sexta-feira, 6 de maio de 2022

4820) "Deus ex Machina" (6.5.2022)




(foto de Bertolt Brecht)

Em algumas peças de teatro da Antiguidade, principalmente entre os gregos, acontecia às vezes de o texto se encaminhar para o final sem poder dar uma resolução satisfatória aos problemas dos protagonistas.  Os deuses do Olimpo ficavam impacientes com os desmandos praticados pelos seres humanos, e se viam obrigados a interferir nas suas ações, para evitar que maiores injustiças fossem cometidas. 
 
Na última cena, então, descia do alto um Deus ou Semideus que interferia na história de diferentes maneiras: salvando a vida do protagonista, condenando os vilões, e assim por diante. 
 
Esses personagens eram descidos ao palco através de um sistema de andaimes ou plataformas que pareciam descer do céu, sendo erguidas e baixadas através de roldanas, daí o termo original, deus ex machina, que significa aproximadamente “deuses surgidos através de meios artificiais”. 
 
O recurso do “deus ex machina” acabou se impondo como um dos clichês mais mutantes e mais recorrentes na história da Arte da Narrativa – que inclui teatro, cinema, literatura, etc. 
 
No Cristianismo, as narrativas de cunho religioso, desde as mais refinadas até as mais ingênuas, recorrem insistentemente a diversos tipos de milagres  -- ou seja, intervenção direta da divindade – para salvar seus personagens da morte, da doença, da ruína e de incontáveis outros desastres pessoais.  A salvação está geralmente condicionada à conversão ou ao arrependimento.
 
Cada gênero usa esse recurso para seus próprios fins.  Os apreciadores dos filmes de faroeste lembram as centenas de vezes em que a cavalaria do exército norte-americano surgia a galope, fazendo soar seus clarins, bem na hora em que os índios se preparavam para fazer o ataque final aos colonos encurralados. 
 
O “deus ex machina” foi aos poucos virando quase um sinônimo de final feliz, porque esta intervenção brusca no clímax da narrativa surgia invariavelmente para anular perigos e salvar os personagens com quem a platéia estaria se identificando.
 
No caso do romance policial, o “deus ex machina” geralmente não ocorre para salvar vidas, mas para dar ao detetive ou à polícia a pista providencial que lhe indicará quem é o assassino.  É uma testemunha inesperada, que até então não aparecera na trama, ou uma conversa ouvida por acaso pelo detetive, ao passar embaixo de uma janela... Mesmo grandes autores do gênero, como Agatha Christie e Ross MacDonald, não tinham muito pudor de usar artifícios assim de vez em quando.  Filmes de ficção científica que envolvem monstros ou cientistas loucos numa ilha remota geralmente acabam com uma providencial erupção vulcânica que elimina o perigo e salva a Humanidade.
 
Por motivos óbvios, ocorre o mesmo na nossa telenovela, que em geral é escrita meio às pressas, forçada a acompanhar o ritmo da gravação dos capítulos e as flutuações do gosto do público aferido pelo Ibope.  Janete Clair tem um exemplo famoso, em que pegou uma história tão intrincada que a única solução possível foi produzir um terremoto, matar quase todos os personagens e recomeçar a história noutros termos. 
 
Outra novela do horário nobre, na década de 1980, apresentou um assassinato misterioso que, nas últimas semanas, prendeu a atenção do público.  No último capítulo o Brasil inteiro sentou-se diante da televisão para ver a polícia carioca examinar de novo a cena do crime e descobrir que o assassino tinha perdido ali sua carteira de identidade. 
 
O “deus ex machina” é perigoso por poucas e boas razões.  A primeira delas é que acaba sendo mesmo uma solução artificial, ou seja, que não brota do jogo de circunstâncias que constitui a narrativa. É um elemento estranho, imprevisível pelo leitor, e que está ali apenas para resolver um problema que o autor colocou para si próprio. 
 
Torna-se semelhante ao que no futebol a gente chama de “vitória no tapetão”, quando um time perde o jogo mas consegue descobrir ou inventar um quiproquó jurídico qualquer que obriga as autoridades a proclamá-lo vencedor. Não é uma vitória obtida dentro do jogo. É algo que desceu artificialmente “do céu”.
 
Uma outra razão é que, mesmo quando há um mínimo de verossimilhança (como é o caso da cavalaria no faroeste), essa solução é rapidamente incorporada por dezenas de roteiristas atarefados ou preguiçosos que têm em mãos um problema narrativo e precisam de uma solução convincente, simples e que encerre o filme de maneira triunfal.
 
O dramaturgo Bertolt Brecht usou o recurso de maneira satírica em sua peça A Alma Boa de Setsuan: nas cenas finais, um grupo de deuses desce literalmente sobre o palco, como no teatro grego, mas em vez de interferir na solução do dilema da protagonista o grupo comenta o quanto é difícil encontrar justiça num mundo injusto, e fala diretamente com os espectadores, dizendo que cabe a eles a decisão final.  Brecht vira o clichê pelo avesso e lhe dá uma direção inesperada. 
 
Ou seja: não há clichê que não possa ser utilizado se o autor conta com: 1) o fato de que a platéia conhece o clichê e consegue farejá-lo quando ele se aproxima; 2) a possibilidade de virar o clichê pelo avesso, usando-o como isca, para dar à platéia algo que ela não esperava. Usar o clichê para criar uma “zona de conforto” fictícia, e em seguida puxar-o-tapete de baixo dos pés do público.
 
 
 
(Uma versão ligeiramente diversa deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, Editora Segmento, São Paulo, # 57, julho de 2010)
 







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