Tudo é possível, porque é o espírito do tempo, é o momento presente do mundo, envolto (além dos problemas permanentes, e cada vez maiores) com uma Pandemia e tentativas localizadas de quarentenas, lockdowns, etc.
Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
Quem quiser saber os detalhes da campanha, os prêmios e as formas de apoiar, dê um pulo aqui neste link:
https://www.catarse.me/crimes_impossiveis
Esta é uma nova série de antologias que estou preparando
para a Editora Bandeirola, sob a coordenação de minha editora Sandra Abrano,
que tem apoiado as minhas idéias, acreditado nas propostas, e durante a
quarentena dos últimos doze meses já reunimos um material que, se tudo correr
bem, pode nos dar uma boa série de antologias até 2022 ou 2023.
Crimes Impossíveis é a primeira delas, e tem o tema: “Mistérios de Quarto Fechado: de 1838 a 1933”, e cobre o período dos precursores e criadores do conto detetivesco, além da chamada Era de Ouro desse gênero. Nos volumes posteriores, um deverá incluir os Autores Modernos (onde entrariam alguns grandes mestres como John Dickson Carr, Ellery Queen, Agatha Christie etc.) e um volume dedicado a autores brasileiros e latino-americanos, uma pesquisa que demanda mais tempo.
Idealmente esses três volumes devem sair em 2021, 2022 e 2023. Idealmente esta primeira antologia servirá de alavanca para financiar as demais.
Eu me lembro que a primeira vez que peguei uma folha de papel e anotei as variantes do “Crime de Quarto Fechado” foi por volta de 1966, quando eu trabalhava no “Diário da Borborema” e colecionava revistas de contos policiais como Mistério Magazine de Ellery Queen, X-9, Meia Noite, Suspense... Todo mês tinha um número novo de cada uma delas, nas bancas.
O quarto fechado é um desafio à engenhosidade. Quem inventou esse tipo de história? Minha antologia coloca esse curioso problema. A versão oficial é de que o primeiro locked room mystery foi o conto fundador de Edgar Allan Poe, The Murders in the Rue Morgue, publicado há exatamente 180 anos, em abril de 1841. Outra corrente mais recente mostra a possível precedência de um conto de Sheridan LeFanu, de 1838. Os dois estão no meu livro.
O crítico acadêmico é um cientista, é aquele cara que chega na cozinha da casa da gente e diz: “Mas você vai usar esses dois peixes na moqueca? Observe que são dois peixes diferentes. Esse aqui tem escamas triangulares e este tem escamas arredondadas.” A gente agradece a informação, mas uma antologia é uma moqueca: deve ser julgada pela experiência do sabor, e deixar para outro momento a catação-de-lêndeas das minúcias estruturais.
(Antes que os nerds gastronômicos venham me explicar que peixes de escamas diferentes têm sabor diferente e não devem aparecer juntos num mesmo prato, devo explicar que em literatura uma comparação desse tipo esgota-se neste primeiro momento; toda comparação, se aprofundada, diverge cada vez mais e conduz ao absurdo.)
Quando falamos de um gênero literário – no presente caso, o conto criminal-detetivesco – existem duas atitudes possíveis a quem vai classificá-los.
O crítico, geralmente, funciona como uma Alfândega Distópica. Bota defeito em tudo, desconfia de todo mundo e só passa por ali quem atender com perfeição a todas as suas exigências. O propósito dele é definir o gênero-em-si, sem ser contaminado por nenhum elemento estranho a ele. É como um químico que peneira e filtra e destila um material até achar um elemento químico em estado puro.
O antologista, por outro lado, é uma espécie Chef de Soparia, e tem uma atitude diferente, que é a minha. Ele é um agregador. Esquece as diferenças, e aproxima coisas distantes sempre que vê nelas algum grau de semelhança. Basta que dois contos muitíssimo diferentes em tudo tenham um elemento forte em comum, para que eles possam ser incluídos na mesma antologia.
Por que? Porque o Crítico é um cientista que quer definir a essência de um fenômeno, e o Antologista é uma espécie de escritor, tudo que ele quer é compor um livro, mesmo que somente com imaginações alheias. Em vez de definir o fenômeno, ele quer apenas intensificá-lo (e quem vier depois que o defina).
Crimes Impossíveis
mostra o quanto essas classificações literárias são cansativas e às vezes
contraditórias. O conto de Edgar Poe não tem criminoso, o conto de Sheridan LeFanu
não tem detetive. Os dois, em conjunto, criaram o gênero em que esses dois
personagens arquetípicos confrontam suas inteligências e suas motivações
pessoais.
Já escrevi algures que a função de qualquer antologia é fazer cada leitor lembrar-se instantaneamente de 450 histórias que também deveriam ter sido incluídas naquela seleção. Entendo perfeitamente. Eu também sou assim, quando leio, em um dia, uma antologia que um coitado qualquer levou um ano para pesquisar e organizar.
Não importa. O que importa é o prazer da leitura, o prazer de experimentar aquele coro de vozes narrativas aparentemente dissonantes, de países diferentes, épocas diferentes, cenas literárias diferentes, glosando o mesmo mote.
O livro tem um prefácio, e apresentações individuais para cada autor. Os contos incluídos são:
1) "O Romney Roubado" (1919) -- Edgar Wallace
2) "A Adaga de Alumínio" (1909) -- R. Austin Freeman
3) "O Suicídio de Kiaros" (1897) -- L. Frank Baum
4) "O Mistério de Doomdorf" (1914) -- Melville Davisson Post
5) "A Morte na Praia" (1922) -- Maurice Leblanc
6) "O Problema da Cela 13" (1905) - Jacques Futrelle
7) "A Aventura da Faixa Malhada" (1892) -- Conan Doyle
8) "Uma Passagem na História Secreta de uma Condessa na Irlanda" (1838) -- Sheridan LeFanu
9) "Os Assassinatos da Rua Morgue" (1841) -- Edgar Allan Poe
10) "A Maldição do Livro" (1933) -- G. K. Chesterton
Na literatura brasileira dá-se freqüentemente o caso estranho de iniciarem-se os escritores com as suas melhores obras e estacionarem nelas, se delas não retrogradam. O fato passou-se com Alencar com o Guarani, com Macedo com a Moreninha, com Taunay com a Inocência, com Raul Pompéia com o Ateneu, com o Sr. Bilac com as suas primeiras Poesias, e se está acaso passando com o Sr. Graça Aranha com o seu Canaã.
Artista nervoso e nimiamente suscetível, um sensitivo, alma de impressionabilidade doentia, não soube Alencar sofrer com isenção e superioridade o malogro das suas ambições políticas, mais quando vinha acompanhado da negação dos seus talentos literários e da sua obra, em arremetidas açuladas pelos mesmos com quem o seu temperamento irritadiço, quiçá vaidade de intelectual que se não dissimulava bastante, o tinham politicamente incompatibilizado.
– Vossa Eminência respondeu minha pergunta contando-me uma história na qual meu amigo e professor é o herói. Vejo com clareza o herói da história, quase que luminoso, e num elevado plano. Mas meu mestre, meu conselheiro e meu amigo continua tão afastado quanto antes. Não parece humano aos meus olhos e, ai, não consigo dizer que não me causa temor.
– Madame, eu lhe contei uma história. Histórias têm sido contadas desde que a fala começou a existir, e sem histórias a humanidade teria perecido, como pereceria sem água. A senhora vê os personagens de uma história real com clareza, quase luminosos, num plano elevado, e ao mesmo tempo ele podem não lhe parecer bem humanos, podem até causar-lhe medo. É assim que são as coisas. Mas hoje, Madame, eu percebo uma nova arte da narração, uma nova literatura, nova categoria das belas-letras, alvorecendo sobre o mundo. Já está entre nós, sem dúvida, e tem ganho a simpatia dos leitores do nosso tempo. E essa nova arte literária irá, em benefício dos personagens individuais da história, e com o intuito de manter-se próxima deles, sem medo, essa literatura estará disposta a sacrificar a história em si.
“Os indivíduos dos novos livros, novos romances, estão tão próximos ao leitor que é como se um calor corporal nos fluísse deles; o leitor os trará para perto de si e os tornará seus companheiros, amigos, confidentes. E à medida que aumentar essa troca de empatias, a história propriamente dita irá perdendo terreno, perdendo peso, e acabará evaporando-se, como o buquê de um vinho nobre cuja garrafa tenha sido esquecida aberta.
O propósito primordial [desse novo realismo psicológico] consiste em fazer as palavras trazerem-nos seu objeto em toda a sua particularidade concreta, mesmo que isso lhes custe repetições, parênteses, verbosidade.
Tanto as inovações filosóficas quanto as literárias devem ser encaradas como manifestações paralelas de uma mudança mais ampla – aquela vasta transformação da civilização ocidental desde o Renascimento que substituiu a visão unificada do mundo da Idade Média por outra muito diferente, que nos apresenta essencialmente um conjunto em evolução, mas sem planejamento, de invidíduos particulares vivendo experiências particulares em épocas e lugares particulares.
(A Ascensão do Romance, Companhia das Letras, trad. Hildegard Feist)