Ursula K. Le Guin não é apenas uma das grandes autoras de ficção científica e da fantasia em nosso tempo. Sua obra inclui também um subconjunto de histórias mainstream a respeito de um reino imaginário na Europa Central, Orsinia.
Li agora os seus Orsinian Tales (1976), onze histórias
ambientadas, entre os séculos 12 e 20, nesse país fictício.
Orsinia é o que no jargão
da crítica se chama de “uma Ruritânia”, aludindo ao país imaginário onde
transcorre o clássico de aventuras O
Prisioneiro de Zenda (1894) de Anthony Hope.
São aqueles países de
certa ascendência eslava, cheios de palácios e igrejas, arquiduques, uma
pequena nobreza com poucas posses e muito passado, um certo verniz
aristocrático e cortesão. Uma visualização magnífica desse ambiente pôde ser
vista no filme O Grande Hotel Budapeste
(2014) de Wes Anderson.
O país de Ursula (daí o
nome “Orsinia”) é menos rico e exuberante que as ruritânias alheias. Os contos
variam de época para época de modo que a Orsinia de 1938 (“And Die Musik”) tem
um senso de urgência, de febre, de cataclismo pendente, enquanto a de 1962 (“A
week in the country”) caminha para um clima asfixiante de Guerra Fria, com
subversivos e agentes da polícia política.
A nobreza galante e
arrebatada de 1640 está em “The Lady of Moge”, a história do amor irrealizado
entre um casal de jovens de famílias nobres ao longo das décadas. Já em 1910, a
ação sai da capital Krasnoy e vai para a região árida das pedreiras, onde os
operários ficam cegos ou com os pulmões pedrados pela poeira (“Brothers and
Sisters”).
E por aí vai. Le Guin
afirma que esta série nasceu da contradição entre sua admiração pela Europa e o
fato de nunca ter ido lá, o que a impedia de escrever à vontade. Decidiu,
portanto, imaginar um país da Europa só seu, para que ninguém pudesse vir
cobrar-lhe precisão histórica.
Um país sem importância, na Europa
Central. Um daqueles que tinham sido arrasados por Hitler, e que Stálin estava
agora arrasando. (A invasão soviética na Tchecoslováquia, em 1947-48, tinha
sido o primeiro acontecimento mundial a despertar em mim a consciência
política.) Uma terra não muito distante da Tchecoslováquia, ou da Polônia, mas
não vamos nos preocupar muito com fronteiras. Não seria uma daquelas nações
parcialmente islamizadas, e sim algo mais ocidental... Como a Romênia, talvez,
com uma língua de influência eslava, mas descendente do latim? Arrá!...
Num livro como este,
Ursula Le Guin não parece a escritora capaz de criar dragões antiqüíssimos e
sábios, ou aparelhos transmissores de mensagens mais rápidas do que a luz. É
uma contista de estilo já maduro trabalhando num contexto europeu, de época,
enriquecido pela prosa elegante e pela finura psicológica.
Não lembra seus
contemporâneos Philip K. Dick ou Robert Sheckley. Nos contos de Orsinia, sua
prosa lembra a de Karen Blixen (“Isak Dinesen”): menos a das complexas
noveletas de Sete Contos Góticos
(1934), mas principalmente a dos contos mais curtos de Last Tales (1957); ou talvez a A. S. Byatt de Possessão (1990) e de Angels
& Insects (1992).
Sua narrativa mainstream com um pé no fantástico
prefigura também a linguagem precisa e a rica imaginação de Karen Joy Fowler (Sarah Canary, 1991; The Jane Austen Book Club, 2004) ou Elizabeth Hand (Saffron and Brimstone, 2006). Mas estas
já são leitoras de Le Guin, com um pouco de discípulas e um tanto de
sucessoras.
Digamos que este livro
estivesse assinado por um tal U. K. Le Guin de quem eu nunca tivesse ouvido
falar, mas imaginasse, meio no piloto automático, que se tratava de um Ulysses
K. Le Guin. Em que momento da leitura eu poderia imaginar que o autor era mulher?
Certamente não no primeiro conto, “The Fountains”, conto curto de um personagem
só, um homem que passa por uma epifania existencial enquanto caminha por uma
cidade.
Idem no segundo, “The
Barrow”, ambientado na Idade Média, e que se passa numa noite, na propriedade
de um pequeno senhor feudal em 1150. Há mulheres (há um parto) como pano de
fundo, mas a essência do conto é a convivência (o confronto, a disputa de
terreno) entre o Deus cristão e os deuses bebedores de sangue que um dia
mandaram ali.
A desconfiança talvez
surgisse aos poucos no decorrer das histórias seguintes, porque há pelo menos
cinco histórias que têm o casamento como tema central. São rapazes e moças que
se encontram, se cortejam, se afastam, se entendem, se desentendem, mas aos poucos
vão convergindo para o altar. (Orsinia é um antigo reino cristão, em cuja
capital avulta a Catedral de Santa Teodora, batizada em homenagem à mãe da
autora.)
Estilo masculino e estilo
feminino não tem muito a ver com “raciocínio” versus “sensibilidade”, como
tantas vezes se coloca. Homens e mulheres que escrevem compartilham igualmente
dos dois.
Talvez seja mais uma
questão dos temas e subtemas escolhidos: o autor prefere estar escrevendo sobre
o quê?
Alguma pista pode ser
encontrada no modo como um escritor (digamos um autor sob pseudônimo, num
manuscrito inédito inscrito num concurso) trata as tarefas domésticas
tradicionalmente atribuídas à mulher: varrer, lavar roupa, lavar pratos,
remendar roupas, limpar quintal, banhar crianças.
É mais fácil encontrar uma
mulher que escreva sobre tiroteios, espancamentos, batalhas galácticas ou
façanhas militares do que um homem que escreva (com certa propriedade) sobre os
temas acima.
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