Sigmund Freud elegeu, como um dos elementos mais
propensos a nos transmitir a impressão do Estranho, do sobrenatural, do Unheimlich, a reprodução de figuras
humanas sem vida – bonecos, estátuas, etc.
Quanto mais parecido com um ser humano, mais inquietante torna-se aquela
imagem. Recuamos instintivamente, porque percebemos que tem algo estranho ali. E tem. Não é uma pessoa. Não tem vida.
As reflexões de Freud sobre o Unheimlich (“the Uncanny”) mostram uma zona limítrofe entre o ser e
o não-ser. Há atualmente uma expressão muito usada hoje, no tempo das recriações
digitais: “The Uncanny Valley”, O Vale do Estranho. É esse vacilo da razão em
que vendo uma imagem somos incapazes de saber se aquilo é ou não uma pessoa.
Sentimos essa estranheza que é um misto de susto, medo e repulsa.
Assunto importante, numa época de deep fake, falsificações digitais capazes de pegar (como já vi na
web) uma cena de Onde os Fracos Não Têm
Vez e substituir a imagem de Javier Bardem pela de Arnold Schwarzenegger,
dizendo as mesmas frases, lançando os mesmos olhares, movendo do mesmo modo
cada músculo do rosto.
Aqui: https://www.youtube.com/watch?v=CO5ydSJzxLk
Sem falar nas imagens digitais criadas do nada, mas tão
aparentemente reais quanto uma pessoa de verdade. Como Rei Toei, a
cyber-cantora de Idoru (1996) de
William Gibson, tão linda que um cantor de verdade se apaixona e quer casar com
ela. Tão perfeita que a projeção 3-D de sua imagem num palco ou num restaurante
requer “um iceberg, não, uma Antártida
de informação binária”, diz alguém.
É o mesmo Gibson que já nos anos 1990 nos imaginava vendo
na TV de casa uma versão de Casablanca
com nossa imagem e nossa voz substituindo Humphrey Bogart.
As imagens de cera têm um papel importante nessa
história, pela mitologia que criaram em torno de si. A partir do século 17, essa
arte foi capaz de reproduzir com fidelidade espantosa as feições de uma pessoa.
E de absorver toda a mística uncanny da
ausência-presente.
Marina Warner, em seu livro Phantasmagoria (Oxford University Press, 2006) analisa as reproduções do corpo e da alma humana em dez capítulos (“Wax”, “Air”, “Clouds”, “Light”, “Shadow”, “Mirror”, “Ghost”, “Ether”, “Ectoplasm”, “Film”).
No primeiro destes, ela passa um pente-fino na história
das imagens de cera. Imagens religiosas adoradas em catedrais e santuários. Reproduções
anatômicas para o estudo da medicina. Museus de figuras históricas, como o de
Madame Tussaud. “Carnivals” de
barracas ambulantes com mostruários de vidro exibindo reproduções em cera de
doenças, deformidades, males venéreos, raridades teratológicas que o mundo
inteiro sempre pagou para ver.
A cera, segundo ela, tem a propriedade (em comum com o
alabastro) de absorver luz, em vez de defleti-la, e assim parece emitir luminosidade
de dentro para fora. Depois que se resfria, tal como o vidro, a cera não pode
mais ser moldada, apenas quebrada. Sua
extrema maleabilidade quando ainda quente permite fazer moldes perfeitos por
contato – e ela conta histórias arrepiantes de Madame Tussaud e seus
assistentes, nos necrotérios da Revolução Francesa, fazendo moldes dos
aristocratas decapitados. Por seu envolvimento com a realeza, a Madame acabou
se transferindo para Londres em 1802, onde estabeleceu a sede do seu museu em
1835.
Marina Warner lembra que essa febre por simulacros de cera coincidiu com o auge da popularidade do romance Gótico, e de seus descendentes como o Frankenstein (1818) de Mary Shelley. O Museu Tussaud, em Londres, tinha uma secção chamada “A Câmara dos Horrores”, com reconstituição de crimes e criminosos célebres. O terror vinha se somar à sensação do “uncanny valley”. E essa sensação é permeada pela uma fascinação erótica.
Diz Marina Warner que o século 18 teve “uma nebulosa
convergência entre ciência e libertinagem”: o estudo de minúcias anatômicas não
estava destituído de uma carga de fetichismo e de exploração pornográfica. A
imagem mais antiga, hoje, do museu é a chamada “Sleeping Beauty”, a Bela
Adormecida: uma mulher jovem que dorme num canapé.
(Museu Tussaud, Londres: Sleeping Beauty)
Digressão: há um episódio divertido envolvendo Jards Macalé, que quando morou em Londres nos anos 1970, junto com os tropicalistas exilados, tomou um ácido lisérgico e foi visitar o Museu Tussaud, tendo, diz ele, se apaixonado imediatamente pela Branca de Neve, e sendo retirado do museu aos prantos. Ele conta essa história no documentário de Geneton Moraes Neto A labareda que lambeu tudo (2011). Embora no relato ele fale em “Branca da Neve”, tudo indica que se trata da “Bela Adormecida”, inclusive pelo detalhe, lembrado por ele, de que um delicado mecanismo de relojoaria faz o peito da estátua deitada se expandir e se abaixar ritmicamente, dando a impressão de que respira (Marina Warner, pág. 47).
O filme, aqui. A fala de Macalé está em 1:18:00.
https://www.youtube.com/watch?v=WetMubGVcAo
Ao que se diz, a modelo para essa estátua teria sido a
famosa Madame Du Barry (1743-1793), amante de Luís XV, guilhotinada na
Revolução Francesa.
Aqui entra a minha memória afetiva pessoal. O que sei eu
de Madame Du Barry, a beldade capaz de apaixonar um rei em vida, e um poeta
brasileiro em simples efígie?
(Mme. Du Barry)
O bolero “Escultura”, de Nelson Gonçalves e Adelino
Moreira, cantado por Nelson no filme O
Camelô da Rua Larga (1958), de Eurides Ramos, conta a história de um homem
que precisava criar para si mesmo a mulher ideal e recorre a detalhes de
mulheres famosas (tal como o Dr. Frankenstein o fez com partes do corpo de
vários cadáveres) para inventá-la. A certa altura, a letra diz:
Em Gioconda fui buscar o sorriso e o olhar;
em Du Barry o glamour.
E para maior beleza dei-lhe o toque de nobreza
de Madame Pompadour.
Nelson Gonçalves, “Escultura”:
https://www.youtube.com/watch?v=kXPm32kA-zI
A letra da canção é um raio-X curioso do nosso bolero,
canção masculina em sua essência, o gênero mais revelador do que os homens
brasileiros medianos pensavam (e ainda pensam) sobre a mulher, o amor e o sexo.
Entre as mulheres convocadas para contribuir com a “escultura” ideal, estão
Dulcinéia, Frinéia, a Virgem Maria, Gioconda, Du Barry, Mme. Pompadour.
E assim de retalho em retalho terminei o meu trabalho
o meu sonho de escultor;
e quando cheguei ao fim tinha diante de mim
você, só você, meu amor...
Das mulheres citadas temos três cortesãs famosas
(Frinéia, Du Barry, Pompadour), duas figuras mais ou menos neutras (Dulcinéia,
a amada platônica de Dom Quixote; e a Mona Lisa, cuja verdadeira identidade se
debate até hoje). E Nossa Senhora, coitada, tendo que equilibrar sozinha os
pratos dessa balança lúbrica.
O homem vê a mulher como uma boneca de cera, uma
escultura, uma figura dúctil, maleável, que ele pode moldar a seu gosto, vestir
e desvestir como lhe apraz, fazê-la representar papéis. Como faz o personagem
de Scotty em Um Corpo Que Cai (filme
de Hitchcock, também de 1958): ele tem um ideal de mulher na cabeça e quer que
a mulher real à sua frente encarne essa fantasia.
(Um Corpo que Cai)
Madame Du Barry, bela e adormecida para sempre, está no
Museu como a prostituta adolescente próxima e intangível do velho personagem de
Garcia Márquez em Memória de Minhas Putas
Tristes (2004), por sua vez inspirado nas cortesãs-meninas de Yasunari
Kawabata em A Casa das Belas Adormecidas
(1961).
Elas estão numa espécie de Uncanny Valley moral / afetivo / sexual / psicológico onde o homem
oscila: essa criatura à sua frente é uma boneca ou uma mulher?
Eu passei minha casta infância e fescenina adolescência
ouvindo canções deste tipo:
“Boneca de Pano”, de Assis
Valente (com 4 Ases e 1 Coringa):
“Em vez de boneca de louça,
hoje é boneca de pano, em um sombrio cabaré...”
https://www.youtube.com/watch?v=5Cp-LCGbiTs
“Boneca Cobiçada”, de Bolinha
e Biá (com Palmeira e Biá)
“Boneca cobiçada das noites de
sereno, teu corpo não tem dono, teus lábios têm veneno...”
https://www.youtube.com/watch?v=NevYSMS3EVw
“Boneca”, de Antonio Marcos,
Celso Clóvis e Waldemar Soutello (com Ângela Maria)
“Boneca / ele falou quando
passei / com um jeitinho / que eu gostei...”
https://www.youtube.com/watch?v=zgQvVL1gDg8
“Meu Vício é Você” de Adelino
Moreira (com Nelson Gonçalves)
“Boneca de trapo, pedaço da
vida, que vive perdida no mundo a rolar; farrapo de gente que, inconsciente,
peca só por prazer, vive para pecar...”
https://www.youtube.com/watch?v=9vMBbcS4dEw&t=96s
É curioso perceber que pelo contexto de cada canção a
boneca é sempre um sinônimo da prostituta, e não da moça de família. Boneca é
um termo com que o homem busca a intimidade. A mulher que ele cobiça não se
distingue muito, nesta última canção, da “bonequinha de luxo” de Truman Capote
e Blake Edwards, no filme com Audrey Hepburn:
Boneca noturna que gosta da lua,
que é fã das estrelas, e adora o luar;
que sai pela noite e amanhece na rua
e há muito não sabe o que é luz solar.
(Museu Tussaud, Shangai: Audrey Hepburn)
É essa boneca dúctil, dócil, passiva, que ele procura,
num sentimento não muito distante deste expresso por Rainer Maria Rilke, citado
por Marina Warner (p. 55), a respeito da função das bonecas nas brincadeiras da
infância:
Eu sei, eu sei que era necessário para nós possuir coisa desse tipo,
que aquiescem em tudo. As mais simples das relações amorosas eram algo além da
nossa compreensão; não seríamos capazes de viver e de lidar com uma pessoa que fosse
alguém; na melhor das hipóteses, poderíamos apenas adentrar essa pessoa e nos
perder lá dentro. Com a boneca, éramos forçados a assumir uma posição
assertiva, porque, se nos submetêssemos a ela, então não haveria mais ninguém
ali... ela era tão abissalmente desprovida de fantasia que nossa imaginação
tinha que se tornar inesgotável, para poder lidar com ela.
(R. M. Rilke, “Some Reflections on Dolls –
Occasioned by the Wax Dolls of Lotte Pritzel”, trad. BT)
(Museu Tussaud, Madrid: Marilyn Monroe)
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