sábado, 5 de maio de 2018

4344) O Estrangeiro além de Camus (5.5.2018)




(Serdar Orcin, numa cena do filme)

Um personagem curioso de nossa época é o que eu chamaria O Homem Que Não Interfere. Um indivíduo cuja especialidade é deixar que tudo aconteça em sua volta enquanto ele se limita a olhar sem interesse, ou a nem dar atenção. Ele não age, apenas reage, o mínimo possível. Deixa-se arrastar para situações absurdas por essa incapacidade de se envolver em algo por vontade própria.

O bordão desse tipo de gente é a frase “Eu preferiria não fazer isso”, do escriturário Bartleby, da noveleta homônima de Herman Melville (1853): o empregado que recusa todas as tarefas.

Ou a frase clássica do faquir de Franz Kafka em “Um Artista da Fome” (1922), que diz: “A verdade é que nunca encontrei uma comida que me agradasse”.

Existe algo dessa indiferença em Meursault, o famoso protagonista de O Estrangeiro (1942) de Albert Camus, o cara que fica de Maria-Vai-Com-As-Outras numa série de situações, que começam com a morte da mãe numa casa de repouso.

Ele (parente mais próximo dela) colabora nas providências fúnebres, comparece ao velório, mas todo mundo desconfia do modo estranho como ele se porta, sem chorar, sem fazer drama, sem parecer especialmente triste.

E isto não lhe será perdoado mais à frente. Ele vai matar um invidíduo, sem razão; mas ele próprio dirá que foi a julgamento não por isso, mas por não ter chorado no velório da mãe. Por não ter se comportado “como todo mundo se comporta”.

O livro de Camus recebeu em 2015 uma curiosa versão ambientada na Turquia, com o filme Destino (Yazgi), de Zeki Demirkubuz.

Aqui:

O filme poderia até ser descrito como um Estrangeiro num universo paralelo, onde os personagens são equivalentes, mas os fatos acontecem de outra forma. E o filme de Dmirkubuz é de uma secura e um timing muito corajosos.

Musa é um rapaz que trabalha num escritório comercial. Nas primeiras cenas do filme ele vê televisão em silêncio com a mãe idosa, à noite. Ela vai se deitar, queixando-se de dor de cabeça. Ele não diz nada. A câmera acompanha de longe a mãe seguindo pelo corredor, entrando no quarto lá no fim.

Na manhã seguinte, Musa levanta para ir trabalhar e vê que a mãe ainda não acordou. Olha pela fresta da porta do quarto. Ela está deitada.

Ele prepara mal e porcamente o próprio café, e vai trabalhar. Ao comentar com os amigos, eles o aconselham a ver se a mãe está bem. Ele volta para casa. Vai à porta do quarto. Acaba entrando, tocando no ombro dela...

O diretor leva estes cinco ou dez minutos terríveis para reproduzir à sua maneira, que é ótima, o início do romance:

Hoje, mamãe morreu. Ou ontem talvez; não sei. Recebi um telegrama da casa de repouso.

No filme turco, a mãe mora com o filho, e o diretor encontra uma maneira dolorosa de reproduzir esse “não sei”.

Mais adiante, como no livro, dois árabes juram vingança contra um amigo do protagonista, que começa a andar armado. Isso desencadeará o famoso crime na praia, quando Meursault, que está de posse da arma naquele momento, mata um deles “por causa do calor”.

No filme turco, os irmãos árabes aparecem, Musa e o amigo atiram neles, mas eles fogem sem maiores consequências. A história de Musa vai envolvê-lo num crime, até mais bárbaro do que o do livro de Camus, mas ele, sabendo que é inocente, recusa-se a se defender. Acaba sendo solto por fatores alheios a sua vontade, e insiste em repetir para o oficial que o liberta: para ele, tanto fazia estar preso ou solto.

Camus escreveu seu livro como uma resposta bem pessoal aos romances policiais noir que lia na época; O Estrangeiro é de 1942. Nos romances do submundo norte-americano o ambiente era cheio de pensões baratas, homens rudes, desempregados, envolvendo-se com mulheres bonitas, tacanhas e ambiciosas. Uma depressão econômica, uma guerra mundial, e milhões de destinos individuais sendo soprados como grãos de farinha, sem poderem fazer nada.

Camus importou essa sensação para uma França arrasada pela guerra, envergonhada pelo que lhe sucedeu na guerra. Mas isso era apenas o mundo que o cercava. Meursault vivia nesse mundo, mas sua recusa a agir e seu comportamento às vezes de zumbi, não são produtos apenas da época. Seu Doppelganger Musa, em Istambul, reproduz essa atitude mergulhado na rotina burocrática sem sentido de Kafka ou de Bartleby.

A narrativa de Demirkubuz se baseia em longos planos silenciosos, numa inexpressividade proposital e quase sonambúlica do ator que faz Musa (Serdar Orcin) e num uso preciso e econômico da câmera.

Há uma sequência perto do final quando Musa é libertado da prisão e o oficial discute o caso com ele, falando pelos cotovelos. Quando ele alude ao crime, a câmera mostra Musa de frente e começa a girar para o lado numa panorâmica lenta, e vemos que no lado direito do cenário foi reconstituída a sala onde aconteceu o crime bárbaro, e onde tínhamos visto Musa antes, conversando com as vítimas. O movimento da câmera continua descrevendo esse semicírculo, volta a mostrar a parede por trás da mesa e o oficial, que continua falando.

O espaço e o tempo são comprimidos de maneira elegante para um único movimento que visualiza o passado e o presente num mesmo espaço físico.

O filme turco, em vez de “adaptar” o romance francês, prefere matá-lo e reencarná-lo em outro país, outra década, outras pessoas. Isso dá mais liberdade ao diretor, que faz da narrativa original o que bem entende sem que ninguém possa cobrar-lhe uma fidelidade da qual ele já abre mão a priori.

Há outras adaptações do livro de Camus para o cinema, mas esta é de uma simetria de espírito notável. O existencialismo punha ênfase no acaso, e no absurdo resultante de suas interferências em nossa vida. Meursault deixa-se executar com indiferença, Musa deixa-se salvar com a mesma passividade. A junção dos dois destinos é mais arrepiante do que a constatação de um só deles.











Um comentário:

Unknown disse...

Tem um livro contraponto chamado O Caso Meursault de Kamel Daoud.