domingo, 12 de fevereiro de 2012

2791) O santo e o culto (12.2.2012)



É uma história tão espalhada por aí que pode ser considerada um mito menor. Uma narrativa cuja estrutura básica surge em diferentes culturas, em qualquer época: a vida de um sujeito cujas façanhas o tornam famoso e respeitado, e que um belo dia morre (geralmente na guerra) ou desaparece. Em torno de sua memória cria-se um culto que acaba tomando proporções inesperadas. Outro belo dia, o Herói, que na verdade não tinha morrido, reaparece. E vê com espanto (ele volta incógnito, sem que ninguém o reconheça) que está sendo cultuado de uma maneira totalmente equivocada. O futuro celebrizou uma pessoa completamente diferente de quem ele julga ser.

A novela Roque Santeiro (Dias Gomes e Aguinaldo Silva) utilizou esta situação básica, fazendo com que Roque (José Wilker), que é na verdade um espertalhão, se divirta com o culto que se criou em torno dele, endeusado como se fosse um santo. Esta parece ser uma narrativa muito presente na memória nordestina. Em Livro dos Homens, de Ronaldo Correia de Brito, acontece algo parecido: encontra-se no rio o cadáver de um homem, bem vestido, morto a facadas. Pessoas piedosas o sepultam, começam a rezar junto à cova do morto desconhecido. Isso se torna um hábito local, e daí a alguns anos aquela sepultura recebe enormes romarias de peregrinos. Um dia, alguém chega ali e descobre que a pessoa que está sendo adorada é um homem que cometeu um crime e que foi morto por vingança.

A ficção científica deu sua contribuição a este mito com Um Cântico para Leibowitz (1960) de Walter M. Miller Jr., e com Limbo (1952) de Bernard Wolfe. Neste, um cientista, Martine, é dado como morto durante uma guerra mundial. Seus manuscritos científicos, encontrados por amigos, tornam-se a base para a reconstrução do mundo futuro, onde a ânsia pacifista leva os homens a amputar os braços e pernas e substituí-los por próteses. Acontece que Martine está vivo; ele passara 20 anos perdido entre os selvagens de uma ilha remota, e quando consegue voltar para a civilização fica aterrorizado com o mundo que encontra. Fica mais surpreso, e furioso, quando descobre que esse mundo tem seus escritos (mal interpretados) como um verdadeiro Evangelho. O resto do livro é sua tentativa para destruir esse mundo do qual é o involuntário profeta.

Limbo é o único livro de FC de Bernard Wolfe, escritor que teve uma vida aventureira, tendo sido inclusive guarda-costas de Leon Trotsky no México, e é uma interessante retomada desse antigo tema. Todo culto a um morto é um mal-entendido, e em muitos casos é também uma traição a esse morto, que, se retornasse, não se reconheceria na imagem que fazem dele.

Um comentário:

Maria Nayara disse...

Acho que pior do que morrer e ao retornar não se reconhecer na imagem q fazem dele, é presenciar ainda vivo a deturpação de sua imagem.