quinta-feira, 2 de junho de 2011

2572) Drummond: “Festa no Brejo” (2.6.2011)



É um dos poeminhas menores, quase invisíveis, de Alguma Poesia (1930), primeiro livro de Carlos Drummond, cujos 80 anos foram comemorados no ano passado, e que eu recebi (de mim mesmo) a incumbência de comentar, poema por poema. “Festa no brejo”, se enviado anonimamente para a maioria das revistas literárias de hoje, dificilmente emplacaria uma publicação. O poema diz: “A saparia desesperada / coaxa coaxa coaxa. / O brejo vibra que nem caixa / de guerra. Os sapos estão danados. // A lua gorda apareceu / e clareou o brejo todo. / Até a lua sobe o coro / da saparia desesperada. // A saparia toda de Minas / coaxa no brejo humilde. // Hoje tem festa no brejo!”.

Parece uma pequena polaróide caipira, registro da observação de um capiauzinho à beira de sua palhoça, contemplando o brejo ao luar. Ilusão trêda! Para mim o poema de Drummond é citação, homenagem e piscadela-cúmplice-de-olho na direção do famoso poema de Manuel Bandeira “Os Sapos” (no livro Carnaval, 1919). Diz Bandeira: “Enfunando os papos/ saem da penumbra. / Aos pulos, os sapos / a luz os deslumbra. // Em ronco que aterra, / berra o sapo-boi: / - Meu pai foi à guerra! / – Não foi! – Foi! -- Não foi!” // O sapo-tanoeiro / parnasiano aguado, / diz: -- Meu cancioneiro / é bem martelado. // Vede como primo / em comer os hiatos! / Que arte! E nunca rimo / os termos cognatos”.

Já se viu, né? É Bandeira mangando dos poetas acadêmicos que só tem o academicismo para lhes valer, dos poetas que esquartejam o poema no leito de Procusto dos tratados de versificação. Consta que o poema é de 1918, ano da morte de Olavo Bilac. Isso será Bandeira perturbando o velório do outro? Ou terá sido justamente o poema que precipitou o desenlace? Difícil saber a esta altura, e desnecessário. Drummond e sua festa no brejo estão fazendo uma referência clara ao inconformismo generalizado contra o Modernismo, de que Bandeira é considerado uma espécie de precursor, de São João Batista vindo para anunciar quem virá depois.

Os sapos de Drummond, que estão desesperados, podem ser os críticos ou os poetas acadêmicos mineiros, horrorizados com os modernistas, essa quadrilha de diferenciados que surgiu para agredir a Norma Culta do idioma. (Naquele tempo, amigos, era agressão à Norma Culta dizer “que nem”, e um adjetivo como “danado” só se usava em contextos teológicos e canônicos.) O retrato que o poeta nos dá do brejo é o de uma imensa aflição que, linha a linha, vai meio que desmentido a “festa” do título. O que a gente vê é uma situação ansiosa, pois os sapos coaxam de fúria, ou de irritação, ou de desespero. No fecho do poema, contudo, vem uma frase inesperada e triunfante: “Hoje tem festa no brejo!”. Como se dissesse: “O brejo é nosso! Eles estão aí, reclamando pra valer, mas não adianta! A lua não lhes dá ouvidos, ninguém lhes dá ouvidos, viemos aqui pra fazer a festa no brejo. O brejo é nosso! Urrú! Urrú! O brejo é nosso!”

2571) História curta (1.6.2011)




(ilustração: Gustave Doré)

Como eu ia dizendo, faz uns quinze anos. 

Eu tinha ido passar o feriadão na fazenda de um amigo, no interior de Pernambuco. Perto de lá ficavam as ruínas de um antigo Engenho abandonado. Durante o dia a gente caminhava e tomava banho de rio; de noite, cerveja e violão. Depois do terceiro dia ninguém agüentava mais uma rotina tão estafante. 

Começamos a procurar alternativas. O dono da casa sugeriu que ficássemos fazendo hora até meia-noite e fôssemos para as ruínas do Engenho, aproveitando que era noite de lua. Por quê?, perguntamos. Ele explicou que o Engenho era mal-assombrado, e que à meia-noite apareciam coisas esquisitas lá. 

As esposas (havia várias esposas na turma) disseram que “nem mortas”, e que fôssemos nós, o contingente masculino. Um dos caras piscou o olho discretamente e disse que tudo aquilo era pretexto nosso para um encontro clandestino com algumas moçoilas da vila próxima. Houve um certo reboliço, e, para encurtar a história, acabou indo todo mundo.

A verdade é que estávamos mesmo curiosos para ver os possíveis fantasmas, e não havia mulher nenhuma envolvida. Ou melhor: havia agora, as nossas, e íamos ter que agir de acordo. 

Entrar num engenho mal-assombrado é um desafio para qualquer sujeito, requer atenção, concentração, dedos cruzados, fé no agnosticismo e assim por diante. Mas, e quando são três caras e três mulheres? Não é preciso nenhum ectoplasma para que fiquem em polvorosa, porque em qualquer sombra elas veem uma cobra e em qualquer folha roçagante um lacrau. 

Mas subimos a colina, forçamos uma porta, entramos lá dentro, lanternas em punho; e, pra encurtar a história, a verdade é que apareceu mesmo uma alma.

Não sei se era alma, mas era sem dúvida uma luminosidade difusa que persistia mesmo quando apagávamos nossas luzes. Surgia por trás de umas coisas enormes e bojudas que imaginei serem caldeirões. 

Pelas brechas do telhado em ruínas entrava uma luz muito pouca, mas não era avermelhada como aquela. Víamos diante de nós um círculo vermelho que em certo momento pareceu uma fogueira vista verticalmente de cima e em outros uma rosa desabrochando. 

Fomos chegando perto; não sei o que pensavam os outros, todos em silêncio, mas eu achei que era um reflexo de alguma fogueira de ciganos, sei lá o quê. Ao chegarmos perto da parede aquilo pareceu se expandir; não era fogo, era algo hologrâmico, impalpável, e mal essa luz nos envolveu eu vi, através dessas volutas de luz vermelha, que as formas bojudas punham-se em movimento, desdobrando patas articuladas que rascavam nas pedras do chão, erguendo tentáculos bífidos que meneavam na penumbra rósea. 

Não senti medo. Senti uma espécie de paz, como se uma ampola de anestesia mental me estivesse sendo injetada por inteiro, sossegando-me, imobilizando-me, preparando-me para o que viria a seguir. Nem me dei o trabalho de saber se o mesmo estava acontecendo com os outros, mas a verdade é que, pra encurtar a história, nenhum de nós voltou.





terça-feira, 31 de maio de 2011

2570) O romance de adultério (31.5.2011)



A crítica chama de “literatura mainstream” a corrente principal da literatura, ou seja, o romance realista em geral, que descreve a vida como ela é, os costumes das classes sociais, a existência cotidiana, etc. Em geral, esse conceito é contraposto à literatura dita “de gênero”: o romance policial, de terror, de ficção científica, de faroeste, de humor, etc. Estes seriam gêneros especializadíssimos e que, talvez por isto mesmo, são incapazes de reproduzir toda a complexidade do mundo de hoje.

Mas podemos considerar também que um gênero literário é uma espécie de repetição ritual de temas e situações que por variados motivos nunca deixam de encontrar leitores. O que é o romance de detetive? A história de um crime violento que ninguém sabe como e por quem foi cometido; e de um homem (o Detetive) que consegue interpretar da única maneira correta uma porção de indícios que os outros viram e não compreenderam e prender o criminoso. É a Razão servindo de instrumento para punir a Transgressão. Por motivos variados esse tipo de história nunca deixa de ter leitores. Uns são atraídos pela fascinação da Violência, outros pela conquista do reequilíbrio pela Sociedade, e outros (eu, p. ex.) pelas inesgotáveis manifestações da Inteligência.

Dentro do romance social e psicológico há um subgênero importantíssimo, mas que a crítica não costuma identificar como tal. Eu o chamo o Romance de Adultério: aquele em que uma instituição crucial da sociedade, o casamento patriarcal e monogâmico, é ameaçado pelo comportamento individualista e transgressor de uma ou mais pessoas. Dentro desta rubrica caberiam clássicos como Anna Karenina de Tolstoi, Madame Bovary de Flaubert, O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence, Dom Casmurro de Machado de Assis, O Amor Conjugal de Alberto Moravia e milhares de outros. Estes livros são considerados “mainstream” porque ninguém até hoje se mobilizou para defender a criação de um gênero que os abarcasse e que se certa forma “chamasse” a criação de novas obras baseadas neles. Essa criação se dá invisivelmente, dentro do mercado literário que já existe.

É curioso que este tema não tenha sido cristalizado em gênero, como foi o assassinato (através do romance policial). A dualidade casamento/adultério, segurança/aventura, respeitabilidade/transgressão tem sido uma inspiração constante da literatura nos últimos séculos, e gerou obras magníficas como estas que citei acima e muitíssimas outras. Alguns autores retornaram de maneira quase obsessiva ao tema. Machado de Assis, talvez pelo fato de publicar muitos dos seus contos em jornais e revistas voltadas para o público feminino, falou do assunto sob todos os ângulos possíveis. E no entanto a crítica planta firmemente esses romances dentro do território indiferenciado do “romance realista psicológico urbano” ou coisa parecida, quando, para transformá-lo em gênero, bastaria criar uma coleção e formalizar uma teoria.

domingo, 29 de maio de 2011

2569) O que é preconceito (29.5.2011)




Preconceito é uma idéia tão confortável que resistimos em nos separar dela.

De nada adiantam os argumentos mais razoáveis ou as provas contrárias mais esmagadoras. Tapamos os ouvidos, fechamos os olhos, fazemos “Dã-dã-dã-dã-dã-dã-dã... Não estou ouvindooo... Não estou ouvindoooo...”

Não somos capazes de viver sem aquela idéia, assim como uma criança não é capaz de viver sem sua chupeta, um fumante sem o seu cigarro, ou o ébrio sem a sua “garrafa tóxica de rum”, como dizia Augusto dos Anjos.

Um preconceito é um pesadelo que assaltou nossa mente de tal maneira que acabamos nos orgulhando dele. Ele faz parte de nós. Ficamos como a alma penada daquela história, vagando pelos corredores com um machado enfiado no crânio. Se alguém retirasse o machado libertaria aquela alma para sempre, e ela sabe disso, mas prefere aterrorizar os outros do que permitir que alguém toque naquele machado, que agora, confortavelmente, faz parte dela.

Essa imagem do machado enterrado no crânio me vem com frequência porque a sensação que tenho é de que os meus preconceitos (que são muitos) não foram escolhidos voluntariamente por mim, mas me foram impostos de fora para dentro ou de cima para baixo, com tal violência que não fui capaz de me defender.

Um preconceito é um implante mental. Recebemos aquilo antes de termos capacidade de entender o que significa. E o recebemos geralmente numa situação de dominação e poder que nos deixa indefesos, incapazes de reagir.

Grande parte dos nossos preconceitos nos é imposta pelos nossos pais, nossos professores, nossos amigos ou os meios de comunicação (numa idade em que acreditamos que “se está ali é porque é verdade”).

Como não entendemos que idéia terrível é aquela que nos habita, somos forçados a racionalizá-la, justificá-la. E construímos em volta dela uma camada protetora de explicações, de teorias, que nos servem de analgésicos. Quando o implante mental começa a doer muito, basta começar a pensar nas nossas racionalizações, as quais nos convencem de que estamos certos, sim, aquela coisa é terrível mas é verdade. E esse tylenolzinho filosófico nos ajuda a tocar a vida pra frente.

Para alguém nos “tirar do sério” basta questionar nossos preconceitos. Basta perguntar com o ar mais inocente do mundo: “Por que você anda com um machado enterrado no crânio?...”

Ficamos lívidos, a velha dor de cabeça retorna com força total, e começamos a espumar de raiva, com “o olho rútilo e o lábio trêmulo”, jogando em cima do ofensor todos os argumentos que nos ajudaram a justificar nossa condição.

Já os preconceituosos profissionais são mais calmos, mais ponderados, pelo simples fato de que, ao contrário de nós, fizeram daquilo sua razão de viver. Pensam naquilo 24 horas por dia. Impossibilitados de arrancar o machado, agarram-se a ele como um afogado ao salva-vidas, e conversam conosco esperando o momento propício para desferir mais um golpe.









sábado, 28 de maio de 2011

2568) A arte da subitização (28.5.2011)



A gente mostra uma foto dos Beatles a um sujeito que nunca ouviu falar deles e pergunta: “Quantas pessoas tem aí?”. O cara olha e responde em um segundo: “Quatro”. Mas se a gente mostrar uma foto de uma orquestra sinfônica e fizer a mesma pergunta, ele vai ter que sair contando: “Um... dois... três...”, até chegar ao total. O que ele fez no primeiro caso foi o que os psicólogos chamam de subitização: saber instantaneamente a quantidade de elementos de um conjunto sem ter de contá-los um a um. Dizem que o limiar médio do ser humano é quatro, e que à medida que essa quantidade vai aumentando, aumenta também a nossa dificuldade de “enxergar” o total, sendo preciso fazer a contagem.

Em seu conto “Funes, o Memorioso”, Borges tem uma visão hiperbólica do que seria essa função mental num homem dotado de memória absoluta. Diz ele: “Nós, de uma olhadela, percebemos três copos em cima de uma mesa; Funes percebia todos os rebentos e cachos e frutos que comporia uma parreira”. No filme Rain Man, há uma cena em que alguém derrama uma caixa de palitos no chão e o autista interpretado por Dustin Hoffmann percebe de uma só olhada que são 246.

A palavra significa “apreensão súbita ou imediata”. Muitas pessoas desenvolvem a capacidade de fazer tais cálculos através do processo chamado de “agrupamento e contagem”. Por exemplo, se mostramos uma foto com nove pessoas amontoadas ao acaso é mais difícil perceber quantas são do que se elas estiverem divididas em três grupos com três pessoas cada um. Neste último caso, bastam duas subitizações rápidas e sucessivas para sabermos que cada grupo tem três, e que o total é de nove.

Dizem que quando Henry Thoreau trabalhava numa fábrica de lápis ele sempre identificava a quantidade exata de lápis numa caixa sem contá-los. Já vi um depoimento de que algumas pessoas eram capazes de contar 38 ovelhas num rebanho, com uma só olhada à distância. Beremiz Samir, o personagem de O Homem que Calculava de Malba Tahan, levava essa capacidade a extremos surrealistas. Ao ver uma cáfila de camelos e ser perguntado quantos eram, ele dizia algo como: “São 484... Perdão, são 121, eu tinha contado as pernas deles”.

O hábito de contar folhetos de cordel me fez desenvolver um método de subitização baseado no número cinco. Quando a gente tem que saber o total de uma pilha com centenas de folhetos é mais fácil sair pegando de cinco em cinco (o olho calcula e o dedo separa num segundo), e ir contando: “1, 2, 3, 4, 5, 6....” No final basta multiplicar por cinco o total.

Um exemplo curioso diz respeito à capacidade de contar dos corvos (aves mais inteligentes do que a média). Três caçadores entram num local fechado, dois saem; os corvos olham e ficam à distância. Quatro entram, três saem: idem. O limite dos corvos é alcançado quando entram seis caçadores e saem cinco; os corvos pensam que o local está vazio e voam até lá. O limite de sua capacidade de subitização (ou de contagem) é cinco.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

2567) A Game of Thrones (27.5.2011)



A Game of Thrones é uma série que estreou há poucas semanas no canal HBO da TV a cabo, uma fantasia medieval que lembra por um lado os épicos de Conan Doyle (A Companhia Branca, O Escudeiro Heróico), por outro lado tem algo de O Senhor dos Anéis, e por outro, ainda, traz um pouco de um gênero que nada tem a ver propriamente com fantasia ou com Idade Média – o romance de intriga política, em que vários grupos lutam pelo poder. Em geral não assisto séries de TV (não sei como esses meus amigos conseguem trabalhar e assistir House, Lost, Os Sopranos, o escambau, tudo ao mesmo tempo). Desta vez me interessei porque a série se baseia num romance múltiplo de George R. R. Martin, conhecida figura que começou escrevendo ficção científica e depois optou pela fantasia medieval. Martin é um bom escritor, os livros dele foram elogiados por críticos que eu respeito, e isto me motivou a assistir os (até agora) três primeiros episódios.

O foco principal da história é Lord Stark, que governa a parte norte dos Sete Reinos, onde existe uma enorme muralha coberta de neve destinada a impedir a entrada de seres míticos e ameaçadores. O Rei o chama para a capital, para ser seu principal conselheiro. Stark não fica nem um pouco animado com isto, pois já tem problemas demais para administrar em seu próprio castelo. Mas ele é um dos melhores amigos do rei, são antigos companheiros de batalha que se tratam por “você”, e ele sabe que o rei corre perigo, porque há muita gente doida para defenestrá-lo e ocupar seu lugar no trono.

Stark, sua mulher e seus filhos são os personagens em princípio mais simpáticos de uma trama palaciana cheia de conspirações, traições, mentiras, etc. George R. R. Martin escreveu até agora quatro volumes de sua saga, cada um deles na faixa das 800 páginas (já estão sendo traduzidos no Brasil, pela Leya, sob o título geral de “Crônicas de Gelo e Fogo”). Um quinto volume deve ser lançado em julho nos EUA. Há muitos personagens e uma volumosa história prévia que vai sendo revelada aos poucos. É o tipo de história difícil de transpor para cinema ou TV, pois as disputas dinásticas e a política da corte requerem tipicamente longas cenas de diálogos. A direção da série tem se saído bem em exibir todas essas múltiplas linhas narrativas que ser cruzam e se interferem, embora um crítico tenha dito que tentar entender essa história é o mesmo que tentar entender a história política do Oriente Médio.

Game of Thrones tem um pé no fantástico, numa linha narrativa que ainda não foi bem desenvolvida: a anunciada invasão da fronteira norte dos reinos, através da Muralha, por criaturas que todos eles temem e nenhum conhece. Westeros (o nome do continente) é um lugar estranho, onde o inverno pode durar uma geração inteira – uma pessoa nasce, vive, envelhece e morre sem ter visto o sol. Tem bom roteiro, bons atores, e é melhor do que a maioria dos filmes que estão passando nos cinemas.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

2566) “A Nuvem de Hoje” (26.5.2011)



Desde que comecei estas colunas diárias no “Jornal da Paraíba” as pessoas passaram a me perguntar quando eu começaria a reuni-las em livro. Até parece que os textos jornalísticos existem não para serem lidos hoje no jornal, mas daqui a anos num livro! De qualquer modo, sempre tomei isso como uma demonstração de otimismo da parte dos meus leitores, e quem sou eu para questionar leitores, principalmente quando eles dizem que gostaram?

Fiz alguns projetos de recolha de textos, e se bem me lembro o primeiro deles, que nunca virou livro, intitulava-se 243 e reunia os 243 textos publicados em 2003, o ano em que começou minha participação no jornal. Não havia seleção – eram todos os artigos daquele ano, por ordem de publicação, encerrando-se com o do dia 31 de dezembro. Razões variadas impediram que essa possível obra-prima viesse à luz. Daí minha iniciativa em chamá-la de possível obra-prima. Uma vez que dorme para sempre no Limbo dos Obscuros, nem o mais pessimista leitor poderá questionar meu julgamento.

Toda esta lenga-lenga é para avisar que agora, sim, saiu a primeira recolha destes artigos em forma de livro, em forma de algo não cai que se posto de pé sobre uma mesa, algo que o vento só leva se estiver levando também as mesas e cadeiras em volta. Devo esta publicação a Cidoval Sousa, diretor da Editora da Universidade Estadual da Paraíba, que me fez a proposta e acatou minha sugestão de que, ao invés de uma edição gigantesca, com centenas de artigos, fosse um livro simples, pequeno, barato, indo direto ao ponto. Um livro que pudesse ser comprado por (olha a redundância!) um estudante liso.

O livro chama-se A Nuvem de Hoje, já teve lançamentos em Boqueirão e Campina Grande, e está sendo lançado em João Pessoa hoje à noite, na livraria do Zarinha Centro de Cultura, à Avenida Nego, 140, Tambaú. O título alude ao fato de que os artigos de jornal são como nuvens, visíveis aos olhos de todo, mas que vão embora depressa. Cada dia o colunista tem a obrigação de produzir uma nuvem para ser vista através da janela do jornal.

Como sabem muitos leitores, todo esses material (mais de 2.500 artigos até agora) está acessível em meu blog Mundo Fantasmo, onde há inclusive a possibilidade de fazer buscas por assunto (com palavras-chave como “Treze”, “campeão”, etc.). O livro, contudo, tem lá as suas conveniências, entre elas a portabilidade, a não-dependência de energia elétrica, etc. Posso aduzir mais uma: a seleção de artigos para um livro cria uma justaposição única de textos, principalmente quando a base de dados é ampla e variada. A Nuvem de Hoje dá maior relevância (por ser um livro pensado para o estudante paraibano) a assuntos que envolvem Campina Grande, a Paraíba, o Nordeste, embora não se limite a isto. Pode se tornar (e aí depende do uso que dele for feito) um útil livro paradidático para discutir os assuntos da nossa terra. Se isto acontecer, considero-me pago.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

2565) A escola na retaguarda (25..5.2011)



A indústria cultural ultrapassou a escola, nas últimas décadas, como instrumento formatador das mentes de crianças e adolescentes. Existe um cabo-de-guerra permanente entre pais e filhos com relação ao tempo de estudo e tempo de lazer. A garotada passa cinco horas na escola; quando volta, quer jogar videogame ou ver televisão. Os pais insistem para que eles vão fazer os deveres, vão estudar, e os guris esperneiam: “Pô, passei a manhã inteira na escola, chego em casa vou ter que estudar de novo?!”. Assim que conseguem, correm para a TV ou o PlayStation e entram numa frenética atividade mental. Se pudéssemos botar em nossos filhos um capacete de eletroencefalograma-em-tempo-real, veríamos que nas duas ou três horas em que passam jogando “Fallout” produzem a mesma quantidade de energia mental dispendida em 150 horas estudando matemática.

Eliminar os aspectos negativos da indústria cultural é uma missão impossível, pois seria preciso bloquear sua sequiosidade vampírica pelo lucro, ou seja, seria preciso negar sua própria natureza, sua própria razão de ser. O símbolo da indústria cultural poderia ser o Fabricante de Jujubas. Ele sabe que a jujuba não alimenta coisa nenhuma, não traz nenhum bem ao organismo, em grandes quantidades pode até fazer mal; mas jujuba é o que ele sabe fabricar... Sendo assim, pau na máquina e jujuba no mundo. Quando alguém o questiona, ele diz: “Mas o povo gosta!” A indústria cultural é uma gruta-de-ali-babá com milhões de jujubas alimentares, televisivas, recreativas, tóxicas, o escambau. Cada um fabrica uma jujuba diferente e nega ser responsável por qualquer problema; se alguma jujuba está fazendo mal, é a do vizinho, não a dele.

Tanto a escola tradicional quanto a indústria cultural têm aspectos positivos e negativos. O difícil é juntar os aspectos positivos dos dois e eliminar os negativos. Existe um pensamento generalizado de que a escola, do jeito que é, segura cada vez menos a atenção e o interesse da meninada. O lazer gratuito (eletrônico) é cada vez mais abundante. As aulas são chatas (giz... quadro-negro...). As matérias são consideradas incompreensíveis ou irrelevantes. Os professores dão as mesmas aulas, ano após ano, com estoicismo, com resignação, em busca da sensação (que nem sempre lhes chega) de que cumpriram com o seu dever. Ganham uma merreca; se perderem o vislumbre do idealismo, de que estão formando os jovens do futuro, o que lhes resta? É difícil eliminar os aspectos negativos da escola tradicional porque eles se referem principalmente a pilares estruturais como conteúdos, legislação, metodologia, composição curricular, reorganização do tempo e do espaço físico, etc., e mexer nisso corre o risco de derrubar o edifício inteiro.

Como dizia Bob Dylan: “É um mundo engraçado, este que está surgindo; parece doente e faminto, parece cansado e andrajoso. Dá a impressão de que está morrendo, mas mal acabou de nascer”. Vai ver que é isso mesmo.

terça-feira, 24 de maio de 2011

2564) Bob Dylan, 70 anos (24.5.2011)




Quem não está cuidando de nascer é porque está ocupado em morrer. (It’s All Right, Ma, 1965). 

Todos os meus amigos leais, companheiros queridos, todos me aprovam e compartilham minhas leis. Eu pratico uma fé abandonada há muito tempo, e não existem altares nesta estrada longa e solitária. (Ain’t Talking, 2006). 

Você vive tentando me mudar desde que a gente se conheceu; se não aguenta os meus defeitos, me esqueça. Me aceite como eu sou, ou me deixe ir embora. (Take Me As I Am, 1970). 

Você está parado junto às águas e arremessa o seu pão, enquanto reluzem os olhos do ídolo com cabeça de ferro. Navios distantes singram por entre a névoa. Você nasceu agarrando uma serpente em cada punho, por entre o sopro de um furacão. (Jokerman, 1983). 

Meu amor é como um corvo, pousado em minha janela, com uma asa partida. (Love Minus Zero: No Limit, 1965).

Vocês criaram o pior dos medos que se pode produzir: o medo de trazer crianças para este mundo. Vocês ameaçam minha criança que ainda nasceu e não tem nome, e não são dignos do sangue que corre em suas veias. (Masters of War, 1963). 

Eu sei por que motivo você fala de mim pelas costas: eu já andei no meio dessa turma com quem você anda agora. (Positively 4th Street, 1965) 

Você pode ser embaixador inglês ou francês, pode ser jogador, dançarino, campeão mundial dos pesos-pesados, pode ser uma socialite coberta de pérolas: mas você tem que servir alguém. Pode ser Deus ou pode ser o Diabo, mas você tem que servir alguém. (Gotta Serve Somebody, 1979). 

Todo dia sua lembrança fica esmaecida, e não me assombra mais como antes. Vou caminhando pelo meio do nada, tentando chegar no Céu antes que eles fechem a porta. (Trying To Get To Heaven, 1997). 

De repente eu me virei e ela estava ali, com braceletes nos pulsos e flores no cabelo. Veio devagar, e tirou minha coroa de espinhos, e disse: “Venha, eu lhe darei abrigo na tempestade”. (Shelter From The Storm, 1974).

Os reinos da Experiência apodrecem nos ventos preciosos, enquanto os miseráveis trocam o que possuem, cada um invejando o que o outro conseguiu. Enquanto isto, o Príncipe e a Princesa discutem o que é real e o que não é; e isto não tem importância dentro dos Portões do Éden. (Gates of Eden, 1965). 

A água está subindo, um palmo acima da minha cabeça. “Não estenda a mão pra mim,” disse ela, “não vê que eu também estou me afogando?”. E a água sobe por todo lado. (High Water – For Charlie Patton, 2001). 

Confie em você mesmo, e não se decepcionará quando for enganado. Confie em você mesmo, e não procure respostas onde não há. Se está procurando alguém em quem confiar, confie em você mesmo. (Trust Yourself, 1985). 

O mundo está adormecido enquanto eu olho para eles e choro. Há tão poucas coisas que valem mesmo a pena. E embora eu peça tão pouco, tão poucas coisas materiais para tocar, eu peço: Senhor, protege os meus filhos. (Lord Protect My Child, 1983).




domingo, 22 de maio de 2011

2563) Os Gafanhotos do Forró (22.5.2011)



(The Locusts, de Mary Boxley Bullington)

Eles não gostam de forró, não gostam de música. A única música que lhes faz bem aos ouvidos é o tilintar de uma caixa registradora. Entraram no ramo musical em busca de uma massa consumidora fácil de mobilizar, com intensa divulgação boca-a-boca (gratuita, portanto), e a simpatia imediata de todos os que sobrevivem da própria capacidade de mobilizar multidões: políticos, agências de publicidade, etc. Música feita para 500 pessoas não lhes interessa. É um investimento desproporcional de tempo, para faturar pouco dinheiro. Só lhes interessa lidar com públicos de 5 mil para cima.

Os Gafanhotos do Forró querem colocar no palco algo que tenha resposta imediata. O povo gosta de ver mulher pelada? Vamos colocar mulheres nos mais diferentes graus de peladice, uma vez que nuas mesmo não pode ser. Saia curta, malha cor da pele, calcinha de fora, calcinha jogada para a platéia. O povo gosta de pornografia? Vamos fazer letras chamando palavrões, falando de sexo o tempo inteiro. O povo gosta de ridicularizar o vizinho? Beleza, vamos fazer músicas ofendendo todo tipo de pessoa, assim qualquer ouvinte escolhe a música que dá certo com a pessoa que ele quer ridicularizar (e o outro faz o mesmo com ele, claro).

O povo gosta de dançar. Mas como dançar forró não é para qualquer um, usa-se aquele ritmo que é uma diluição de elementos do próprio forró, da lambada, do carimbó, da salsa. Adaptam-se, da gafieira e de outras danças de salão, passos simples que qualquer dançarina principiante consegue reproduzir no palco com alguns dias de treino, dando às moças da multidão lá embaixo a sensação de que elas também conseguem reproduzir. Na verdade, nem precisa que as mulheres da platéia dancem tão bem quanto as do palco: basta que estejam de saia bem curtinha e calcinha de fora. O que é mais fácil de conseguir do que saber dançar.

Os Gafanhotos do Forró abordam candidatos a prefeito em 5 mil cidades do interior. Comprometem-se a fazer “x” shows de graça na campanha do candidato, com a condição de que, se eleito, ele contratará “x” shows dos Gafanhotos do Forró durante todos os anos de sua gestão. Além do mais, o pagamento do cachê dos Gafanhotos é sempre em dinheiro vivo, de modo que parte dele pode ficar na mão de quem faz o pagamento, e uma mão lava a outra.

Os Gafanhotos do Forró combatem, a ferro e fogo, o forró que tocava nas festas juninas de alguns anos atrás, o forró de Luiz Gonzaga, Marinês, Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino, etc. Não porque tenham medo de sua concorrência. Combatem o forró porque todo impostor que rouba os documentos, a aparência e a identidade de uma pessoa real só descansará quando essa pessoa estiver morta, e não possa ser vista em lugar nenhum. Enquanto o forró existir, estiver vivo e for tocado, os Gafanhotos do Forró não poderão dormir tranquilos uma só noite, não poderão gastar tranquilos um só centavo dos seus milhões.