quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

4306) "Com amor, Van Gogh" (18.1.2018)



Existe uma grande semelhança de resultado entre o filme Com amor, Van Gogh (“Loving Vincent”) de Dorota Kobiela e Hugh Welchman (em cartaz no Brasil) e os dois longas de animação rotoscópica feitos anos atrás por Richard Linklater (Waking Life, 2001, e O Homem Duplo, 2006). São filmes onde primeiro a câmera registra os atores falando e agindo, e depois essas imagens são “pintadas por cima”.

No caso de Loving Vincent, ao invés das técnicas costumeiras de estúdio foram usadas tela e tinta a óleo, semelhantes às que Van Gogh usava para pintar. Isto dá a este filme uma textura totalmente original.

Filmes rotoscópicos (total ou parcialmente) há muitos, mas gosto muito dos dois de Linklater porque eles evocam (principalmente o segundo) o universo de Philip K. Dick. O Homem Duplo é baseado no romance A Scanner Darkly, de Dick.

A primeira impressão produzida por Loving Vincent, um filme de “pintura animada”, como o chamou João Batista de Brito, é de um senso permanente de irrealidade. Isso já estava presente nos filmes de Linklater. Ambientes, corpos, rostos, objetos, tudo parece se comportar como na “vida real”, mas tudo é recoberto por uma ficção visual permanente, uma textura escandalosamente não-real que em momento algum nos permite entrar numa zona-de-conforto perceptiva.

Vendo um filme assim, o “distanciamento brechtiano” é inevitável: sabemos, o tempo inteiro, que é um filme, uma coisa construída a poder de borrões, manchas, pinceladas coloridas.

Isto entra em choque com o tom naturalista dos gestos, movimentos, expressões faciais, porque afinal de contas houve em algum momento um ator ou um  atriz sendo filmada. Cada cena tem como base da imagem uma infraestrutura realista de aparência e de movimentos, e sobre esta foi aplicada uma camada permanente de cores irreais e texturas impossíveis.


O resultado – em mim, pelo menos – é semelhante ao que temos nos sonhos, em que a intensa e falsa sensação de realidade (tem sonhos que parecem mais reais que o Real) é contaminada o tempo inteiro por uma certa incompletude, uma incoerência, um esgarçamento.

No sonho, a emoção parece 100% autêntica, mas isso é comprometido por um ruído constante de percepção, porque vemos as coisas com distorções, lacunas, falta de substância.

No filme de Van Gogh, isso fica ainda mais evidente em certas cenas de transição em que uma parede torna-se em alguns segundos o céu noturno, e só então percebemos o quanto o recurso técnico de fusão/superposição de imagens, geralmente para passar de uma cena a outra, já está tão assimilado pelo nosso cérebro que não percebemos o seu poder de desmobilizar nosso código de visão. E a vemos aqui como os espectadores de 100, 120 anos atrás viam as primeiras fusões de imagens fílmicas.

Loving Vincent é dessa maneira um alucinação sob controle que dura 95 minutos. É curioso e adequado que os filmes de Richard Linklater, que adotam esse processo técnico, tenham tido como inspirador Philip K. Dick. Tanto Dick quanto Van Gogh tiveram vidas alucinatórias. Drogas, loucura, imersão suicida na maginação criativa, dificuldade de sobrevivência... tudo isto os dois tinham em comum. E um descolamento contínuo do real, do banal, do feijão-com-arroz, para mergulhar num universo perceptivo só seu.

Adequado também que tanto Scanner quanto Vincent sejam histórias de investigações policiais, porque isto traz à tona o substrato existencialista de todo whodunit: O que é o real? O que foi que de fato aconteceu? O que existe de concreto por trás das versões conflitantes, da alucinação privada de cada um, o idiokosmos, como Dick gostava de chamar?

Aldous Huxley foi um dos primeiros a traçar o paralelo (em As Portas da Percepção, 1954) entre drogas, loucura e a experiência visual de certos artistas.

A exuberância lisérgica de Vincent nos dá uma idéia do mundo tão deslumbrante quanto exaustivo em que vivem os indivíduos mergulhados em estados alterados de consciência. As portas da percepção, talvez, devam ficar apenas entreabertas, somente uma rachadura deixando a luz entrar (como dizia Leonard Cohen), pois ninguém suporta uma vida inteira experimentada assim.



A percepção fraturada da realidade dá-se de maneira distinta no sonho, no uso de diferentes drogas, nas várias formas de loucura. (Tem gente que prefere dizer “transtorno mental” ou equivalente, mas eu não acho que loucura seja um termo pejorativo ou uma ofensa. É uma experiência humana como tantas outras.)

Talvez nenhum outro meio possa, como o cinema, produzir em nós essa impressão de estar vivendo algo que é real, palpável, indiscutível, e ao mesmo tempo incompleto, descontínuo, cheio de solavancos mentais.

Loving Vincent mostra essa contradição entre beleza e sofrimento. Agonia e Êxtase, título de um cinebiografia de Michelangelo, serviria também a este filme, que nos induz a ver a vida de Van Gogh como uma espécie de viagem-de-LSD permanente em seu misto de intensidade sensorial e desorientação cognitiva.

Um mundo de beleza insuportável, onde os objetos e os seres parecem perder sua historicidade e função para virar apenas uma série de manchas coloridas, de camadas pastosas que se superpõem emitindo luz e cor. E cabe a quem vive aquilo criar um sentido para tudo aquilo. Quem pode?






Um comentário:

Anônimo disse...

Lembrei de "Sonhos" de Akira Kurosawa. Tem uma cena com um rapaz numa galeria de arte olhando um quadro de Van Gogh. De repente ele aparece percorrendo as paisagens dos quadros do jeito como foram pintadas. Até que finalmente ele é mostrado nas paisagens originais, que serviram de modelo para as pinturas. A cena é uma bela representação do apreciador em sua imersão na obra.