, é um dos autores queridos da minha juventude. Sua prosa ornamental e pomposa envelheceu; a de Lima parece escrita dez anos atrás, ou mesmo este ano. Mas foi escrita naquele Brasil da República Velha, engessado, costurado por privilégios raciais e feudos políticos.


sábado, 20 de julho de 2013

3243) O ateu fundamentalista (20.7.2013)




Quem lê esta coluna já sabe que sou agnóstico, sem religião. Tenho uma forte tendência mística, mas ela não vai na direção da espiritualidade (a crença num mundo além da matéria, independente da matéria), e sim na direção de um mundo transcendental, além-matéria, que será um dia criado por nós, ou por outros seres tão materiais quanto nós. Em suma: meus impulsos místicos são plenamente satisfeitos pela vertente cosmológica, trans-humanista, da ficção científica. Um misticismo com raiz na ciência, ou então misticismo nenhum.

Mas não sou ateu. Me perguntam isso o tempo todo, e algumas pessoas não entendem como é que não me considero ateu, mesmo não acreditando em Deus. Primeiro (explico) existe o fato de que nada tenho contra a existência de um Deus, e na verdade acho que teríamos vários benefícios se uma divindade assim existisse, uma divindade como a dos cristãos, da cultura em que fui criado. (Sim, fui batizado, e casei uma vez na igreja, mas nunca me confessei nem fiz comunhão.) A questão é que nunca experimentei a fé intensa e espontânea que tantos religiosos descrevem, nem nunca me deparei com uma argumentação convincente da existência de um Deus. Não acredito em Deus como não acredito em vida na Lua. Acho que não existe; não tenho certeza, acho apenas que é pouquíssimo provável. Se me provarem amanhã que existe, serei o primeiro a mudar de opinião e dizer a todo mundo. Qual é o problema em ser convencido pelos fatos?

O que me irrita na religião são os fanáticos, os hipócritas (que pregam uma coisa e fazem outra às escondidas), e os proselitistas, os que do nada querem nos impor a sua crença (e se pudessem usar a força bruta para fazê-lo, não hesitariam).

E nos últimos tempos tenho visto muitos ateus adotando essa postura irritante dos piores religiosos que a gente vê por aí. Não lhes basta não crer em Deus: querem convencer os crentes a deixarem de crer, querem transformar a discussão religiosa em algo parecido com um confronto de militâncias políticas em reta final de campanha. É nessas horas que a gente percebe a tendência fundamentalista, autoritária, presente em ambos os grupos. Era de se esperar que predominasse no lado religioso o espírito humanista e compassivo dos que dizem experimentar a comunhão com a Divindade; e no lado dos ateus o equilíbrio sereno dos que dizem cultivar a busca desinteressada da sabedoria. Mas quando a discussão filosófica se aproxima da rivalidade político-partidária ou da cegueira futebolística... Vai ser engraçado qualquer dia ver Deus sendo defendido com porretes e a Ciência vindicada mediante coquetéis Molotov.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

3242) Mídia Ninja (19.7.2013)




Quinze anos atrás, o escritor de FC David Brin publicou um livro intitulado The Transparent Society (1998), em que discutia as consequências da rápida evolução das tecnologias de vigilância eletrônica. O livro desenvolvia um artigo homônimo de 1996 na revista Wired (http://bit.ly/3bGnct) e surgia num contexto em que a imprensa debatia com fervor o medo de estarmos penetrando num mundo totalmente Big Brother, um mundo de vigilância eletrônica permanente do Estado sobre os cidadãos.  Um mundo em que seria possível ao Estado, à polícia, até mesmo às forças de segurança de outra nação (vide a recente denúncia de espionagem norte-americana no Brasil) fiscalizar nossa vida pessoal, ter acesso à nossa vida financeira, rastrear nossos passos.

Brin contra-atacava esse medo dizendo: E se o feitiço virar contra o feiticeiro? E se esses mesmos instrumentos também permitirem ao cidadão vigiar o Estado? E se essas câmerazinhas não estiverem apenas nas mãos da polícia e dos espiões, mas nas mãos de cidadãos que poderão registrar as atividades do aparelho repressor do Estado, ou de quaisquer grupos organizados que os prejudiquem? E se qualquer cidadão puder ter acesso ao que qualquer câmara da cidade está filmando em cada momento? E se a prisão de um cidadão na rua estiver sendo observada por pessoas capazes de testemunhar qualquer arbitrariedade policial, pois o acesso a essas imagens não é privilégio de ninguém?

As recentes manifestações de rua no Brasil têm sido cobertas por manifestantes jovens com minicâmeras transmitindo ao vivo; grupos como Mídia Ninja (“Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação”) e Olho da Rua. Noite e madrugada adentro, da minha casa, acompanho tudo que acontece acessando http://twitcasting.tv/ninja2rj/.  A imagem e o som não são 100%, a conexão cai de vez em quando... mas, amigos, esta é a fase irmãos-lumière de uma sociedade transparente como a sugerida por David Brin há 15 anos.

Dizia ele: “A chegada desses implementos em nossas cidades não pode ser retardada. Ricos, poderosos e as figuras de autoridade os terão, seja legalmente ou clandestinamente. As imitações vão se propagar, e vão se tornar menores, mais rápidas, mais baratas e mais inteligentes a cada ano que passe.” Quem vigia os vigilantes? – perguntava Alan Moore em Watchmen. Se nossa sociedade tende a uma perda geral de privacidade, a única maneira de tornar isto uma coisa positiva é estender esse fenômeno aos governos, às autoridades, aos aparelhos de repressão. Eles também estarão sendo vigiados, observados por milhares de pequenas câmaras.  Um Governo não pode exigir para si a privacidade que nega aos seus cidadãos.


3241) O tempo presente (18.7.2013)




(Flip 2013: Noemi Jaffe, Ferrari, Galera)

Numa palestra da Flip 2013, mediada por Noemi Jaffe, Daniel Galera e Jerôme Ferrari falaram, entre muitas outras coisas, da relação de seus personagens com o tempo. O livro de Galera, Barba ensopada de sangue (2012), fala de um rapaz que vai morar num balneário e aproveita para pesquisar a vida de seu avô, sobre o qual sabe pouca coisa. O de Jerôme, Sermão sobre a queda de Roma (2012)  fala de dois amigos que se afastam de Paris e montam um bar na Córsega, onde pretendem viver mais ou menos ao abrigo de grandes agitações e grandes mudanças.

Galera comentou a certa altura o quanto é difícil viver no presente. Na maior parte do tempo estamos preocupados com o futuro ou então estamos remexendo na memória, no passado. Jerôme observou que o projeto do bar na Córsega serve para seus personagens como a tentativa de produzir um futuro que seja a infindável repetição do presente. Uma tentativa de congelar o tempo.

O presente é feito de partes iguais de passado e futuro. É um entrelaçamento de memória e vontade, a memória checando o que ficou para trás e a vontade nos obrigando a avaliar o tempo inteiro o que nos pode suceder mais à frente.

O romance moderno superou a antiga construção cronológica tipo passado-presente-futuro, onde os fatos pareciam seguir uma sucessão numérica. No romance atual, os tempos estão todos superpostos, mesmo quando há um fio de enredo nos tranquilizando com a sugestão de uma estrutura tipo começo-meio-fim. Um romance como Os Detetives Selvagens (1998) de Roberto Bolaño avança a passos trôpegos, porque a cada página as informações sobre o passado se multiplicam; na verdade, é rumo ao passado que avançam as investigações sobre os dois poetas que são os personagens principais.

A incapacidade de viver no presente, observada por Daniel Galera, é aparentemente anulada nos romances narrados no presente do indicativo. Essa narrativa aqui-e-agora, que lembra a imediaticidade de um filme ou de um videogame, procura chamar a atenção para esse espaço instável onde memória e vontade travam um cabo-de-guerra incessante. Viver num “eterno presente” exprime o desejo de cancelar a morte mas por outro lado impede de ajustar contas com o tempo. O presente é feito de passado e futuro assim como o café-com-leite é feito de leite e café. A cada momento mudam as proporções de cada um, mas estão sempre ali, são a substância mental da nossa experiência. O romance de hoje percebe isso e busca a expressão desse tempo híbrido em que cada trecho do presente parece estar se estendendo rumo às duas outras direções, como uma corda de violão que só vibra no centro porque está presa nas duas extremidades.


quarta-feira, 17 de julho de 2013

3240) "O Estrangeiro" (17.7.2013)





O “romance noir” norte-americano conta histórias angustiadas de crime, carregadas de fatalidade, desesperança, e da sensação de quem está num mundo movido por forças incompreensíveis e inconscientes de si mesmas. 

Nada nos impede de ver dessa maneira O Estrangeiro de Albert Camus. Ele é um equivalente filosoficamente mais denso das histórias policiais soturnas de James M. Cain, David Goodis, Horace McCoy. 

Lançado em 1942, sua repercussão crítica ao longo das décadas seguintes (aumentada com a concessão do Prêmio Nobel a Camus em 1957 e sua morte precoce, aos 46 anos, em 1960) foi associada à visão existencialista do mundo e à visão do absurdo.

Seria uma atividade tipo “o ovo ou a galinha” tentar descobrir se Camus lia romances policiais norte-americanos na Argélia ou se via os “filmes noir” dos anos 1940. 

Em muitos desses filmes encontramos perfeitos equivalentes do Meursault de seu livro: indivíduos sem um projeto de vida, sem um propósito, vivendo para o presente e aceitando, meio atordoados, o que o presente lhes impõe. Não têm ambições nem fazem planos para o futuro; não são capazes de grandes afetos nem de grandes ódios; avançam pela vida como que anestesiados, meio indiferentes, cultivando pequenos objetivos – arranjar algum dinheiro, ter onde dormir, comer sem fome, amar sem amor.

Meursault é assim, e é até surpreendente que uma garota como Marie Cardona queira casar com ele. A resposta dele é típica: concorda em casar com ela, “se isso a faz feliz”, mas dá a entender que nunca tomaria a iniciativa de pedi-la, e que se outra mulher lhe fizesse a proposta ele provavelmente aceitaria também. 

A passividade de Meursault o conduz ao crime e à condenação, quando todas as provas, em retrospecto, parecem defini-lo como um homem frio, insensível, cruel. Ele é o indivíduo alienado, disponível, sem projeto, exposto ao vento das vontades alheias, que podem levá-lo em qualquer direção. 

Atentados políticos são muitas vezes praticados por gente assim, gente como Lee Oswald, Sirhan Sirhan, Ali Agca. Foram soprados por uma doutrina assim como um barco é soprado pelo vento, mas essa doutrina lhes é essencialmente estranha.

O Estrangeiro é uma história de crime tipo “whydunit”, onde o que importa não é “quem” cometeu o crime nem “como”, e sim “por quê”. 

“Por causa do calor”, diz ele ao explicar ao tribunal por que abateu um árabe a tiros, na praia. Meursault é o homem absurdo, num mundo em que não chorar no enterro da mãe é tão crime quanto matar um homem. O livro se passa em Argel, mas não é difícil imaginá-lo nos EUA, a história de um rapaz do Bronx que mata um negro a tiros durante um passeio a Coney Island.






segunda-feira, 15 de julho de 2013

3239) Parafuso (16.7.2013)




O parafuso está um degrau acima do prego, em termos de evolução. Quem inventou o prego? Os primeiros eram talvez pedaços de graveto usados para perfurar e unir folhas largas da cobertura de uma cabana, fixando-as umas às outras. Depois que o metal começou a ser forjado, não custou muito perceber que ele, se pontiagudo, podia fazer o mesmo com dois pedaços de madeira. Já o parafuso exigiu uma mente mais sofisticada. A idéia de enfiar um prego torcendo-o, ao invés de batendo, deve ter ocorrido aos usuários milhares de anos antes de alguém ser capaz de esmerilhar no metal a rosca que o ajuda a penetrar e depois o mantém preso.

A palavra inglesa para parafuso, “screw”, é a mesma para o verbo que indica o ato sexual, nosso famoso verbo com F. Há um simbolismo fálico evidente, mas seria mais lógico o uso de “nail” (prego), cujo movimento corresponde de modo mais instintivo ao do ato em si. Prego e parafuso envolvem conceitos diferentes de movimento: o movimento reto para a frente e o movimento helicoidal para a frente. Para fazer a forma evoluir de um ao outro é preciso partir para um conceito totalmente diferente. Era o mesmo impasse dos sujeitos que tentaram inventar o avião construindo máquinas que batiam as asas, imitando o voo dos pássaros. Levou algum tempo até todo mundo perceber que o caminho não era esse.

O movimento helicoidal do parafuso (basicamente os movimentos simultâneos de giro em torno de si mesmo e de avanço num eixo retilíneo perpendicular – me corrijam se isto está errado) foi uma conquista conceitual sofisticada. Seria interessante ver se a fenda na cabeça (onde se insere a chave de fenda) surgiu logo, ou se os primeiros parafusos tinham uma haste projetada para cima e eram torcidos com o dedo (como as chaves comuns).

É famosa a quadrinha popular, de autor incerto: “A saudade é um parafuso / que na rosca quando cai / só entra se for torcendo / porque batendo não vai; / e se enferrujar por dentro / pode quebrar, mas não sai”. Henry James escreveu sua famosa história de terror Outra Volta do Parafuso baseado na idéia de que fantasmas perseguindo uma criança seriam (para usar uma expressão popular) um arrocho, e se fossem duas crianças seria outro arrocho maior ainda. O aperto dos parafusos não é necessariamente uma coisa ruim: sempre dizemos que Fulano de tal tem um parafuso frouxo (ou faltando) quando constatamos que ele não bate bem da cabeça. “Ter um parafuso a menos” é sinal de desorientação mental, e dizem que o painel de Aldo Locatelli no aeroporto de Porto Alegre era informalmente chamado de Bagunça na Oficina, pois os personagens pareciam todos em busca de um parafuso desaparecido.


sábado, 13 de julho de 2013

3238) Ensaios literários (14.7.2013)




(Flip 2013: Pires, Dyer, Sullivan)

Nascer na Paraíba foi uma das melhores coisas que poderiam ter me acontecido, porque eu sou por natureza um cidadão do mundo. Se nascesse em Paris ou Nova York, eu me diluiria em generalidades e irrelevâncias, ainda que lucrativas. Ser paraibano, estar por assim dizer perto da bandeirinha de corner do Palco do Universo me serviu (como serve a todos nós) de alerta. O alerta parece dizer: você é o centro do seu mundo mas não é o centro do mundo. O mundo é maior do que você, e não vai perceber sua existência, a menos que você faça alguma coisa importante. Te vira, véi.

Isso me vem à mente ao considerar a mesa realizada na Flip, entre os ensaístas Geoff Dyer (Inglaterra) e John Jeremy Sullivan (EUA), mediados pelo brasileiro Paulo Roberto Pires. Dyer e Sullivan são dois ensaístas literários da velha escola, ou seja, escrevem textos longos, meditativos, críticos, geralmente na primeira pessoa, mas envolvendo, em torno do objeto principal do texto, uma grande quantidade de referências pessoais, literárias, culturais, políticas, etc. Um ensaísta da velha escola, ao escrever sobre um parafuso, coloca por alguns minutos o parafuso no centro do seu mundo mental, e faz convergir tudo que sabe na direção desse pequeno objeto.

Paulo Roberto Pires observou com propriedade que no Brasil o termo “ensaio” se aplica muitas vezes ao ensaio acadêmico: duro, árido, cheio de jargão, manietado por uma estrutura referencial e demonstrativa que deixa muito pouco terreno para a expressão pessoal. Já o ensaio que estou chamando aqui de “velha escola” nada impõe em termos de estilo ou de estrutura. O autor é livre para concebê-lo, e cada um vai na direção de si mesmo. Um inglês como Dyer talvez derive (não li nada dele ainda) na direção de autores como G. K. Chesterton, capaz de falar longamente e interessantemente sobre qualquer assunto; ou na de George Orwell, cujos ensaios são tão agudos e ácidos quanto sua ficção. Um norte-americano como Sullivan (comprei dele a coletânea Pulphead) pode recorrer à farta inspiração literária de um Edmund Wilson ou à experiência de Norman Mailer, desde que saiba temperá-las com a doidice de Hunter Thompson ou Lester Bangs.

Enfim: o ensaio literário é quando o autor mobiliza tudo que sabe, tudo que leu, tudo que viveu, para falar de assuntos tão bobos quanto um show de rock evangélico, uma luta de box, uma convenção de delegados de polícia, uma eleição presidencial, uma dose de mescalina, uma briga de vizinhos... Um autor, e todo o seu mundo mental, convergindo de uma vez só sobre um assunto. Se o autor e o mundo valerem a pena, o assunto pode ser até um parafuso.


3237) O trem de Gotán City (13.7.2013)




(foto: Gavin Hammond)

Gotán City tem 32 roteiros turísticos de trem.  Comprei o carnê “Vida de Charles Windstern”. O trem chia, o vapor silva, a engrenagem rumoreja e se põe em movimento, e eu tiro da pasta o Guia Informativo.  Desfilam na janela armazéns com vidraças quebradas e manchas verdes de infiltrações antigas.  Outdoors descascando como pele após a praia.  Homens gordos de macacão, sentados em pilhas de dormentes, com charuto apagado na boca.  A primeira parada do trem é na Rua 152, a 1 km da estação. 

Vemos a placa indicando o lugar onde havia a casa em que Charles nasceu, em 2011.  Em seu lugar ergue-se hoje uma pet-shop de oito andares, toda de vidro fumê, luzes de mercúrio, comerciais em loop na fachada de cristal líquido. O altofalante do trem refere-se a Charles como “o último grande pensador do século”. O trem arranca.

A próxima parada, na Rua 200, mostra de longe o soturno Colégio Gospel onde Charles estudou até os 16 anos.  Continua intacto; é mantido por subvenções coletadas em oito países.  No tempo de Charles formava 400 alunos por ano, agora forma 55 (o Reitorado afirma que os critérios tornaram-se mais exigentes). A estátua de Charles no jardim foi removida temporariamente para conserto na tubulação de esgoto.  Está deitada na horizontal, perto do muro, sua mão erguida se projeta sobre o laguinho onde bóiam folhas secas.

As paradas seguintes mostram a praça onde Charles foi alvejado durante uma manifestação sindical; o hospital onde ficou interno durante os seis anos seguintes, cruciais para sua formação teórica, quando leu tudo que estava ao seu alcance; o primeiro shopping onde pregou, pela primeira vez, após a cura e a conversão. Cada vez que o comboio se detém, os vidros-telas das janelas superpõem imagens históricas e texto escrolado à paisagem que observamos lá fora. 

Eu deveria sentir gratidão pela qualidade dos écrans das janelas, a alta definição das imagens que se superpõem ao que vem lá de fora, o esfumado das sombras e das cores, o delineamento das formas. Eu deveria agradecer pela exatidão com que a arte se superpõe ao mundo em pedra e osso.  Eu deveria ler tudo aquilo e acreditar piamente que existiu um dia um cara chamado Carlos Windsurf ou coisa parecida e que o que quer que esse camarada tenha feito mudou a vida, mudou o mundo como o conhecemos. Karl existiu? Foi um líder? Um messias? Um caudilho impiedoso e que falava bem? A viagem continua, e, diz um item no “Você Sabia?” do folheto promocional, “a biografia estocada de Charles tem certa de seis milhões de items para acesso aleatório, de modo que nenhuma vida, nenhuma história é igual à outra em Gotán City.”


sexta-feira, 12 de julho de 2013

3236) Escrevendo clichês (12.7.2013)






O clichê é uma expressão que, quando foi usada pela primeira vez, produziu nos leitores uma emoção poética instantânea.  Pela associação de idéias que fazia, ou talvez pelo seu modo de visualizar uma coisa de uma maneira original, mas reconhecível. Quando um jornalista descreve um acidente de carro e se refere às “ferragens retorcidas”, está usando um modo de dizer que em certo momento foi novo, produziu um efeito visual novo, trouxe uma informação nova para o leitor. O problema é que todo mundo começou a usar essa expressão; os jornais de 50 anos atrás estão cheios dela. O leitor, depois da décima vez, não está mais recebendo qualquer informação nova. Aquilo virou um carimbo repetitivo, sem novidade. E os redatores sem imaginação continuam recorrendo a ele, achando que estão sendo literários, que estão sendo expressivos.

Qualquer frase pode se transformar num clichê. Muitas vezes é um modo de dizer que foi popularizado pelo título de uma obra de muita repercussão. Depois que Zuenir Ventura publicou seu ótimo livro-reportagem 1968: o Ano Que Não Terminou, surgiu uma infinidade de livros falando num dia que não começou, numa semana que não acabou, etc. A expressão “a pergunta que não quer calar” incorporou-se em poucos anos ao linguajar escrito da nossa imprensa e às respostas de entrevistados, sempre que alguém quer introduzir uma questão da maior importância, ou para a qual não se está dando a atenção devida. Um clichê adjetivo que rapidamente se grudou ao nosso discurso coletivo foi a expressão “de plantão” para caracterizar um grupo de pessoas que compartilham uma atitude – daí falarmos  o tempo inteiro nos alarmistas de plantão, nos aproveitadores de plantão, nos críticos de plantão.

Acho que foi a apresentadora e entrevistadora Leda Nagle (que trabalhou muito tempo na Globo, e hoje está, acho, na Rede Brasil) quem popularizou a expressão “com certeza”. Ela sempre se despedia ao fim dos programas dizendo: “ E estaremos amanhã de volta. Com certeza.” Esse bordão foi se repetindo e acabou virando sinônimo de “sim”. Hoje em dia, pergunta-se: “Este é o seu novo CD?”, e o cantor responde: “Com certeza”. Toda vez que eu digo isso, numa entrevista, dou o dia por perdido.

Em vez de dizer que a estréia próxima do show está lhe dando um “friozinho na barriga”, diga que o está fazendo perder o sono, ou o apetite. Em vez de dizer que um goleiro foi um “espectador privilegiado” da partida, diga qualquer outra coisa – que ele tirou férias antecipadas, ou que passou o jogo no stand-by, ou que estava hibernando. Dispense o clichê velho. Se achar um bom substituto, ele pode até virar um clichê novo.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

3235) Um Pessoa muito pessoal (11.7.2013)




Um dos momentos mais intimistas e de maior empatia da 11a. Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) foi o recital de Fernando Pessoa feito pela cantora Maria Bethânia e pela professora Cleonice Berardinelli, “Dona Cléo”. Maria Bethânia foi uma das maiores divulgadoras da poesia de Pessoa em seus shows, a partir (creio) de Rosa dos Ventos, e depois em todos os outros em que trabalhou sob a direção de Fauzi Arap, a quem ela atribui tê-la “aplicado” com a poesia do português. Dona Cléo, aos 96 anos, considerada a maior especialista pessoana no Brasil, diz ter sido “inoculada” ainda aos vinte e poucos, por seu professor Thiers Martins Moreira, a quem dedicou um dos seus estudos sobre o poeta.

Respondendo a perguntas da platéia, entremeadas a provocações amistosas do mediador Júlio César Diniz, as duas recitaram poemas alternados dos heterônimos de Pessoa, e, às vezes, em estilo “mourão voltado”, cada uma dizendo uma linha. Poemas ditos em voz alta, principalmente por pessoas que os leem, releem e examinam há muitos anos, sempre trazem surpresas. Cada interpretação é pessoal. Certos versos parecem plácidos e tranquilos até que os ouvimos ditos com voz veemente, e percebemos que havia uma tempestade por baixo dele. Um tom interrogativo ou hesitante pode enriquecer uma frase aparentemente banal. Em geral, quando lemos, temos como único guia musical a pontuação gráfica, que serve como uma espécie de notação musical: indica pausas, força, pergunta, mudança de tom, etc.  A leitura na voz alheia nos mostra que outras pontuações, além da escolhida pelo autor, podem ser aplicadas àquelas frases.

Pessoa foi único em sua multiplicidade assumida. Depois dele percebemos que muitos outros poetas poderiam ter usado heterônimos para explicar facetas diversas de si mesmo. O Augusto dos Anjos humano e afetivo de “Ricordanza della mia gioventù” e “A árvore da serra” não é necessariamente a mesma personalidade que concebeu as visões tenebrosas do “Poema Negro” e das “Tristezas de um quarto minguante”.

É surpreendente também constatar que o baú de Pessoa tem mais material que o de Raul Seixas. Desde a morte do poeta em 1935 não param de aparecer poemas inéditos, que Dona Cléo afirma serem às vezes quase ilegíveis, pela idade do papel e da tinta, além da própria caligrafia do autor. Requerem lupa, requerem fotos e ampliações, requerem longas discussões sobre palavras borradas ou obscuras. Como se cada palavra fosse ao mesmo tempo várias outras, e cada uma dessas escolhas nos desse a possibilidade de compor, por multiplicação combinatória, incontáveis poemas diferentes.