terça-feira, 23 de outubro de 2018

4397) Literatura alta e baixa (23.10.2018)



“Reencontro” é um conto de Orígenes Lessa sobre dois soldados, ex-amigos de infância, que se reencontram anos depois no exército, preparando-se para a guerra (é a Revolução Constitucionalista de 1932, dos paulistas contra o governo de Getúlio). 

Os dois foram colegas de internato, onde um deles sofreu bullying constante, inclusive por parte do narrador. Agora, soldados no mesmo batalhão, tornam-se novamente amigos. E o narrador lembra suas conversas com o outro, Julinho, nos tempos de internato.

Fingi não perceber, mudei bruscamente de interesse:
– É Sherlock Holmes?
Julinho hesitou, teve um olhar de náufrago para o fascículo que trazia na mão.
– Não. É Nick Carter.
– É bom? É melhor do que Sherlock?
Os olhos de Julinho se adoçaram. Confraternizamos naquele encontro inesperado. Ele já tinha lido todos os fascículos de Sherlock, já havia lido dez ou doze de Nick Carter. Mas ia acabar com aquela besteira de livro policial. Agora ia ler somente grandes escritores, Taunay, Alencar, Machado de Assis.

Li esse conto justamente no auge da minha fase Sherlock Holmes, por volta dos 12 ou 13 anos, e esse trecho me marcou como um pequeno gesto de bullying do autor contra mim, pessoalmente. Era como se ele estivesse dizendo: “Não perca seu tempo lendo essas besteiras. Leia os grandes autores.”

Eu já tinha lido pelo menos Machado de Assis, nessa época, e com alguma teimosia considerei que não tinha nada de mais continuar a ler tanto Machado quanto Conan Doyle pelo resto da vida. E estava certo.

O próprio Orígenes Lessa cultivou a literatura popular, e não foi pouco. O conto “Reencontro” estava incluído na coletânea A Desintegração da Morte, o primeiro (e único) livro de autor brasileiro na antiga Coleção Futurâmica, das Edições de Ouro.

Lessa foi, como alguns autores da sua geração e muitos da minha, um autor dividido entre a literatura “alta” e a “baixa”. Como definir essas duas? Uma definição meio irreverente pode dizer assim: literatura alta é a que os pais e os professores nos obrigam a ler, e literatura baixa é a que a gente lê porque gosta.

Qualquer livro pode se tornar chato e insuportável se introduzido num momento não muito bom. Depende de muita coisa. Alguns autores que me impingiam no curso ginasial eu fiqei com trauma, só consegui ler de novo depois dos cinquenta anos. Por outro lado, ali eu já lia coisas que poucos dos meus colegas liam também – Sherlock Holmes, por exemplo. Gibi todo mundo lia os mesmos, mas livro era muito pouco. E nessa época eu já comprava metros lineares de livros de bolso todo mês.

Jorge Luis Borges dizia que “ninguém deve continuar a ler um livro, se o livro não lhe dá prazer”. Eu acho que Borges, se não foi o melhor escritor, possivelmente foi o maior leitor do século 20; mas essa primazia do prazer deve ser vista talvez como uma tentativa dele de suavizar o catastrófico senso do dever que assombra alguns povos. Ler pela alegria das revelações trazidas pela leitura.

A frase é verdadeira e paternalística. Porque não é só o prazer. Muitos livros são lidos por um confronto intelectual entre leitor e autor, e embora isso possa lhes ser prazeroso é um prazer exigente, que cobra um preço. Um livro pode ser um desafio, pode ser um enigma. Pode ser um estado alterado de consciência. O prazer é um efeito colateral secundário, embora bem vindo.

Durante esse meu tempo do Ginásio, minhas leituras, inclusive ficção científica, não tinham nada a ver com o que eu estudava no colégio. Eram dois mundos à parte. Eu gostava muito de ler, e no colégio tinha uma curiosidade natural por muitos assuntos, como história, língua portuguesa. Minhas nêmesis eram a matemática e o desenho geométrico. Curiosamente, duas coisas que eu aprendi a gostar depois.

Fora das exigências do colégio, ou em outras palavras, terminado o dever de casa, eu ia ler livros de FC da Argonauta, ou poesia parnasiana, assunto permanente do meu pai, ou as revistas que eu colecionava, como MMEQ, X-9, Meia Noite, Suspense, etc.

Se há muita distância entre os livros da escola e os livros que os alunos leem com gosto... Então, mais um motivo para que a escola, sem abrir mão do seu repertório, peça para eles trazerem o deles. Vamos discutir na escola isso que os mobiliza tanto. Isso é literatura? Por que? Isso é arte? Como assim? Romance policial pode ser considerado alta literatura? Hip-hop é poesia?

Para um garoto ou uma garota deve ter um certo impacto ver as regras essenciais da arte sendo explicadas com a ajuda de exemplos tirados do mundo dele, do leitor, e não de um super-mundo acadêmico, intelectual, pomposo, cheio de palavras difíceis. O acesso a esse mundo (que tem lá suas vantagens) começa de casa.

É o que chamam de representatividade, é o que eu sinto quando estou lendo um livro e no meio do texto salta a palavra, sei lá, Campina Grande. É meio idiota dizer isso em plena aldeia virtual, mas é uma espécie de atestado de existência.

Quando uma leitora consegue abrir um livro e a certa altura virar uma página e ver o personagem chegando ao bairro onde ela mora, passando de ônibus pelo mesmo, o bairro fica mais real naquele instante. É como ter sido certificado, carimbado, existência reconhecida. Nossa cabeça é assim.

Não existe nem alta nem baixa literatura, pelo menos nesse sentido “camarote vs. platéia”. Existem diferentes experiências mentais que se pode acessar com a leitura de livros, e algumas nos parecem mais prioritárias do que outras. Existem livros mais complexos e livros mais simples, mas não é esta a questão. Existem livros que divertem e livros que fazem pensar, mas a questão também não é esta. A experiência da leitura é única. Os números coletivos, as estatísticas, têm importância para definir estratégias de mercado, políticas públicas, etc.  Mas cada leitura é única.

Existem cientistas tão mergulhados em seus problemas de pesquisa que mal conseguem tirá-los da cabeça, não ouvem uma música, não leem um livrinho, não saem para passear, não gostam de cinema. Isso é um extremo. O outro extremo é o pessoal que gosta de entretenimento, vive em busca de entretenimento, e se recusa a manter qualquer tipo de atitude diante de qualquer coisa que não seja a atitude de “eu vim aqui para me divertir, qualquer coisa que me exija mais esforço é uma [colocar expletivo do momento]”.

Toda esta lenga-lenga não tem partidarismo literário. Por exemplo: gosto de Sherlock Holmes mas nunca li muita coisa de Nick Carter, nem me interessei. Então talvez eu não seja um aficionado. Por outro lado, o personagem de Orígenes Lessa, naquele conto do começo, cita como exemplos de “alta literatura nacional” o Visconde de Taunay, de quem meu pai admirava A Retirada da Laguna; cita José de Alencar, que confesso que nunca foi o meu forte; e por fim Machado de Assis, que acabei conhecendo melhor e apreciando mais. Então, nem todo aquele esforço se perdeu.














domingo, 21 de outubro de 2018

4396) A arte de escrever limpo (21.10.2018)





(Monteiro Lobato)


Um autor francês publicou há poucos anos um livro onde ensinava o leitor a conversar com firmeza sobre um livro qualquer, mesmo sem o ter lido. Entrando no clima, não comprei nem li o livro, que aliás é excelente. E me veio a idéia de fazer um livrinho fino listando (este é o século das listas; o próximo será o das mãos espalmadas na parede da caverna) Os 100 Clássicos da Literatura Universal Que Muito Provavelmente Você Morrerá Sem Ler.

O tratamento um tanto brusco do título não se dirige ao leitor, mas a mim mesmo: “Imbecil, tu passa um mês relendo um livro véi de Ellery Queen que já leu três vezes, enquanto nunca leste Homero, Dante, Stendhal, Gjerellup, Pontopiddan...”

E me veio à mente Camilo Castelo Branco, famosíssimo autor português de quem nunca li uma linha sequer. Camilo é tido como um autor melodramático, prolífico de enredos e visceral de sentimentos, com uma linguagem por vezes desabrida, mas sempre com a voz e a narrativa sob controle. Uma mistura de Balzac e Dumas, com traços de Nelson Rodrigues? Difícil saber sem ter lido.

Quem lia Camilo e gostava, de modo divertido e aparentemente sincero, era Monteiro Lobato, que em 1917 escrevia a seu amigo, o escritor e tradutor Godofredo Rangel:

Sabes o que estou lendo com enorme agrado? Macaulay, o incomparável, e Dickens. As memórias de Pickwick são um modelo de arte. Diz-se lá num capítulo o que os cacetissimos psicólogos de hoje dizem em todo um livro. Acho arqui-preciosa a leitura dos ingleses: livra-nos de absorver a infecção luética dos franceses: galiqueira mental que vai dessorando as nossas letras e fazendo-as um luar da francesa. E, fora dos ingleses, leio Camilo; não passo um dia sem umas páginas.

As cartas de Lobato para Rangel foram coletadas nos dois volumes de A Barca de Gleyre (1944), livro tido como inspirador por muitos autores. Lobato e Rangel tinham uma amizade sólida e bem humorada, compartilhavam muitas opiniões literárias, e na juventude tinham feito parte de grupos literários paulistanos. As cartas de Rangel não foram recuperadas, mas o livro traz o lado lobatiano da correspondência, onde ele fala sobre livros, família, fazenda, correção de estilo, carpintaria literária.

Lobato de novo, em outra carta de 1917, durante a leitura de A Mulher Fatal (1870):

Li ou estou lendo a Mulher Fatal – conheces? Que ótimo está ali o Camilo. Que desprezo de todas as regras da composição francesa! Quando se lhe depara lance de morder num adversário, larga da cena romântica com que está maçando o leitor e desanca. Na Mulher Fatal há isto: “Aí apareceu certa vez um arqui-tolo com grandes foros para maior graduação, etc.” E embaixo da página a nota: “O senhor doutor Joaquim Teófilo Braga, na Visão dos Tempos, 1ª. série.”  Imagine Flaubert fazendo isso em Salambô!

Não lhe perdoavam nada a Camilo, mas com que furor revidava os assaltos! Há dele não sei qual romance que em certo ponto está lamecha demais e “pau”; parece que Camilo mesmo percebe isso e, de repente, sem mais nem menos, larga a história e dá uma surra tremenda nessa mesmo Teófilo Braga. Depois continua a história, como se não tivesse havido coisa nenhuma.

O fato de Lobato se deleitar com isto não quer dizer que seja uma qualidade, mas não há como negar que ele se diverte sinceramente com o que o autor apronta, o que não é estranho, porque eu também me divirto com isso. Mesmo quando Glauber Rocha, no Riverão Sussuarana (1978) deixa vazar para dentro do romance o debate acalorado sobre fatos da sua vida pessoal durante a escritura do livro.

Na verdade, ficamos sabendo mais sobre Lobato quando vemos o que ele elogia nos seus mestres e nos seus contemporâneos:

Ontem li Histórias Sem Data, de Machado, e ainda estou sob a impressão. Não pode haver língua mais pura, água mais bem filtrada, nem melhor cristalino a defluir em fio da fonte. E ninguém maneja melhor tudo quanto é cambiante. A gama inteira dos semi-tons da alma humana. É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras. Os demais nem lhe dão pela cintura. (1915)

Uma das razões para isso é essa elegância que ele encontra em Machado, onde o enxugamento não se faz às custas da expressividade. Lobato admirava Coelho Neto, mas dizia que nele “há 200 mil adjetivos a mais”. E, em carta de 1915: “Estou convencido de que o vocábulo fora de moda, fóssil ou raro, é ‘pedra’ de banana-maçã”.

Em muitas dessas cartas Lobato manifesta uma certa expectativa em descobrir autores de estilo limpo, direto, espontâneo, forte. Sem a adiposidade dos beletristas da época. Daí sua impressão sobre Lima Barreto após as primeiras leituras, dirigindo-se a Rangel, em 1916:

Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais soube do triunfo do Policarpo Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas coevos e coelhos, inclusive o Neto. Facílimo na língua, engenhoso, fino, dá impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda dágua. Vou ver se encontro um Policarpo e aí o terás. Bacoreja-me que temos pela proa o romancista brasileiro que faltava.

As opiniões de Lobato estão certas ou erradas? O estilo que ele defende é superior ou inferior aos demais estilos? Nada disso importa. Lobato era um indivíduo vigoroso, energético, homem de ação. Páginas e páginas das cartas são dedicadas à descrição de sua rotina na fazenda, consertando telhados, reforçando cercas, cuidando das criações, dirigindo plantios e colheitas, quebrando a cabeça com as burocracias cartoriais da época.

E não é apenas o despojamento que Lobato admira em Camilo, é a mão segura para ousar fazer tudo que ousa:

O mérito de Camilo está em que nos ensina todas as acrobacias da língua, e nos mostra todas as “bravuras” e ainda nos diverte. Quando se põe a troçar é enorme! Quando vira palhaço e vai descambando para o reles, sai-se com um disparate de gênio e salva tudo... Em matéria de diálogos de gente do povo, não sei de nada igual. (1916)

A Barca de Gleyre foi um dos títulos citados por Guimarães Rosa num questionário, quando lhe pediram uma lista de títulos de autores brasileiros que o haviam influenciado. Essa exuberância devoradora de leitor, esse gosto em se deixar arrebatar por um autor que entusiasma, parecem ter passado para Guimarães Rosa. Mesmo que os respectivos gostos fossem diferentes, a atitude para com a literatura era parecida.

Não muito diferente da de Ariano Suassuna, que dizia:

“É melhor estudar um só livro, qualquer que seja ele, com ‘raça’, alegria e entusiasmo, do que estudar todos os livros do mundo friamente.  Porque em tais casos um livro, mesmo menor, examinado e reexaminado em todas as suas implicações, aplaudido aqui e ferozmente negado ali, pode ser, para o jovem que o leia, o que foi, para mim, o ‘Assim Falou Zaratustra’ de Nietzsche, na adolescência: a descoberta da ardente e duradoura alegria do conhecimento”.
(Ariano Suassuna, Iniciação à Estética, pag. 13)









sexta-feira, 19 de outubro de 2018

4395) Uma retórica do Fantástico (19.10.2018)




Existe uma retórica do Fantástico, da literatura do sobrenatural, do insólito, do irreal?

Ou seja: existem procedimentos puramente verbais que estejam intimamente associados ao gênero fantástico? Um conjunto de “figuras de linguagem” ou equivalente, que por sua própria natureza conduzam à produção do sentimento do fantástico, num texto?

Quando estava pesquisando para minha antologia Freud e o Estranho (Casa da Palavra, 2007), li um excelente livro sobre cinema de terror, Caligari’s Children (1980), de S. S. Prawer, autor que eu deconhecia.

No capítulo 4, “The Uncanny”, ele diz (tradução minha):

Pode ser bastante produtivo, como já tentei demonstrar em outro contexto, elaborar algo como uma retórica ou gramática do Estranho [Uncanny]: examinar os instrumentos retóricos – a aposiopese, a anáfora, a anfibologia, construções aparentemente impessoais, deslocamentos da sintaxe, empilhamento de exclamações e interrogações, e assim por diante – de que os autores têm lançado mão, em diferentes momentos, com o fito de criar em seus leitores um estado de espírito adequado, uma sensação do Estranho e uma sensibilidade para o Estranho. (p. 114)

Prawer é professor de Língua e Literatura Alemã em Oxford, e esse breve apanhado de recursos retóricos me parece uma pontinha de uma montanha soterrada que pesquisadores de Letras poderiam escavar com proveito.

Para meu uso doméstico, resolvi dar uma avaliada. Dos recursos enumerados por ele, o mais banal e que primeiro salta aos olhos é o “excesso de exclamações e interrogações” de tanta pulp fiction. A exclamação denota o assombro, o espanto, o terror; a interrogação denota dúvida, incredulidade, incapacidade momentânea de entender.

Há precursores ilustres (ou dependentes famosos) destes recursos, como a gente vê em mestres do “relato alucinatório” como Edgar Allan Poe, E. T. A. Hoffmann e muitos outros, como o grande Guy de Maupassant:

Meu Deus! Meu Deus! Finalmente vou escrever o que me aconteceu! Conseguirei fazê-lo? Atrever-me-ei? É coisa tão estranha, tão inexplicável, tão incompreensível, tão louca! Se não tivesse certeza daquilo que vi, se não tivesse certeza de que não houve nenhuma falha nos meus raciocínios, nenhum erro nas minhas averiguações, nenhuma lacuna na sequência irredutível das minhas observações, eu me julgaria um mero alucinado, vítima de alguma estranha visão. E, afinal, quem sabe?
(“Quem Sabe?”, em Histórias Eternas, trad. Ondina Ferreira, Ed. Cultrix, 1959)

O parágrafo acima é uma dessas aberturas-padrão de tantos contos fantásticos, em que um indivíduo, tendo passado por uma experiência aterrorizante ou incompreensível, tenta fazer sentido do que lhe aconteceu, mas seu estado de desorientação emocional é revelado justamente pelos pontos de exclamação e de interrogação.

Dos recursos citados por Prawer, este é a esta altura o mais banal, o mais clichê.

Resolvi então dar um rápido balanço nas figuras de linguagem que ele cita, essas senhoritas enigmáticas e glamurosas vestindo túnicas gregas.

Prawer cita como exemplo a Anáfora, assim descrita nos manuais:

A repetição da mesma palavra ou grupo de palavras no princípio de frases ou versos consecutivos. 

Os exemplos disso são milhões:

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da fé, foi a época da incredulidade. Foi a estação da luz, foi a estação das trevas. Foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero. 
(Charles Dickens, Um Conto de Duas Cidades)

Esta simples figura de linguagem pode produzir o sentimento do fantástico, ou favorecer seu aparecimento? Um texto fantástico pode usar a anáfora, mas ela não me parece estruturalmente identificada a ele, como as demais figuras da lista.

De qualquer forma, a Anáfora é uma entre muitas figuras narrativas baseadas na repetição. E aí, sim, porque em termos narrativos isso gera todas as histórias de duplos, Doppelgängers, reflexos, desdobramentos, cisões, duplicação de um mesmo ser.

Das figuras citadas por Prawer a mais conhecida deve ser a Anfibologia, apresentada por Monteiro Lobato em Emília no País da Gramática, quando a boneca é levada a visitar os cárceres onde estão presos os vícios de linguagem.

Emília botou-lhe a língua e passou ao terceiro cubículo. Viu lá dentro um vulto de mulher com duas caras.
— E esta "bicarada"? — perguntou.
— Esta é a ANFIBOLOGIA, que faz muita gente dizer frases de sentido duplo, ou duvidoso, como: Ele matou-a em sua casa. Em casa de quem, dele ou dela? Quem ouve fica na dúvida, porque a matança tanto pode ter sido na casa do matador como da matada.  

O que a Gramática classifica como defeito, quando por ignorância, pode ser efeito, quando usado em busca de um resultado específico.

O Fantástico pode ser evocado de maneiras interessantes através de frases “anfibológicas”, frases que, como certos desenhos, certos efeitos ópticos, podem ser rigorosamente interpretadas de duas maneiras opostas.

Como as frases de som quase idêntico que abriam e fechavam os contos de Raymond Roussel.

Seria uma tarefa interessante ir registrando e compilando trechos desse tipo, em que algo é descrito, até com certo detalhismo, mas o leitor não sabe a quem atribuir aquela ação, ou pensamento.

Fui à cata da tal Aposiopese. Mestre Google me brindou de início com esta descrição:

Interrupção intencional de um enunciado com um silêncio brusco, seguido ou não de um anacoluto, querendo significar que se resolveu calar o que se ia dizer. A aposiopese geralmente é representada graficamente pelas reticências. 

É uma figura de linguagem que reproduz aquele movimento em que a mente se atira para diante mas se detém subitamente porque algo mudou. É um movimento de estranheza, de raciocínio cortado ao meio por uma surpresa ou um desmentido.

Outra página, citando Massaud Moisés, esclarece:

Segundo o Dicionário de Termos Literários (Massaud Moisés, Editora Cultrix, 2002), entende-se aposiopese como «silêncio súbito, interrupção, reticências»; a referida obra acresenta ainda: «[C]onsiste na suspensão de um pensamento já iniciado, por meio de corte repentino na cadeia sintática. Espécie de anacoluto consciente, a aposiopese assinala o momento em que o escritor interrompe bruscamente a sequência das ideias, 1) ao perceber que vai adiantar raciocínios ou surpresas, 2) quando pretende dar ênfase às palavras, ou 3) quando se dá conta de que vai dizer mais do que deseja. No geral, a aposiopese evidencia-se, graficamente, pelas reticências, mas nem todo sinal suspensivo denota a presença deste recurso estilístico»

A aposiopese pode ser ampliada no contexto de uma única frase para o de uma narrativa inteira. São aqueles contos fantásticos em que alguém começa a descrever um fato ou uma percepção extraordinários e interrompe-se, repetidas vezes, recomeçando a seguir de um ponto totalmente diverso, na tentativa vã de abarcar algo maior do que sua capacidade de expressão.

Com um pouco de boa vontade, posso encontrar um exemplo de algo nesse sentido em um recurso estilístico muito frequente em Jorge Luís Borges, quando seu personagem, diante de um fato estranho ou fantástico, tenta explicações bem diferentes, sucessivamente:

Este palácio é obra dos deuses, pensei primeiramente.  Explorei os inabitados recintos e corrigi: Os deuses que o edificaram morreram.  Notei suas particularidades e disse: Os deuses que o edificaram estavam loucos.
(“O Imortal”, em O Aleph, 1948)

Muitas vezes a penetração no ambiente fantástico se dá assim, por aproximações sucessivas, por tentativas de explicação sempre interrompidas antes de chegar ao fim, devido ao aparecimento de novos elementos insólitos.




domingo, 14 de outubro de 2018

4394) A única família normal é a minha (14.10.2018)







O websaite Metafilter abriu com seus numerosos leitores um questionário interessante, nos seguintes termos: “Quais são os hábitos da sua família que para você eram normais e comuns, e você só percebeu que eram excentricidades quando foi morar fora?”.

As respostas variam muito, e fazem a gente pensar de novo que “ninguém é normal visto de perto” ou que “nenhuma família é normal vista de fora”, e assim por diante.

É bom lembrar que a imensa maioria dessas respostas vem de pessoas nos EUA, e que talvez respostas brasileiras trouxessem uma variedade interessante de hábitos malucos que são só nossos. 

Abaixo, algumas respostas que me chamaram a atenção. Cada parágrafo é de uma pessoa diferente.

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Minha família comia arroz de colher. Ainda hoje afasto os olhos quando vejo alguém comendo arroz com garfo.

Minha mãe ensinou a gente que não se usa uma toalha duas vezes, é um hábito grosseiro. Perdi esse costume depois de adulto, quando fui usar lavanderias pagas. Fico pensando no que era usar três toalhas para um único banho de chuveiro.

Quando saí de casa, as pessoas me olhavam esquisito porque eu comia comida vencida e não me incomodava de cortar partes mofadas ou podres de algo e comer o resto. Meus pais cresceram durante o racionamento de comida da II Guerra, e minha mãe ainda hoje prefere comer o pão “dormido”.

É um pecado grave o fato de nós, filhos, não sermos capazes de impedir nossa mãe de agir assim. Mas ela lava o peixe antes de preparar. Ela lava com detergente.

Quando criança eu não tinha a impressão de viver num lar muito religioso, mas sempre ouvi dizer que nossos amigos de famílias não-cristãs eram gente inferior, que pais que deixavam seus filhos ver filmes proibidos para menores eram imorais, que eu devia lamentar as crianças filhas de pais separados, etc. Eu não tinha noção do que era a vida dos adultos até passar a viver só. A religião deixou de fazer sentido para mim no momento em que ninguém me obrigou mais. E todas aquelas pessoas que eu cresci vendo como imorais, deixaram de parecê-lo.

Em nossa casa, costumávamos ter longas discussões em formas de cartas compridas e formais que eram entregues na mão do destinatário, com seriedade absoluta. Descobri que isso não é um costume universal.

As pessoas da minha família sempre levam um isopor de cerveja quando vão a um velório, e quando as coisas começam a ficar muito emotivas, saem para beber lá fora.

Lá em casa se lava a banheira antes e depois de cada banho, mesmo quando as pessoas tomam banho sucessivamente. Quando falo nisso fora de casa, todo mundo fica chocado. Ao que parece, eles só lavam a banheira uma vez por semana.

Nas velhas fazendas da minha infância, ninguém usava a porta da frente. Todo mundo (com exceção do padre local) entrava direto pela porta da cozinha, que era também o local onde as pessoas passavam 90% do tempo, porque fazia menos frio.

Quando eu era garoto, a família de um amigo meu mantinha toda a mobília da sala de visitas ainda embrulhada em plástico, do jeito que veio da loja, para não se estragar.

Uma coisa da minha família que nunca encontrei em nenhuma outra foi que minha avó e a irmã dela gostavam de cachorros, e todos tinham sempre o mesmo nome. Os cães da minha avó se chamavam Smokey, e os da minha tia-avó eram Duke. Elas tiveram dezenas de cachorros ao longo da vida, e todos sempre tiveram esses mesmos nomes.

Durante anos, na minha infância, tínhamos uma reunião familiar todo domingo. Repassávamos as anotações do domingo anterior, depois cada um de nós dizia uma coisa de que podia se orgulhar da semana que passou, e cada um fazia um elogio a cada membro. Depois encerrávamos cantando uma canção.

Éramos cinco filhos e havia só um banheiro, de modo que não tínhamos o conceito de privacidade. Era muito normal um de nós estar sentado na privada enquanto outro escovava os dentes ou tomava um chuveiro. Acho que somente aos doze anos percebi que as demais pessoas fechavam a porta quando iam ao banheiro.

Quando a gente dizia a mamãe que estava com fome e ainda não era hora do jantar, ela tirava hotdogs do congelador, e a gente comia como se fossem picolés. Depois fiquei sabendo que isso não é a norma.

Quando a gente queria um gole rápido de água, abria a torneira e colocava a boca embaixo. Ainda lembro O HORROR no rosto da minha amiga do colégio quando fiz isso na casa dela.

A gente tinha um piano na sala, junto da porta de entrada. Quando meu pai chegava, tirava as chaves e a carteira do bolso, e punha em cima dele. Depois o piano foi vendido e substituído por um mesa, que todo mundo continuou chamando “o piano”. Quando meus pais se mudaram e levaram a mesa, ela foi parar na sala de jantar da casa nova, e ainda era “o piano”, e meu pai ainda hoje põe as chaves e a carteira em cima dela.

Meu pai era um trabalhador autônomo e tinha o hábito de encerrar o dia de trabalho às 16:00, vir para casa, e todo mundo jantava às 16:30. Quando cresci, fiquei uns dias na casa de alguém e quando deu 18:00 e nada de ninguém pôr a mesa, comecei a pensar: “Esse povo idiota não janta não?!”

Na minha casa não tinha isso de Papai Noel. Eu já era adulto quando percebi que muitas crianças, em algum ponto da vida, acreditam que ele existe, e os pais fazem encenações a sério, neste sentido. Quero dizer, a gente o via nos filmes e na TV, mas sempre achou que era um personagem como os demais.

Na minha família a gente cantava e dançava pela casa com frequência, como se fosse um musical.

Uma amiga minha da faculdade vinha de uma família onde havia o costume de apertar a mão de todas as pessoas dentro do carro, quando se cruzava a divisória entre dois Estados. Imaginem a surpresa dela e o choque das outras pessoas quando ela quis fazer isso em nossa primeira viagem da turma.

Minha família viajava pouco, de modo que eu não tinha a menor noção dos processos envolvidos nisso. Eu já tinha mais de 30 anos quando entendi que a gente podia usar as gavetas e os armários quando se hospedava num hotel.

Minha mãe passava uma hora inteira à noite fazendo suas preces, e ai de quem a interrompesse. Ela sempre tomava um drinque à noite, antes de dormir. Com sete anos de idade eu já sabia preparar uma vodka com suco de laranja, ou um gim com tônica.

Quando tínhamos visitas, minha mãe já estava limpando a casa antes mesmo deles irem embora. As pessoas estavam conversando descontraidamente na sala e ela já estava pegando os copos para lavar (mesmo que elas não tivessem acabado de beber), e passando o aspirador de pó em volta dos pés delas. Quando todo mundo ia embora, a casa já estava limpa e reluzente.

Quando meu marido e o irmão dele eram garotos, toda vez que queriam alguma coisa realmente importante tinham que apresentar uma proposta por escrito.

Meus irmãos e eu tínhamos cores predeterminadas para tudo que era nosso: toalhas, xícaras, escova de dentes, peças de jogos de tabuleiro. Meu primeiro companheiro de quarto na universidade se horrorizou ao saber que eu nunca pude ter uma caneca verde, mesmo sendo minha cor favorita.

Na família do meu marido, todo mundo cresceu acreditando que se não rezassem antes de cada refeição iriam contrair botulismo.

Acho muito estranho quando as pessoas vestem crianças todas de preto quando as levam para um velório ou funeral. As crianças deveriam vestir algo formal, mas não tem que ser tudo preto.

Cresci numa família numerosa, onde em dias de festa (Natal, etc.), depois da ceia todo mundo ia para a cozinha, ajudar a lavar os pratos. Era um momento agradável, de brincadeiras, convivência, ninguém se incomodava. Entendia-se que as pessoas que tinham dado duro para preparar o jantar estavam desobrigadas disto. Tive momentos desconfortáveis na casa dos pais da minha esposa quando tentei ajudar a lavar os pratos, porque lá homens NÃO LAVAM prato nenhum. Eles ficam sentados na cadeira de balanço.


-oOo-

Tem muito mais coisas, mas cabe ainda um comentário. Muitas vezes uma pessoa toma uma atitude qualquer, e nós interpretamos essa atitude como sendo uma decisão intelectual ou moral dela. Mas pode ser apenas um desses “modos de ser” que assimilamos muito cedo.

No contexto paterno-materno-fraterno, milhares de hábitos e valores se formam sem que nem nos passe pela cabeça questionar aquilo. Afinal, uma criança aprende dezenas de coisas diferentes por dia. Fica tudo internalizado e ninguém questiona mais. A gente aprende um jeito, e em geral morre sem sequer perguntar o “por quê” de ser assim, e não assado.

Algo parecido ocorre com valores, costumes, conceitos e preconceitos. Opiniões políticas, religiosas, informações sobre o mundo e a vida em geral. O que uma criança aprende tem chances de ficar sendo para ela a pura expressão da verdade.

Como dizia o filósofo, é mais fácil matar e morrer por uma idéia do que questionar essa idéia, seja ela qual for.










sexta-feira, 12 de outubro de 2018

4393) Conselhos de um craque do Galo (12.10.2018)





(foto: Julia Pontes)

Duvido que mesmo o pessoal de Campina Grande que tem a minha idade, que conviveu comigo alguns anos de glória do Galo do São José, lembre de um camisa 10 chamado Belame, um cara moreno, magro, alto. Um meia armador ofensivo, no sentido Sócrates do termo, no sentido Araponga do termo, no sentido Assis Paraíba do termo.

Belame jogou poucos anos porque fazia faculdade. Largou a bola, ganhou dinheiro, virou um eterno sócio e torcedor alvinegro.  A “vida de bola” não era o forte dele, embora a bola fosse.

Virou Belame do Pandeiro, por causa de um grupo de batucada que tem até hoje com uns amigos sabadeiros e dominicais. Bom percussionista, diz que é “mil vezes melhor com o pandeiro do que com a bola. E além disso o pandeiro não empata de beber”.

Belame é de Campina, nascido no Catolé. Um pouco mais velho do que eu. Tem voz razoável, sabe muito samba antigo, sabe forrós obscuros de Zito Borborema ou Manezinho Silva, sabe uns boleros do tempo bom. Seus ídolos: Trio Nordestino, Demônios da Garoa, o Jorge Ben da primeira fase.

Belame sempre foi articulado, lia bastante. Hoje, avô de netos, forte e sadio, gosta de sentar de frente para o mundão escancarado e filosofar um pouco. Para ele qualquer esquina de beco pode virar um Corcovado aberto.

Meses atrás estive em Campina e fui visitá-lo numa tarde tranquila, e botamos pra beber e filosofar. Era um entardecer de domingo, ali perto da subida da Manoel Tavares para o Alto Branco. Uma rua lateral onde mora uma filha dele, e onde às vezes ele chama algum da gente para almoçar, tocar um pouco e trocar idéias. Eu levei o violão, a gente ficou curtindo e apostando repertório.

A rua era de calçamento, com uma calçadinhas estreitas e limpas, crianças de bicicleta. A gente estava do lado de fora da casa, junto do meio fio, uma mesinha, duas cadeiras, uma cerveja no obus de isopor, um prato de guloseimas sanguinolentas. Dali do alto avistávamos a vastidão do céu da Borborema, como se o sertão longínquo estivesse se incendiando, e ficamos roendo as unhas pelo futuro do Brasil.

– E agora, Belame? – perguntei, meditativo e cheio de respostas.

Ele serviu os copos até esvaziar a garrafa, ergueu para a janela pedindo outra e anunciou:

– Vou lhe explicar o mundo como é. Teve uma vez, anos 60 eu acho, uma decisão no Maracanã, Fluminense e não sei quem. Final de campeonato. Empate, não se usava pênalti pra decidir, e por incrível que pareça foi no cara ou coroa.

– Isso mesmo – disse eu.

– O capitão do Fluminense era Pinheiro, um xerifão alto, de bigode. Batia pênalti com uma violência que parecia um uruguaio. Era chamado o Rei do Pênalti.

A netinha chegou trazendo a cerveja nova, ele serviu os copos, bebeu, limpou a espuma.

– Mas nesse tempo não se decidia título no pênalti – continuou ele. – Era na moeda: o juiz, os bandeiras, os dois capitães, num círculo, e os dois times e um monte de babão no círculo em volta. Ah, sim, os repórteres de pista. O que hoje chamam de trepidantes.

– Certo.

– Quando estavam se encaminhando pro centro do campo, Pinheiro chamou o pessoal do Fluminense, deu uma instrução. Foram para o meio. Ele pediu cara, o outro aceitou coroa, o juiz jogou pra cima, e quando a moeda começou a descer piruetando ele disparou num berreiro, rapaz, e o time todo ao mesmo tempo, um berreiro ensurdecedor, esbarrando, derrubando todo mundo, o time pulando aos berros de “É campeão! É campeão!” ou sei lá como era o grito daquele tempo.

– E a moeda, tinha dado o quê?

– Ninguém viu a moeda até hoje. O que valeu foi aquilo. O juiz não era besta de mandar voltar, a foguetaria cobrindo no centro, uma nuvem de pó-de-arroz no Maracanã que se avistava em Niterói.

– Muita cara de pau – disse eu.

– Pois bem, isso é que as pessoas chamam de Narrativa. O futebol é cheio dessas coisas. Já vi muita bola, no derradeiro minuto, ser jogada para dentro do gol e o zagueiro devolver de cabeça.  O juiz nessa hora pode marcar o que bem quiser, porque certeza mesmo ninguém tem.

– Mas o outro time protesta, né?

– Jogador protesta até minuto de silêncio. Mas isso é um exemplo do que eu chamo O Olho Ponderado. Guarde essa expressão. Significa um olho que tem um peso maior, um valor maior que o de outros olhares.

– O olho de quem tem o Poder.

– Isso. Dentro de campo, o olho do juiz tem esse peso. É o poder e é o risco, é a autoridade dele e é a vulnerabilidade dele: o olho dele, o olho que fornece a decisão. Não importa se aquela bola entrou ou não. Importa o que ele disser. É a Narrativa.

– Eu queria ser guarda-noturno e não queria ser juiz de futebol.

Ele deu um gole silencioso, concordando. Pegou o maço de cigarro, pensou, desistiu, largou de novo, voltou a falar.

– Voltando a Pinheiro no cara ou coroa: Pinheiro foi foda. Figurativamente ele passou o juiz, a imprensa, as autoridades no rodo, não deixou nada. Nada. Desmoralizou todo mundo. Rebatou a Narrativa da mão do pobre do juiz, tu entendesse?

– Tem uma história de boxe que eu acho muito boa – disse eu. – Uma daquelas lutas da porra de Mike Tyson com Evander Hollyfield.

– Eu era o maior fã de Myke Tyson – disse ele. – Teve três lutas que a gente foi ver. Uma foi no antigo Miúra, outra no bar de Dermeval no Tambor, e outra numa churrascaria véia que não existe mais... Pois toda vez, quando a gente ainda estava se arrumando nas cadeiras e pedindo a primeira, a luta acabava.

– Nesse dia – disse eu – Hollyfield deu uma surra histórica em Tyson. Depois da luta, Tyson e a equipe dele estavam indo juntos pra sala de imprensa, pra dar a entrevista. Tyson falou : “Vou dizer assim: eu sabia que ia acabar com ele”. Aí o técnico dele disse: “É melhor não chegar lá falando muita merda não, cara. Tu perdesse a luta.” Ele estava tão zonzo que ainda não tinha entendido direito.

– Essa é demais – disse ele com uma risada. – Ele ainda estava na Narrativa de antes.

– Era um fenômeno. E nessa época, data vênia o nobre colega me permitir, eu criei um conceito.

– Fique à vontade – disse ele, desta vez acendendo e baforando um cigarro. – A rua é pública.

– Isso é uma coisa que tem na literatura. Eu chamo O Começo Mike Tyson. É a partir da primeira frase, num livro, você já cair matando, não deixar o leitor respirar. Uma página, uma e meia, duas... Depois a linguagem pode ir desacelerando, o passo vai no ritmo que convier. Mas o começo é algo como o que Mike Tyson fazia naqueles dois ou três minutos quando o gongo fazia “pléinn!...”. Às vezes a gente consegue fazer isso num conto.

– É verdade. Na batucada, mesma coisa. A gente vai tocar numa manhã-de-sol num clube grande, num lugar aberto com quase mil pessoas... Abre o show pisando levinho? Nãããão! Você entra fudendo, com uma música bem alta, pra encerrar qualquer assunto e fazer todo mundo parar a conversa, encher o copo e virar a cadeira pro palco.

– Boa.

– Começo Mike Tyson. Tá valendo. Pois o que Pinheiro fez, voltando ao fio da meada, foi um final Mike Tyson. A Narrativa não é o que aconteceu. Também não é o que a gente pensa que aconteceu. A Narrativa é a versão de quem passa o trator por cima de todo mundo e diz: Essa porra vai ser contada assim.

Eu bebi, meditei um pouco. Bebida não serve pro sujeito ficar bêbado, serve pro sujeito ocupar a boca e dar tempo de pensar melhor numa resposta.

– E agora, Belame? – perguntei, pondo o copo na mesa. – Tudo indica que a gente perdeu a Narrativa. Faz o quê, agora?

Ele deu mais um gole, pegou o violão, que estava deitado em cima duma cadeira próxima, formou uns acordes distraídos enquanto olhava o céu. E o crepúsculo afogueando uma beirada inteira de Campina.

– Poeta, o futebol me ensinou que vitória de domingo se comemora no domingo, porque quarta-feira tem jogo. E a derrota de domingo mesma coisa: se chora no domingo, porque quarta tem jogo.

– Dá um sol menor aí – disse eu.

Ele fez um sol, ré, sol. E a gente emburacou num Nelson Ned dos velhos tempos: “Pois tudo passa, tudo paaaassarááá... E nada fica, nada fiiiiicarááá...








terça-feira, 9 de outubro de 2018

4392) Dicas de Jeanette Winterson (9.10.2018)



Jeanette Winterson, autora britânica bastante respeitada, põe à disposição dos pretendentes a autores, como nós, esta lista de tarefas, de dever de casa, ou de koans do i-Ching. O convite e a publicação foram do jornal The Guardian.

  1. Turn up for work. Discipline allows creative freedom. No discipline equals no freedom.
A tradução disso é: Vá ao trabalho. O “turn up” aí é um pouco no sentido de comparecer numa hora e local combinados. Disciplina, em arte, significa haver um consenso em torno de certos tipos de ordem, como a existência de notas musicais (e toda a matemática resultante), sem a qual talvez só existissem cacofonias sem sentido. Disciplina é haver um instrumento, linhas delimitando o chão, um cronômetro, um placar, uma bola, algum esforço físico-mental para encarar. A liberdade só se consegue através da disciplina. E a disciplina pessoal (trabalhar todo dia) ajuda a compreender isto.

  1. Never stop when you are stuck. You may not be able to solve the problem, but turn aside and write something else. Do not stop altogether.
Nunca pare, quando der uma travada. Talvez não dê para resolver aquele problema, ali, na hora, mas guarde aquilo e vá fazer outra coisa. Não pare de vez. Muitas vezes a gente chega a um impasse na narrativa de um conto e tem que parar. Tem que pensar, porque digamos que seja uma decisão de plot fundamental, e você vai ter que escolher prevendo todo o resultante. Precisa de tempo.
Muito bem: você salva tudo (se não salvou até esta altura, sinto muito, você é um amador) e vai fazer algo diferente. Tem que ter sempre não digo um plano B criativo, mas vários planos A. Você fechar a aba do conto, e se vê com três ou quatro arquivos de textos (um artigo, outro conto, uma resenha, uma palestra) abertos ao mesmo tempo. Você vira um trem transdimensional, porque quando empaca num Universo basta mudar de canal para a outra janela e pegar outro trilho igualmente interessante. A menos que tenha algo mais interessante para fazer, não desperdice esse jorro final de combustível.

  1. Love what you do.
Virou meio que um chavão entre jogadores de futebol dizer algo na linha de “Eu sou um privilegiado, ou um sortudo, ou um ungido, por ganhar uma fortuna... pra fazer a coisa que mais gosto!”.
É bastante compreensível, mas eu já conheci grandes artistas que diziam: “Faço pra ganhar a vida, mas prazer não me dá nenhum”. Eu até dou um desconto, acho que dizem isso mais por ranzinzice cultivada do que por desprazer real. São grandes artistas, pouco importa que sejam velhos ranhetas, complicados, que reclamam de tudo e de todos. Eles não amam o que fazem? Talvez não amem, mas não importa, o que importa é que alguma outra razão, que não esta, os leva a escrever, e é pelo que escrevem que somos gratos.
Você pode até ter a literatura como segunda fonte de recursos, ou terceira, mas procure tê-la como a primeira em termos de importância pessoal. Escrever por obrigação, só quando houver dinheiro bom envolvido.
Uma vez, eu tinha 30 e poucos anos, conversei com um roteirista mais velho, no intervalo de algum trabalho, num bar de esquina. “Quando tempo,” eu perguntei, “o cara leva até poder impor o que quer escrever, a história que ele quer contar?”.  Ele disse: “Quando você conseguir me telegrafe, estou tentando até hoje.” Ame o que você faz, principalmente se você tiver mesmo que fazer.

  1. Be honest with yourself. If you are no good, accept it. If the work you are ­doing is no good, accept it.
Todas as pessoas que eu conheci afirmavam estar sendo 100% honestas consigo mesmas. As únicas pessoas com dúvidas íntimas que eu conheci foi através do romance, do cinematógrafo e de outras diversões de quermesse.
Ela diz: seja honesto, com força. Se você não presta pra nada, entenda, e assuma. Se esse trabalho que você está fazendo não vale porra nenhuma, aceite, e assuma.
Isso torna você um grande escritor, pergunta-se? Não, mas como dizia o meme, haverá um panaca a menos no mundo.
Se seu trabalho é uma merda, talvez você esteja escutando a sereia errada. Digamos: você não é jogador de xadrez, é saxofonista. Ou: seu negócio não é escrever fantasia, é criar em publicidade. Ou então: seu negócio não é ser jogador, mas você pode ser roupeiro do seu time do coração. Quem sabe se o problema de todo mundo não é que deviam estar tentando (e conseguindo) fazer outra coisa? Mas alguém lhes botou na cabeça que teria de ser na literatura. Não tem. Sem querer ser bairrista, mas a literatura é para quem vê nela sua primeira prioridade. Talvez tudo (tudo que vale a pena) seja assim.

  1. Don’t hold on to poor work. If it was bad when it went in the drawer it will be just as bad when it comes out.
Aí está um ponto em que não poderíamos divergir mais. Eu guardo tudo, e o que não guardei foi porque não pude. O pior dos poemas tem uma linha genial. Trinta e cinco anos depois você está de caneta em punho precisando exprimir uma determinada coisa e pensa: “Oxente, eu já falei isso, e foi assim-assim, e eita, deu certinho agora.”  Será exagero chamar isso de improviso?
O que Winterson quer dizer é talvez: Não perca tempo. Vá cuidar de alguma coisa com mais futuro. Escreva outro conto. Produza outro filme, com outras pessoas. Ensaie outro espetáculo, um bem diferente. Isso é um conselho típico do autor bem energético. Outros sentem de maneira diferente, não são tão entusiasmados assim. Escrever lhes custa um esforço maior do que à maioria. Vivem “com o combustível na reserva”. Na hora de trabalhar, foco total – e só no que vale a pena. É como alguém que tem direito a 40 minutos de caminhada ao sol por dia, e sabe que precisa aproveitá-los bem.

  1. Take no notice of anyone you don’t respect.
Um autor não deve botar no papel ninguém que ele não respeite, personagem nenhum a quem ele não esteja disposto a conceder sono, suor e álgebras.
Muitos anos atrás um ator profissional me disse: “Não tem coisa mais chata do que um papel onde você toda noite troca de roupa, sai da sua casa, vai para o teatro, passa lá dentro um total de seis horas toda noite, e tudo isso pra nada, pra fazer um papel que não diz nada importante, está ali só para compor cenário e servir de escada para algum colega mais sortudo”.
Você deve respeitar o personagem tanto quanto deve implicitamente respeitar seus atores. Muitas vezes basta a esse ator uma cena, uma boa troca de diálogos, ou um momento forte na peça para o personagem dele. O ator sai de casa toda noite com boa expectativa, ele tem pelo menos uma cena de cinco minutos onde ele mostra a que veio, justifica aquele aluguel todo.
Não dê atenção aos personagens, se você não os respeita. Coloque neles as coisas que você respeita, mesmo nos vilões. Os vilões precisam de boas qualidades, mesmo que elas não os justifiquem. Os heróis precisam de fraquezas. Um herói não é nunca igual à gente. Um herói é sempre alguém maior que a existência – mas com uma fraqueza. Uma kryptonita, um calcanhar vulnerável, o que for.
Respeitar o personagem é estar disposto a preenchê-lo e dar-lhe corda de manivela para que ele saia se amostrando.

  1. Take no notice of anyone with a ­gender agenda. A lot of men still think that women lack imagination of the fiery kind.
Não ligue para as pessoas que têm preconceitos de gênero. Muitos homens ainda acham que falta às mulheres um certo tipo de imaginação rebelde.
Não tem muita relação com a técnica literária, e sim com a história da literatura: mas nas últimas décadas a presença da imaginação feminina nos ramos da FC e da fantasia tem sido imensa, para não falar da literatura policial e de horror, territórios já conquistados por elas em épocas mais afastadas. Tem mais pessoas achando que vale a pena fazer um sacrificiozinho mas escrever, sim.

  1. Be ambitious for the work and not for the reward.
Pense na qualidade do produto final, e não nos valores financeiros. Aliás, os dias que precedem a assinatura do contrato podem ser totalmente dedicados a esta questão dos valores estipulados em contrato. Para o sujeito depois não ter que ficar pensando nisso na hora em que está escrevendo. Negocie a recompensa antes. Pegue um adiantamento. Comprometa-se a produzir. Passe o recibo, emita a nota. Arregace as mangas e mãos à obra. Mergulhe no texto. Adeus contrato.
Ser ambicioso com relação ao trabalho não é coisa de gênios desmedidos como Van Gogh ou Julio Verne. Pode ser a auto satisfação de um mecânico que resolve de maneira mais que satisfatória um quiproquó técnico qualquer. É a arte de fazer bem feito, mais elevada que as das nove musas. Mas não descure o dinheiro, o contrato. Dinheiro cuida-se com trinta mil sentidos, etc.

  1. Trust your creativity.
Acredite na sua criatividade. Todos os livros de auto-ajuda dizem isto de alguma forma, talvez porque todo o restante da mídia ambiente, imprensa, diversões, lengalenga do dia-a-dia, tudo induza essas pessoas a acharem que são diferentes e menores do que são. Ou consegue iludi-las dizendo que são maiores, ou mais importantes, ou mais interessantes que todo o resto, e não são.
Umas não são tão espertas ou talentosas quanto julgam. Outras poderiam perfeitamente estar fazendo bem mais do que fazem, e tendo repercussão equivalente, mas estão presos a outros compromissos. Uns trabalham muito, outros têm problemas na família, todos dizem: “eu só queria ter tempo pra escrever”. Mas você só sabe se tem criatividade se você se testar. Como em qualquer outra atividade coletiva.

  1. Enjoy this work!
Curta o trabalho de agora. Cultive o seu jardim. Escape para contar a história. Domine o sevagram. Mantenha a pressão do boiler sob controle.