segunda-feira, 19 de novembro de 2018

4406) O menino Guimarães Rosa (19.11.2018)




Hoje se completam 51 anos da morte de João Guimarães Rosa, e acabei folheando um livro que li recentemente: Joãozito – Infância de Guimarães Rosa, de Vicente Guimarães (José Olympio/INL-MEC, 1972).

Vicente Guimarães está meio esquecido agora, mas foi um célebre autor infantil quando eu era menino, principalmente em textos veiculados na revista Sesinho, editada pelo SESI. Ele usava o pseudônimo “Vovô Felício” para assinar seus contos curtos, muito divertidos, e suas obras paradidáticas. Seu personagem mais original era João Bolinha, um boneco cujo corpo e membros eram feitos de bolas articuladas umas às outras.



Lembro com clareza de dois livros infanto-juvenis seus que li e reli quando garoto: Lenda da Palmeira (1944), sobre a fundação de Belo Horizonte, e a biografia de Rui Barbosa, Rui (1949).



Vicente era o irmão mais novo de “Chiquitinha”, D. Francisca Guimarães Rosa, mãe do escritor. Um tio meio “primo”, porque era apenas dois anos mais velho do que o sobrinho, e os dois compartilharam leituras, brincadeiras e aventuras. Uma amizade que durou até a morte de Rosa em 1967.

Joãozito é menos uma biografia do que uma rememoração nostálgica, com a previsível exuberância de afetos e louvores. Um livro simpático, que vale menos pela análise do que pela profusão de pequenos detalhes e episódios esclarecedores de aspectos do escritor e da obra.

Torna-se meio datado e cansativo pelo fato de Vicente tentar emular a linguagem do sobrinho, num jogo meio brincalhão, meio hagiográfico: “E como é gostoso, agradável, escrever assim, laborando as frases, enfeitando-as com palavras vigorosas, lendo-as e relendo-as, riscando, corrigindo, transformando, realizando hipérbatos e sínquises para mais vivazear o texto ou ao lugar-comum fugir”.

Com a repetição de um número limitado de truques, o estilo acaba lembrando mais o Yoda de Star Wars do que Rosa: “Tudo que você fez em literatura, Joãozito, genial foi.



No livro de “Vovô Felício”, contudo, encontram-se fartas informações sobre a cidade de Cordisburgo, seu ambiente social, sua história política; sobre a família Guimarães; sobre os personagens pitorescos do lugar; sobre férias, fazendas, gado, boiadas, brinquedos, leituras.

Vicente esclarece pequenos detalhes da formação cultural do escritor:

Em março de 1917, chegou a Cordisburgo, como coadjutor, o Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano, holandês. (...) [Com ele, Joãozito] além de curiosidar o holandês, aperfeiçoou os estudos de francês. Foi Frei Canísio o seu professor e não o Frei Estêvão, como noticiaram em diversas biografias suas, publicadas em jornais e livros. Houve informação errada. (p. 29-30)

A boa memória de Vicente o faz evocar pequenas lembranças da meninice que depois Rosa iria reproduzir em seus livros.

Como esta cantiga, usada por ele em “A Hora e Vez de Augusto Matraga”:

Eu já vi um gato ler
e um grilo botar escola;
nas asas de uma ema
vi jogar jogo de bola.
Só me falta ver agora
cender vela sem pavio
sungar pra riba a água do rio,
dar louvores e macaco,
o Sol se tremer com frio
e a Lua tomar tabaco. (...)
(p. 78)

E este episódio de brabeza cômica, usado em “Corpo Fechado”. Um valentão está na bodega quando chega outro, olha-o de cima a baixo e diz ao caixeiro: “Você, rapaz, tem aí dessas facas que entram na barriga e murgueiam?” O outro engrossa o cangote e pergunta também ao rapaz: “Ei, moço! Você tem aí dessas balas mauser que batem na testa e chateiam?” (p. 80)

Aqui e acolá pequenas pistas vocabulares, como a existência de um tal Alferes Felão, sujeito de maus bofes lá de Cordisburgo, que acabou virando nome comum na prosa rosiana, no Grande Sertão: “Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de criaturas filhas-de-deus – felão de mau”.

Um detalhe que sempre me chama a atenção é o do gosto de Rosa pela literatura policial. Aqui e acolá em suas conversas ele cita o Mistério Magazine de Ellery Queen, uma leitura recorrente, que muito o elevou em meu conceito.

Diz Vicente que um dia, os dois já morando no Rio de Janeiro, Joãozito, que estudava para o exame no Itamaraty, ligou para o tio-amigo. Estava com a cabeça agoniada, estudando há mais de vinte horas seguidas, precisava conversar para não ficar doido. Vicente correu ao Hotel Fluminense, onde Joãozito se hospedava.

Eu morava no Andaraí. O bonde que passava por minha casa ia justo atravessar a Praça da República. Não me demorei.
Ao chegar no quarto do hotel, bati na porta. Escutei: “Entre”.
Encontrei meu sobrinho nu, deitado, coberto por um lençol, comendo ostras e na mão tendo um livro policial.
Admirei-me: “Então você me chama porque está cansado de estudar e eu o encontro lendo romance policial!”.
Explicou: “Só assim consegui desviar meu pensamento. O romance policial me distraiu. Recurso lembrado só depois de meu telefonema a você”.

Esse concurso para o Itamaraty, em que Rosa foi aprovado em segundo lugar, deu-se em 1934. Nada me impede de especular que ele poderia estar lendo algum volume da Coleção Amarela (Editora Globo, Porto Alegre), como Na Pista do Alfinete Novo de Edgar Wallace (um dos preferidos de Ariano Suassuna), que saiu em 1933.

Joãozito é assim, cheio de pistas para os futuros biógrafos, inclusive esta:

Estudioso, culto, competente, possuía memória invejável. No dia de sua posse na Academia Brasileira de Letras, almoçou, com sua mãe, em meu apartamento. Procurando obter minha opinião quanto à tonalidade de voz que devia manter ao microfone, reproduziu de cor, quase perfeita, a parte inicial de seu discurso, que gravamos, para que ele ouvisse e julgasse. Temos a fita. Lembrança preciosa. (p. 98)

“Temos a fita”!

Rosa era supersticiosíssimo, e sabe-se o quanto se cercava de rituais protetores. Temia a idade de 58 anos, porque (segundo Vicente) “de seus sete tios amigos, quatro morreram quando viviam os cinquenta e oito anos.”  Rosa morreu com cinquenta e nove.

Na parte final do livro vêm transcritas as cartas de João, muitas delas fornecendo opinião, crítica e conselho sobre os textos do tio. E ele nunca abre mão de seus princípios estéticos:

Nisso, aliás, como em tudo o mais, o que se passa aqui é mero reflexo do que vai pelos países cultos. A palavra de ordem é: construção, aprofundamento, elaboração cuidada e dolorosa da “matéria-prima” que a inspiração fornece, artesanato. (carta de 1947, p. 132)

É de se lamentar um pouco a diplomacia de Vicente Guimarães, omitindo, em sua transcrição das cartas, os nomes dos escritores contemporâneos que Rosa critica, confidencialmente:

Outros, são universalmente considerados como cretinos. Um exemplo: o nosso conterrâneo [.....], se bem que entendido um pouco de gramática e tendo jeito para folclorista, faz de palhaço, quando se mete a proferir sentenças sobre arte. (...) Exemplo: o meu amigo [.....], se bem que tendo, realmente, o “Fogo sagrado” e muita seiva rica, tomou um bonde errado; construiu sua obra baseando-a no tosco e no instintivo, e agora...  (p. 138-139)

Em outra carta transcrita no livro, para sua prima Lenice, do Curvelo, ele declara em 1966:

Posso dizer sinceramente que, de tudo o que escrevi, gosto mais é da estória do Miguilim (o título é “Campo Geral”), do livro Corpo de Baile. Por que? Porque ele é mais forte que o autor, sempre me emociona; eu choro, cada vez que a releio, mesmo para rever as provas tipográficas. Mas, o porquê, mesmo, a gente não sabe, são mistérios do mundo afetivo. (p. 173)

Joãozito é um livro precioso; puxando com pente-fino as adiposidades, os pastiches de estilo, as repetições, as compreensíveis hipérboles afetivas de quem rememora uma pessoa querida e importante, resta muita, muita coisa sobre o ambiente que formou a cabeça-miguilim do autor de “Campo Geral”.

Para quem quer ter uma idéia do ambiente histórico, social e familiar do autor, é leitura indispensável.











sexta-feira, 16 de novembro de 2018

4405) O Passageiro: Profissão, Repórter (16.11.2018)



Existe uma interessante filmografia do romance policial noir filmado por diretores europeus. Em geral, cineastas europeus filmando romances norte-americanos. O Passageiro (Profissão: Repórter) (1975) de Michelangelo Antonioni se baseia num conto de Mark Peploe, “Fatal Exit”, adaptado por ele mesmo.

Peploe seria autor, em seguida, dos roteiros de ótimos filmes como O Último Imperador e O Céu Que Nos Protege, de Bernardo Bertolucci.

É um romance policial noir porque traz algumas características essenciais desse gênero: vazio existencial, um indivíduo problemático vivendo uma situação limite, a presença do crime e da violência, uma situação de permanente fuga às cegas.

Por outro lado, não parece um romance noir autêntico por pelo menos duas oposições. A narrativa noir é geralmente um gênero noturno, e o filme de Antonioni tem 100% de cenas diurnas (só o último plano mostra o crepúsculo); e o noir é mais identificado com um ambiente opressivo/decadente urbano; e o filme transita do deserto africano para ambientes “turísticos” de Munique, Londres, Barcelona, etc.

David Locke (Jack Nicholson) é um jornalista britânico na África, cobrindo guerrilheiros rebeldes. Está de saco cheio da vida que leva. No hotelzinho africano remoto onde se hospedou, morre um inglês (Mr. Robertson) que parece muito com ele. Ninguém ali conhece nenhum dos dois. E Locke pensa: Que tal se eu trocar as fotos dos passaportes e assumir a identidade desse cara, deixando todo mundo pensar que eu morri?

A partir daí, o filme se transforma numa espécie de thriller hitchcockiano de perseguição. Ele não sabia que Robertson era traficante de armas para os guerrilheiros; e não podia prever que seu colega da BBC e sua esposa iriam perseguir “Robertson” pela Europa, para saber o que acontecera com “Locke”.

Chamar um filme assim de thriller é muito inadequado. Filme de Antonioni é sempre um frigorífico de emoções internalizadas, violência fora de quadro, poucos sobressaltos. Antonioni é o anti-Hitchcock. É também um anti-Highsmith, porque ninguém pode deixar de lembrar, vendo a primeira meia hora deste filme, de O Talentoso Mr. Ripley, em que um sujeito aproveita a morte de outro para assumir sua identidade.

Lembra também O Segundo Rosto (“Seconds”, 1966) de John Frankenheimer, uma FC sobre mudança de identidade. E o protagonista do romance O Bigode (“Le Moustache”, 1986) de Emmanuel Carrère, que ao raspar o bigode começa a se transformar em outra pessoa e acaba fugindo de Paris para Hong Kong.

Um dos grandes temas do século 20: uma pessoa que quer apagar o próprio passado e recomeçar do zero.

Antonioni fazia um cinema arquitetônico, onde tudo era concebido em termos de espaços e de deslocamentos de pessoas nesses espaços. Seus primeiros filmes têm uma superfície clássica e fria, de enquadramentos perfeitos mas pouco envolvimento emocional.

Isto se mantém na maior parte de O Passageiro. Aqui, no entanto, o trabalho de áudio é extraordinário. Ouve-se o que o personagem Locke está ouvindo, até as moscas do deserto. O envolvimento acústico compensa a frieza do exterior visual.

O filme começa entre as casas caiadas de branco do deserto do Chade, passa pela exuberância visual de Londres, Munique e Barcelona, e se encerra entre as casas caiadas de branco do interior da Espanha. As últimas cenas (o assassinato de Locke/Robertson) acontecem numa pousada modesta diante de uma praça de touros.

A cena mais famosa do filme, e uma das maiores do cinema de sua época, acontece no final: é o plano-sequência de cerca de sete minutos em que Locke deita na cama do quarto e a câmera começa um lento movimento na direção da janela aberta, passa por entre as grades e faz um giro de 180 graus mostrando a pousada, agora à distância. Durante esse movimento os assassinos chegam, entram no quarto e o abatem com um único tiro.

As câmeras 35mm da época eram pesadas, ruidosas, e a execução deste movimento requereu uma complicada engenharia. Durante aqueles minutos, o filme “abandona” o personagem à sua própria sorte, sai para a tarde ensolarada e mostra, à distância (do ponto de vista da Plaza de Toros), a chegada e a fuga dos assassinos, e depois a vinda das pessoas que descobrem o corpo. Tudo de forma distanciada, despojada, não-emotiva, com carimbo de Antonioni.



Outra cena, no entanto, é menos falada e me parece tão brilhante quanto essa. É o momento, aos 21 minutos de filme, quando Locke, tendo descoberto que Robertson morreu de parada cardíaca no quarto vizinho, começa a executar a troca de identidades.

Vemos Locke sem camisa, sentado à mesa, trocando as fotos no passaportes enquanto escuta (em seu gravador de repórter) uma conversa que gravou dias antes com Robertson. Ouvimos as falas dos dois (o que nos dá a informação clara da história pessoal de cada um, e de que tinham bebido juntos no hotel e se conhecido). Então a câmera mostra, sem corte, os dois conversando do lado de fora da janela.

É um flash-back sem que haja um corte entre a imagem do presente e a do passado. Um pouco ao estilo de Morangos Silvestres (1957) de Bergman, mas com uma realização mais complexa, e brilhante.

Jack Nicholson, um excelente ator mas cheio de cacoetes, tem aqui um dos seus melhores trabalhos. Contido por Antonioni, ele parece o tempo inteiro carregado de perplexidade e tensão, a ponto de explodir. Seu jogo de cena com Maria Schneider funciona porque vemos nele um homem que anda sobre um fio de navalha, e nela uma garota “moderna”, viajando sozinha por sua conta, e que se envolve na história dele meio por atração, meio por curiosidade.

Locke joga tudo em sua troca de identidade, e perde. Sua fuga é como a fuga do personagem do conto “Encontro em Samarra”, que julga estar fugindo da morte e na verdade está indo ao encontro dela.

Na reta final da fuga inútil, Locke conta para a garota a história do sujeito cego desde a infância que, depois de adulto, faz uma cirurgia e recupera a visão. Antes, ele atravessava as ruas com sua bengala, muito tranquilo. Depois, fica assustado ao ver todos aqueles carros na expectativa, prontos para avançar. E percebe (só então) que ninguém tinha lhe dito o quanto o mundo é feio.

A troca de identidades de Locke pode ter sido uma tentativa de ganhar um ponto de vista diferente sobre o mundo, mas não é o que acontece. Como tantos outros personagens do romance policial noir, ele parece condenado desde a primeira frase.

Revendo o filme agora em DVD, lembrei que quando o vi pela primeira vez, escrevi sobre ele no Diário da Borborema e citei esta estrofe da Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima:

Também há as naus que não chegam
mesmo sem ter naufragado:
não porque nunca tivessem
quem as guiasse no mar
ou não tivessem velame
ou leme ou âncora ou vento
ou porque se embebedassem
ou rotas se despregassem,
mas simplesmente porque
já estavam podres no tronco
da árvore de que as tiraram.
(VI, Canto V)







terça-feira, 13 de novembro de 2018

4404) A música e a reza (13.11.2018)



Vieram me perguntar por que eu passo tanto tempo ouvindo música. Não ouço muita música. Meus amigos ouvem mais do que eu. Muitos deles não pegam um metrô Carioca-Cinelândia sem plugar as oiças. Todo bar tem música, todo rádio e TV tem música. A próxima evolução será um chip estéreo incrustado juntos aos nossos martelos e labirintos, puxado a surdo de escola.

É porque eu ouço muitas vezes com uma certa concentração. Uma vez eu estava na sala de um casal de amigos e vieram me mostrar o disco novo não lembro de quem. Era no tempo do elepê, de modo que prestei atenção às três ou quatro músicas (era um disco instrumental) daquele lado. Aí quando foram mudar, minha amiga falou:

– Você ouve tão concentrado que parecia que tava rezando.

A maioria das pessoas não gosta de música, gosta de música-de-fundo, música que possa ficar em segundo plano. Elas acham que a vida vai bem, ou vai mal, mas em todo caso iria certamente melhor com uma trilha sonora ao fundo. Um mero acompanhamento.

A música é um refratador de emoções, pega aquele foco emocional da gente naquele instante e o dispersa com bons resultados, iluminando uma área mais ampla ao redor da memória.

Ouvir música é como ler poesia, ou rezar, ou estar pensando numa coisa decisiva que está para acontecer com dia e hora marcados. A pessoa se espalha pela própria vida afora, como tinta numa tela. Tudo que a gente já viveu (tudo não, claro) parece emergir, coisas sentidas, pensadas, visualizadas, coisas pedidas com fervor a um poço escuro e talvez vazio.

A música pode ser manipulativa. Basta ouvir um anúncio, ou ouvir a trilha de John Carpenter para seus thrillers de horror. Ela é um “indutor emocional”, conforme usada em muito cinema e muita TV por aí. Ela explica subliminarmente ao ouvinte como ele deve se sentir, como a dramaturgia precisa que ele se sinta. Na verdade, ordena que ele se sinta assim, e qualquer um acaba sentindo, até eu.

Esse doping musical é um pouco forçação de barra e um pouco consequência do vexame de quando a gente está finalizando uma cena e vê que ela está meio mequetrefe.  Não há suspense? Enfia um crescendo de orquestra de dentro do qual se eleva um rasgado dissonante, e basta um plano da porta para quem está no sofá presumir a vinda de Freddy Kruger.  É beijo? Violino.

Os violinos são como o molho vinagrete, sempre dão a impressão de estar melhorando aquilo que os recebe.  Não se pode negar a eficácia e a necessidade desses recursos, mas isso é apenas o lado adestrador da música, o seu lado pavloviano.

A música não é apenas para estender um tapete onde “outra coisa” vai desfilar. Lembro sempre a história do garotinho de cinco anos que viu o pai escutando a música na sala e perguntou “onde estava passando o filminho”. O guri achava que uma música sem imagem era algo amputado, faltando uma coisa.

Música é para ser ouvida a sós, à meia luz, com enorme silêncio, numa sala tranquila onde não vá entrar nenhum alarido de um momento para outro? Talvez, mas se só pudesse ser de mil outras formas também.

Vendo aqueles documentários sobre o jazz, aquelas décadas de quando ele brotou do dixieland e das orquestras de metais, a gente vê como era uma música dançante no começo. Foi se sofisticando ao longo do século e virando música mais para ouvir do que para dançar. Uma música que era para os negros dançarem virou música para os brancos escutarem. (Isso é o tipo da frase-de-efeito de cronista cuja simetria estrutural lhe dá mais credibilidade do que ela comporta.)

A música ideal talvez fosse aquela que pudesse (o mesmo som, o mesmo fonograma) botar para dançar num salão centenas de pessoas, e pudesse também ser fruída por uma só, a sós, à meia-luz, etc.












domingo, 11 de novembro de 2018

4403) Mandacaru Vermelho (11.11.2018)




O bom de certos trabalhos que a gente pega é que tudo é pretexto pra fazer pesquisa, que é um dos lazeres mais produtivos que a nossa espécie já inventou.

Fui checar algum detalhe de ficha técnica e achei no YouTube uma versão restaurada de Mandacaru Vermelho (1961), um longa de Nelson Pereira dos Santos que eu não lembrava de ter visto por inteiro. Não tinha, então vi agora. É considerado por meio mundo como um ensaio para Vidas Secas.

Nelson levou a equipe para Juazeiro da Bahia para filmar seu roteiro baseado em Graciliano, mas tinha chovido, o sertão estava verde, e mesmo o filme sendo em preto e branco o ambiente que ele precisava não estava existindo. Ele aproveitou e filmou essa espécie de faroeste caboclo.

Chamaram esse tipo de filme de “nordestern”, em alguma época, e o filme de Nelson, mesmo sem cangaceiros, tem uma linha direta com o cangaço, conforme tornado famoso pelo filme do paulista Lima Barreto, O Cangaceiro (1953). Sem falar que essa geração de Nelson, dos que estavam ma primeira década do ofício, tinham os faroestes P&B de John Ford como uma referência de respeito.

Tendo que improvisar um argumento novo em cima da perna, Nelson Pereira, na época com seus 33 anos, recorreu a um arquétipo antigo do cordel e do filme de cowboy, o Vaqueiro Que Róba A Filha Do Fazendeiro. É diferente de montecchios-e-capuletos. É o plebeu que invade com seus cromossomos bastardos um sangue-azul qualquer.

Com isso ele armou um desses tantos épicos de famílias-em-feudo, famílias donas de terras e sempre em guerra para defendê-las; histórias de que todo sertanejo sabe carradas de exemplos.

Quem lidera a caça ao casal fujão é uma matriarca seca, ríspida, engasturada, de revólver em punho. Ela é o fator de arrasto da narrativa, mais até do que o casal de apaixonados em fuga. Digamos que o casal de noivos puxa a narrativa; a matriarca a empurra, com vigor. Ao longo da caçada humana, há vários entreveros de soco, de tiros, de facão, há perseguições e emboscadas, há armadilhas (mas que qualquer um já prevê) e surpresas (que hoje não surpreendem mais).

Dizem que Nelson não gostava do filme, talvez por modéstia, porque pegou para si o papel do romeu. Algumas violências são um pouco chocantes hoje: algumas das mortes a sangue frio, por exemplo. No filme, são cenas brutais, mas vistas com certa indiferença pelo narrador. São partes de uma cena. É pêi, e bufo. Hoje, seriam exploradas ate o último pixel e o derradeiro segundo.

Há uma luta final de facão que resulta bem coreografada, um dever-de-casa que foi feito. Porque o cinema a essa altura tinha uma coreografia já catalogada de ataques, bloqueios de lâmina, jogos de pernas, ameaços e negaceios, estocadas fatais. Já em 1961 existia um acervo reconhecível de “passos” que qualquer comedor-de-castanha-confeitada de olhos grudados na tela já sabia reconhecer.

Um dos objetivos do clichê cinematográfico é dizer a uma faixa do público: fique à vontade, é aquilo que você já viu, você já sabe.

O faroeste americano criou toda essa coreografia de rifles por entre rochedos, ricochetes, infiltração por entre lajedos e caatinga, atiradores buscando uns aos outros, o retinir das balas na pedra. Lembro de Kazuo Ishiguro, comentando a diferença de enfoque da luta de espadachins:

Quando cheguei à Grã-Bretanha aos cinco anos uma das coisas que me chocavam na cultura ocidental eram as cenas de lutas de espadas em filmes como Zorro. O que eu conhecia era a tradição dos samurais, onde toda habilidade e experiência converge para um único instante que separa ao vencedor e o perdedor, a vida e a morte. Toda a tradição samurai é a respeito disso: desde os mangá até filmes de arte como os de Kurosawa. É parte da magia e da tensão de uma luta, no que me diz respeito. Mas então eu via pessoas como Basil Rathbone como o xerife de Nottingham e Errol Flynn como Robin Hood e eles tinham longas conversas enquanto batiam com as espadas uma na outra, e a mão que não estava segurando a espada fazia uma espécie de gestos vagos no ar, e a idéia parecia ser a de conduzir o adversário até a beira de um precipício enquanto o distraía com um longo diálogo expositivo a respeito do enredo do filme. (...) Nos filmes de samurai, os dois oponentes se encaram durante um longo tempo, então acontece uma violência com a rapidez do relâmpago, e acabou.”

Como é a luta final de facões em Mandacaru Vermelho? É de um laconismo oriental, pouquíssimas falas, uma exclamação qualquer e só. Nada daquelas teatralidades, tipo “pois é, Augusto, você não sabia o que estava fazendo ao praticar uma infâmia como a sua contra uma família como a nossa. Prepare sua alma, cabra da peste!”

Ou coisa parecida. Não, o filme é econômico em diálogos, e isso é bom, porque eles vêm com peso. É uma luta em silêncio, a gente não sabe o que o personagem está pensando.

Ao longo da narrativa, há reviravoltas na atitude e nos julgamentos dos personagens. É uma história de remorsos, ressentimentos, vinganças, traições, deslealdades. E tudo isso deflagrado pelo Vaqueiro.

Roubar a filha do fazendeiro é um pouco como “raptar uma condessa filha de um conde orgulhoso”. É o objetivo de todos os aventureiros do cordel e dos romances de capa e espada. Li em algum lugar que Nelson estava lendo várias coisas de Jorge Amado, durante essa estada na Bahia, então alguma coisa disso tudo deve vir refratada em alguma história do baiano.

O diálogo é enxuto, me parece verossímil nas possibilidades de um filme de então, sem aqueles nordestinismos obrigatórios, “oxente bichim”. Várias falas irônicas bem colocadas. Uma personagem como a matriarca da família ofendida (Jurema Penna) é das que só dizem uma coisa uma vez. É como uma Maria Moura, de Rachel de Queiroz, só que envelhecida no crime, ressecada de agonia e rancor. Não há muita oratória, há frases como facão afiado que passa e já tora.

Uma coisa que não encaixou muito, pelo meu gosto atual, foi a música de Remo Usai, o maestro que fez um milhão de trilhas para o cinema desse momento. Tem uma pegada nordestina, conforme a encomenda; mas é uma música executada por orquestra, e nem mesmo um triângulo a deixa menos radiofônica. Não parece uma música dali.

Vai ver que Glauber Rocha viu o filme de Nelson e talvez tenha anotado mentalmente: Nada de trilha sonora com orquestra carioca, tem que ser uma voz áspera e uma viola cortante, e veio Sérgio Ricardo. A música de Usai é uma bela ilustração pregada numa paisagem; a de Sérgio Ricardo parece que é aquela paisagem que está cantando. Um recado do morro. Qualquer morro.

Acho que quem escrever alguma história do nosso “nordestern” tem que dedicar um capítulo às cenas de lajedos, que estão para o gênero assim como os desfiladeiros estão para John Ford. O lajedo é ponto de encontro para grupos, de peroração para os beatos, de enfrentamento para duelistas. Seria interessante comparar as cenas-de-lajedo deste filme de Nelson com as de Deus e o Diabo na Terra do Sol, que foi feito logo depois.
  



quarta-feira, 7 de novembro de 2018

4402) Lembranças de Zé Limeira (7.11.2018)




De vez em quando eu digo a alguém que sou de Campina Grande e a pessoa diz: “Ah, então me fala alguma coisa sobre Zé Limeira... Ele era como?!”

Eu sou velho, mas pegue leve. Zé Limeira, de acordo com o indispensável Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, dos meus mestres e amigos Átila Almeida e José Alves Sobrinho, faleceu no já longínquo ano de 1955.

Quem sabe maiores detalhes sobre a vida real dele é o poeta Astier Basílio, que está preparando uma biografia de Orlando Tejo. Tejo foi “O Homem Que Viu Zé Limeira”, conforme o título do excelente documentário de Maurício Melo Júnior, que pode ser assistido aqui:

Limeira ficou conhecido como “o Poeta do Absurdo” por versos cheios de disparates impecavelmente rimados e metrificados como estes:

Eu me chamo Zé Limeira
de Lima Limão Limança;
a estrada de São Bento
bezerro de vaca mansa...
Valha-me Nossa Senhora,
tão bombardeando a França!

Eu já cantei no Recife
perto do Pronto Socorro:
ganhei duzentos mil-réis
comprei duzentos cachorro;
ano passado eu morri
mas esse ano eu não morro.

Eu só gosto dessa moça
porque tem vegetação,
porteira de pau-a-pique,
três pneus de caminhão,
peido de jumenta ruça...
e haja chuva no Sertão!

Eram versos que, nos meus 10, 11 anos, meu pai recitava para gargalhada geral nas noitadas boêmias do terraço da nossa casa no Alto Branco.

Orlando Tejo transformou Limeira em mito com seu livro Zé Limeira, Poeta do Absurdo (1973). É um livro irregular e brilhante, talvez o mais criativo já escrito sobre a poética dos cantadores. O “livro sobre cantadores” geralmente se desenvolve na chave do relato jornalístico e documental (registro de versos), com uma ou outra incursão descritiva do ambiente, ou rememoração lírica.

Tejo projetou nesse gênero tão severo uma dose inesperada de humor, doidice e inverossimilhança. E ao mesmo tempo uma dose de prosa de ficção, porque quando começa a contar um fato o homem se entusiasma, e a prosa se apossa dele e leva a história pra onde bem entende.

O capítulo 11 registra muitos versos e os encaixa num leve romancear que dá mais vida ao relato. Em muitos trechos de Tejo, a gente chega a se esquecer e a ler aquilo como um romance. Isso não ocorre nos relatos de cantoria. Nem mesmo dos que mais caprichavam na parte narrativa, como F. Coutinho Filho ou Leonardo Mota. Já Orlando Tejo, nesses trechos, se emparelha com Oliveira Paiva e sua descrição de festejos de fazenda, em Dona Guidinha do Poço.

O capítulo 13, “Pela última vez em Campina”, reconstitui uma longa cantoria entre Limeira e José Gonçalves, num cabaré da feira, num belo momento da prosa urbana. De fato, um leitor preguiçoso dos folcloristas tradicionais se espantaria com este parágrafo de Tejo, descrevendo o amanhecer do dia, quando os cantadores começam a se despedir:

A cidade despertava ao berro metálico das sirenes, o operariado – termostato da máquina do desenvolvimento – deslocando-se dos subúrbios para a faina do dia-a-dia, lotando os coletivos, apinhando as calçadas, chegando para as fábricas. Era o atendimento à voz das chaminés que na sua multiplicidade saturavam os céus da metrópole dos sertões nordestinos, turvando de progresso o alto da paisagem serrana.

Tejo retrata e recompõe a cantoria urbana com a mesma fluência com que resgata e reafirma o perfil da cantoria de sítio, a cantoria de vilarejo. Não sei se esse parque industrial todo já fazia parte da Campina Grande pré-1955, ou se isso já era o Tejo dos anos 1970 finalizando o livro e se entusiasmando ao teclado; pouco importa. A cantoria hoje é assim.

A parte com que eu implico no livro de Tejo é o capítulo 5, “O Poeta do Absurdo e o Absurdo dos Poetas”, quando ele começa a implicar com a poesia modernista em geral. Como poeta, Tejo era um híbrido de parnasiano e cordelista. Para improvisar um soneto bastava que lhe botassem lápis e papel na frente. Se fosse soneto de patifaria, melhor ainda.

Nessa parte do livro ele adota a tática de, para elogiar as doidices de Limeira, mostrar que os poetas ditos eruditos eram autores de disparates maiores do que os do cantador do Teixeira. E nessa varrida não escapam os surrealistas franceses nem os concretistas paulistanos. Tejo, com os bigodes eriçados de um polemista profissional, desce o chanfalho numa enorme lista de exemplos modernistas.

Zé Limeira não precisa ser comparado a nada disso. Tem sua receita personalíssima e ao mesmo tempo universal. Para imitá-lo basta ir um pouco nessa direção: a fluência na criação instantânea de neologismos, da colagem de elementos díspares, da justaposição do ilustre ao plebeu. A presteza e a articulação melódica do verso se sobrepondo a qualquer longínqua intenção de fazer sentido.

Limeira lembra alguma coisa de Marc Chagall, de Bispo do Rosário, de Gordurinha.

Me lembro de versos recitados por Dona Joana, uma mulher que ajudava minha mãe no trabalho doméstico e sabia muitos versos como este, que decorei:

Peguei na cobra jibóia
com dez dias de viagem;
pisei na ponta da vagem
tirei vinte e cinco jóia;
aonde chove e não móia
lá na várzea da agurita
onde os pombo canta e grita
dá volta no cotovelo:
quero um cacho de cabelo
da morena mais bonita.

Não sei o autor do verso, mas Limeira está todo aí. Tem a imagem visual marcante: o cara pisando a ponta do rabo de uma cobra de encontro ao chão, enquanto estica o corpo dela, abre-o (com uma faca?) e dali retira jóias como caroços de uma vagem. Tem a palavra absurda que pode ser corruptela e pode ser invenção (agurita). Tem uma Natureza surpreendente como a de um mundo de desenho animado (essa chuva, esses pombos). E tudo isso para glosar um mote bem lugar-comum, daqueles que geralmente só inspiram versos pedestres e sem imaginação.












domingo, 4 de novembro de 2018

4401) A escola Pulp Fiction (4.11.2018)



A gente fala dos gêneros literários usando uma espécie de jargão, mas esse jargão precisa ser aferido de vez em quando.

Pulp fiction é uma expressão que muita gente ainda associa apenas ao gênero policial, por causa do filme de Tarantino. Para um leitor de ficção científica é mais que óbvio que uma pulp fiction de FC existe, existiu; é inevitável.

Mais do que os gêneros, em si, há um aspecto da pulp fiction que eu acho importante, é o fato de ser em grande parte uma literatura feita de improviso. Não o improviso do repente musical ou poético, que se dá ao longo de segundos. Mas o improviso do romancista de folhetim do século 19, que toda semana tinha que entregar uma pilha de folhas manuscritas.

Não dava para ficar ajeitando, ficar corrigindo. O que era improvisado, ficava.

É um improviso parecido com os dos cordelistas nordestinos comentando fatos da guerra, da política ou dos esportes. Correndo atrás da notícia, uns. Correndo atrás de uma história para entregar no dia tal, para outros, e assim por diante.

No caso da pulp fiction, era um modo de produção profissional, americanamente metódico. Isaac Asimov orgulhava-se de escrever uma história inteira direto na máquina, sem rascunhos, criando à medida que datilografava, colocava “The End” no final, punha tudo num envelope e mandava para uma revista. “Só revisava,” disse ele a certa altura, “se todas as revistas conhecidas devolvessem aquela história. Só então compensava mexer nela.”

Tem alguns escritores da FC e do romance policial dos anos 1930-40-50 que são verdadeiras máquinas de escrever ambulantes, produzindo histórias em linha de montagem incessante, e de vez em quando acertando com uma história realmente bem bolada.

Max Brand, autor de tantos westerns, teria escrito publicado cerca de 45 milhões de palavras, segundo uma avaliação de Frank Gruber (em seu livro de memórias The Pulp Jungle, 1967). Quando ele concordou com esse cálculo, Gruber perguntou-lhe como conseguia. E ele:

– Você consegue escrever catorze páginas por dia?

Gruber diz que já tinha escrito muito mais do que aquilo, num dia só. Mas era só de vez em quando. E Max:

– Pois o x do problema é esse. Você tem que fazer catorze páginas todos os dias, sem exceção, não importa que dia seja. No fim de um ano inteiro, isso chegará perto de um milhão e meio de palavras.

(Os norte-americanos sempre comparam a extensão dos seus textos em termos de palavras, não de laudas ou páginas.  Isso já vem desde o tempo da máquina de escrever e do linotipo, não tem nada a ver com informática.)

Gruber, um escritor de thrillers competentes, diz a certa altura: “Em 1935 eu escrevi cinquenta e sete histórias e vendi cinquenta e cinco. Cerca de vinte das histórias tinham cinco mil palavras ou menos. As demais eram mais longas, de tal modo que a média de palavras entre elas era bem superior a cinco mil.”

Para ter uma idéia do que significam cinco mil palavras, pode-se comparar com este texto, que em sua última revisão está com [1.343] palavras no total.

Frank Gruber (1904-1969) publicou dezenas de títulos e foi uma das metralhadoras mais prolíficas de sua geração. Ele tem muitas séries policiais e de faroeste. A que mais li foi a dos livros sobre uma dupla de caras espertos que se metem em situações perigosas, Johnny Fletcher e Sam Cragg. Vários deles saíram pela Colecção Vampiro (Livros do Brasil, Lisboa).

Gruber diz em suas memórias:

Ao longo da minha vida profissional eu vendi umas quatrocentas histórias. A maior parte delas foi escrita entre os anos de 1934 e 1941. De 1941 em diante, escrevi apenas umas cinco ou seis histórias curtas, menores do que um romance.

Já publiquei cinquenta e três romances.

Eu preferiria ter que escrever vinte e quatro contos curtos do que escrever um romance – do ponto de vista da resistência física e mental necessárias para isso. Com uma história, você não está na companhia dela mais do que algumas horas, ou até minutos, até chegar ao fim da tarefa.

Um romance é um esforço interminável. Você pensa até cair exausto. Você escreve até estar a ponto de gritar. Você pára. Você descansa.  Mas você tem que voltar pra lá de novo. Tem que retomar os fios da narrativa, reacender o entusiasmo, recapturar o sentimento. (p.  176)

Mas Frank Gruber é um grão de areia a mais nessa praia infinita dos datilografadores compulsivos. Robert Silverberg (atualmente com 83 anos) conta um pouco dessa produção em série num ensaio (“Sounding Brass, Tinkling Cymbal”) incluído numa antologia importante, Hells Cartographers (ed. Brian Aldiss & Harry Harrison, 1975).

Diz Silverberg, referindo-se à sua fase inicial de contista precoce para os pulp magazines:

[Randall] Garrett me disse que os editores tinham mais probabilidade de comprar uma história do um autor com quem já tivessem batido algum papo do que de estranhos que faziam contato unicamente por via postal. E era verdade! Vendi cinco histórias em agosto de 1955, três em setembro, três em outubro, seis em novembro e nove em dezembro.

Algumas histórias vendem logo nas primeiras tentativas; outras percorrem às vezes o circuito completo de todas as possibilidades de publicação. Mas quando o escritor acerta a mão com o gosto, o repertório, as expectativas do público, as histórias começam a ser publicadas. Um ano depois da fase descrita acima, Silverberg já podia fazer uma contagem diferente:

Eu escrevia com espantosa rapidez, tendo vendido quinze histórias em junho de 1956, vinte no mês seguinte, catorze (inclusive uma serialização em três partes, escrita com Garrett, para publicar em Astounding SF), no mês seguinte.

“No fim de 1956,” avalia Silverberg, ou seja, quando ele contava 21 anos, “eu já contabilizava mais de um milhão de palavras publicadas.”  Antes dos 30 anos, já era um homem rico, e comprou a mansão onde tinha morado o prefeito de Nova York, Fiorello La Guardia.

Ambos os sistemas conseguem funcionar: a literatura pitoresca e rápida, e a literatura introspectiva e lenta.

Alguns escritores, hoje célebres, trabalharam na indústria, viveram de literatura, e têm alturas literárias impressionantes, lado a lado com páginas da mais pedestre pulp fiction. É o caso de Raymond Chandler, Philip K. Dick, H. G. Wells, Stephen King e tantos outros. O próprio Edgar Poe era isso.

O autor profissional sabe que se vender a história que acabou de finalizar poderá pagar um dos aluguéis atrasados, encher a geladeira de comida, e aguardar o próximo cheque caído do céu editorial.

Sabe que o combinado no contrato foi: “Entrega texto final dia 30”, e será entregue o texto final no dia 30, nem que a vaca tussa.

Quem escreve assim toma decisões dramatúrgicas rápidas, e paga para ver.

Um autor é grande pelas qualidades excepcionais que tem, não é porque “não tem defeitos”. Em outras palavras: o que o torna um grande escritor não é propriamente o que ele faz “correto”, é o que ele faz de novo, de diferente, de pessoal. Em diferentes planos da criação artística se distingue o criador que apenas executa com perfeição, mas pouco dá de si mesmo. E o criador que rompe fronteiras, desobedece códigos, comete uma porção de erros, produz obras meio falhadas, mas no meio disso tudo abre possibilidades de que as mentes mais certinhas jamais suspeitariam.

Seria interessante um laboratório no futuro onde inteligências artificiais “canalizassem’ em forma de software os cacoetes estilísticos e as ponderações filosóficas, biológicas e ideológicas do defunto autor. James Joyce ressurgiria para reler e discutir o Ulisses, Proust para terminar Em Busca do Tempo Perdido, Dickens para revelar o segredo de Edwin Drood, Guimarães Rosa para checar cada sinal gráfico do seu épico sertanejo.

Se uma Inteligência Artificial começar a produzir textos de ficção, como parece que já estão produzindo, é provável que produza um poema ou esquete vanguardista, algum desses estilos onde quem manda é o freguês, cada um interpreta como quiser. Duvido que o computador consiga produzir uma pulp fiction que se possa tomar como um capítulo perdido das Espadas de Lankhmar ou das aventuras do Sombra.












quinta-feira, 1 de novembro de 2018

4400) Ted Chiang e o capitalismo (1.11.2018)



Tenho uma birra com o Capitalismo, assim como certas pessoas têm birra com o inverno ou com o verão. Ou seja: como não posso fazer nada para mudá-lo, fico falando mal, pra liberar pressão.

Faço muitas críticas a esse sistema, mas me criei dentro dele e consigo viver assim, numa boa. Sou um subproduto dele. Mesmo sabendo que o Capitalismo, pelo menos em suas pulsações mais ousadas dos tempos mais recentes, está destruindo o mundo.

O capitalismo de livre mercado tem o lado bom da gente poder trocar de trabalho quando convém, poder fazer dois ou três trabalhos ao mesmo tempo, coisas totalmente diversas, ter sempre meia dúzia de alternativas de projetos ou de encomendas, discutir pagamento na base do cada-caso-é-um-caso.

Prefiro ganhar a vida assim, como faço há décadas, do que viver numa burocracia estatal. Passar quarenta anos na fila ascendente de promoção funcional dos assistentes-secretários de Medicina de Enredo na Secretaria de Dramaturgia do Ministério das Mensagens da República Popular da Ruritânia. Um regime político onde não há espaço para freelancers não me interessa.

Por falar em distopias e ficção científica, Ted Chiang é um dos contistas mais inventivos e rigorosos de sua geração, conhecido principalmente pelos contos reunidos no volume História da sua vida e outros contos (Intrínseca, 2016, trad. Edmundo Barreiros).

O conto-título foi filmado como A Chegada (Arrival, 2016) por Denis Villeneuve. Outros contos ganharam numerosos prêmios literários, entre eles o Hugo, o Nebula, o Locus e o Theodore Sturgeon Award.

Num pequeno ensaio encomendado pelo saite Buzzfeed, em dezembro de 2017, Ted Chiang comentou um debate abordado pelo mega-empresário Elon Musk, ao afirmar diante da National Governors Association que a inteligência artificial é um risco fundamental para a espécie humana.

Musk ilustrou isto com o exemplo de uma Inteligência Artificial que recebe instruções para colher morangos.

– Parece inofensivo, mas quando a I. A. começar a redesenhar a si mesma para se tornar mais eficiente, talvez ela conclua que a melhor maneira de cumprir totalmente sua missão seria destruir a civilização e converter toda a superfície da Terra em campos de morango.

Musk parece não se dar conta do caráter ominoso e eldritchiano que subitamente impregna a inocente canção dos Beatles, “Strawberry Fields Forever”. Mas decerto não era isso que Elon Musk tinha em mente. O que ele sugere é apenas que essa I. A., tentando executar uma tarefa aparentemente inócua, optou pela extinção da humanidade puramente como um efeito colateral não previsto.

Chiang escreve FC, mas na hora de interpretar o apocalipse espreitado ele não vem com reptilianos ou mutantes. A Inteligência Artificial (pensa ele) não será um robô mecânico meramente desregulado: será um composto de inteligência humanas, turbinadas por informática, tomando decisões que são inalcançáveis pela mente individual de cada um de nós. Chiang pergunta:

– Quem é que persegue os seus objetivos com um foco quase monomaníaco, cego às possíveis consequências? Quem é que adota uma abordagem de terra arrasada quando se trata de expandir sua fatia do mercado? Essa Inteligência hipotética que planta morangos faz apenas o que toda empresa startup no ramo da tecnologia gostaria de fazer: crescer a uma taxa exponencial e destruir todos os seus competidores até atingir o monopólio absoluto.

Como escritor e bom visualizador de futuros insólitos, Chiang vê um certo modelamento de modos locais de pensar durante a construção de todas as etapas que estão conduzindo à inteligência artificial.

– Quando o Vale de Silício tenta imaginar a superinteligência, o que acaba resultando disso é um capitalismo sem rédeas nem limites.

Chiang argumenta que uma característica essencial da inteligência deveria ser a metacognição, a capacidade de avaliar com clareza seu próprio comportamento. O ser humano é assim, muitos animais não o são. E esse tipo de insight, de auto-vislumbre, seria um bom teste ao qual submeter as superinteligências que estão por vir.

Chiang sabe que as guerras do futuro podem até ser atômicas, mas com certeza absoluta serão semióticas. Há uma guerra de sinais, de linguagens, de códigos.

– Já vivemos cercados por um tipo de máquina que demonstra uma ausência completa de insight: nós as chamamos de corporações. Corporações não são coisas autônomas, é claro, e os humanos que as põem em ação são presumivelmente capazes desse insight. Mas o uso dele não é recompensado pelo capitalismo. Pelo contrário: o capitalismo esforça-se para erodir nas pessoas essa capacidade, exigindo que elas substituam seu julgamento pessoal do que é “bom” por “o que quer que o mercado decida”.

Perguntaram a Chiang se não seríamos capazes de orientar essas Inteligências Artificiais a trabalhar em benefício do ser humano, obrigando seus parâmetros a servirem aos nossos. Ele ripostou: Como poderemos fazer isso, se o mais fácil não fizemos, que teria sido ensinar um senso de ética às corporações, garantir que o Facebook e a Amazon estivessem de fato voltados para o bem do público?

A Inteligência Artificial surgirá não como produto militar, mas como subproduto corporativo. Vai gerar a guerra sem quartel das corporações, no mercado financeiro, no do petróleo, no das armas, onde quer que haja um terreno a ser conquistado e um mercado a ser imposto.

Bilionários como Bill Gates e Elon Musk presumem que uma Inteligência Artificial super eficiente não se deteria diante de nada para alcançar seus objetivos, porque foi justamente essa a atitude que eles próprios assumiram.  

Diz ele: “claro que eles não viam nada de errado com essa estratégia, quando eram eles que a estavam pondo em prática; foi somente a possibilidade de alguém ser ainda mais capaz do que eles que começou a lhes causar preocupação.”

Antes que alguém comece a achar que os dois bilionários são comunistas, ou que Chiang o é, seria útil consultar uma porção de documentários contemporâneos que têm essa mesma posição cética diante da largueza ética de nossas corporações. The Corporation, onde as corporações são comparadas a sociopatas capazes de qualquer coisa para não terem sua vontade negada. Ou Salvando o Capitalismo (Netflix), onde um ex-conselheiro de Bill Clinton e Barack Obama sai pelo país conversando com eleitores ou partidários de Trump.

Todos concordam que as leis que regulam o capital nos EUA e no mundo estão gerando uma distorção absurda, insustentável. Não se trata de evitar que o Comunismo arrombe a janela e entre, e sim de evitar que o dono da casa a bote abaixo em busca de um tesouro que não existe.

A riqueza virtual de trilhões de dólares, pela qual as corporações ficam se batendo, parece com a fortuna imaginária de um doido de Guimarães Rosa, o “Coletor”, que faz uma aparição fugaz no conto “O Recado do Morro”. É um maluco inofensivo que costuma sair de cidade afora, riscando números em folhas de papel, no chão, nas árvores, por toda parte.  Gosta em particular do enorme muro branco da igreja, por ter muito mais espaço onde escrever:


“Ia alinhando números tão desacabados de compridos, que pessoa nenhuma não era capaz de tabuar: seus ouros, suas casas, suas terras, suas boiadas no invernar, sua cavalaria de ótimas eguadas, seus contos-de-réis em numerário, cada lançamento daqueles era feito uma correição de formiguinhas pretas enfileiradas.  Aquele homem tinha uma felicidade enorme.”




segunda-feira, 29 de outubro de 2018

4399) Mulheres por dentro e por fora (29.10.2018)




Tenho comentado aqui algumas sessões do Cineclube da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, onde estou exibindo e debatendo uma série de filmes sob a rubrica “Verdades e Mentiras do Cinema”. Já exibimos oito filmes em oito sábados, e dias atrás fizemos uma sessão do Jogo de Cena (2007) de Eduardo Coutinho.

O cinema de Coutinho demonstra um interesse muito grande pela pessoa humana, suas emoções básicas, suas alegrias, seus medos, seus acertos de conta com a vida.  Como entrevistador parece que tinha um ritual meio distante, que deixava o entrevistado já alerta. Mas depois o papo flui de maneira afável, porque ele não pressiona o entrevistado, ele vai dando pequenos toques.

No caso deste filme, são as entrevistadas. Para quem não assistiu: a produção botou um classificado nos jornais, um teste de atriz, para mulheres dispostas a contar suas histórias pessoais diante de uma câmara. Oitenta e três se apresentaram, vinte e três foram selecionadas e gravaram entrevista com Coutinho, no Teatro Glauce Rocha (Rio).

Coutinho tinha essa medula emotiva, demonstrando empatia, o que acabava provocando reações variadas dos entrevistados, sempre em benefício da conversa. No debate na “Darcy”, Sérgio Almeida, professor da escola, citou um texto de Coutinho a respeito do melodrama. Coutinho gostava de melodrama? Tinha uma certa aspereza na aparência que era logo desmentida quando se via um filme seu. Vê-se que para ele a emoção humana era uma coisa muito real, e eu acho que os entrevistados sentiam algo assim.

Mas ele tem também um interesse semiótico permanente, que é justamente o dessa quebra de barreiras, quebras de realidade. Porque alguns dos depoimentos das mulheres do filme, as entrevistadas, são parcialmente encenados por atrizes profissionais. Elas viram as gravações originais; depois, contaram ao seu modo a mesmíssima história, “entrevistadas” pela voz de Coutinho, na lateral.

Quando o filme corta do depoimento de uma mulher que nunca vi na vida para o depoimento de Andréa Beltrão, eu percebo que se trata da mesmíssima história, que agora é uma atriz que está contando, e vou em frente. Nesse momento a história se sobrepõe, pelo interesse que tem como história, como verdade emotiva humana, como melodrama.

Só que esse melodrama é relativizado por este truque reiterado, que acaba se tornando  gimmick central do filme. Mulheres desconhecidas / Atriz Fulana de Tal.

É uma coisa parecida (por mais peculiar que pareça essa comparação) com muitos livros de Philip K. Dick. Seus personagens são violentamente emotivos, seus casais são um inferno na Terra, os problemas profissionais e sentimentais deles são acachapantes, mas Dick mantém uma empatia permanente com seus personagens. Ele gosta da verdade emotiva humana. E a atenua com a imprevisibilidade de suas histórias, onde não se sabem que é o real e quem é o simulacro.

No filme de Coutinho, começa a ficar fácil dominar o simulacro e se concentrar apenas nas histórias. As histórias são interessantes pelo que de histórias contém. São histórias de mulheres sonhando, enfrentando dificuldades, tomando decisões, arcando com consequências, admitindo derrotas, agradecendo as vitórias. É a velha história: qualquer vida humana, bem narrada, daria um excelente romance.

O ping-pong entre real e simulacro começa a ficar mais confortável quando aparecem também Fernanda Torres e Marília Pera, duas outras atrizes de imagem já bem firmada junto ao público possível desse filme. A partir daí começa, pela minha impressão, a segunda “quebra” de realidade, quando as cenas se prolongam numa extensa ponteira do que poderia ser parte de um “making of” ou “por trás das câmaras”. O diretor e a entrevistada comentam o que foi dito, como a emoção se manifestou, etc.

Coutinho abre as comportas da emoção, pela intensidade com que as entrevistadas se manifestam com frequência, e depois segura e controla porque o espectador não caia na modorra intelectual. A primeira quebra de realidade (é uma mulher, agora é uma atriz conhecida, as duas “fazendo o mesmo papel”) tira um pouco aquela vertigem da verdade intensa. Coutinho trabalha com uma versão distanciada do melodrama.

Em função disto, me lembro de uma palestra do cineasta Edgar Navarro, num festival no Rio, ao falar sobre melodrama. O cinema de Edgar tem um lado de melodrama, mas tem vários outros (melodrama “cortado” pelo humor, p. ex.) e num artigo daquela época resumi assim a fala dele:

“A gente não deve temer o Melodrama nem evitá-lo,” disse Edgar. “Em vez de eliminá-lo, o jeito é assimilá-lo, absorvê-lo, mas mantendo-o sob controle pelo uso de coisas que são o contrário dele.

Primeira coisa: visão crítica. Usar o melodrama, mas em vez de nos sujeitarmos aos seus clichês e seus processos, mostrarmos que não somos escravos nem devedores dele.

Segunda coisa: humor impiedoso. O pior melodrama é o que se leva excessivamente a sério, e quando alternamos o Melodrama com humor mantemos alguns aspectos bons que ele tem mas eliminamos seus excessos.

Terceira coisa: distanciamento brechtiano. Usar os clichês como se os estivéssemos mostrando através de uma vidraça, de uma moldura, de uma visão indireta que está claramente ali, perceptível ao espectador. Aquela cena de Danuza Leão dançando nos corredores do palácio, em Terra em Transe, é melodrama puro, mas é um melodrama brechtiano pela forma como Glauber a filma.

E quarta coisa: narrativa fragmentada. O Melodrama depende muito do ritmo hipnótico das cenazinhas-com-começo-meio-e-fim, que anestesiam a atenção do público. Quando a gente fragmenta a narrativa, a cada corte inesperado o público tem um sobressalto e acorda”.



O filme de Coutinho se encaixa perfeitamente neste último caso, sendo que o “fragmentar a narrativa” a que Edgar se refere inclui o que eu chamo “quebra de realidade”.

A mesma quebra de realidade de alguns personagens de P. K. Dick, que saltam para diante e para trás no Tempo, e atravessam universos paralelos, mas os conflitos marido-esposa, pais-filhos, patrão-subalterno, são sempre os mesmos.

É o melodrama “cortado”, como na mistura de bebidas, pela lucidez. Pela atenção pra não se perder no ziguezague narrativo. Em Dick não se vê propriamente a fragmentação do discurso verbal imediato. Vê-se a fragmentação da realidade consensual proposta, ou sugerida, na parte inicial do livro. É o universo-acreditado que se fragmenta.

Os pequenos sustos conceituais de Jogo de Cena são o bastante para manter o público acordado e alerta até a última imagem, como num jogo de futebol onde até o último minuto tudo pode acontecer. E quando a gente vê duas mulheres desconhecidas dizendo a mesmíssima história, pensa logo que uma das duas é uma atriz, mas qual delas? Ou talvez as duas sejam atrizes e a história é inventada? O Brasil está cheio de grandes atrizes que eu não conheço, e eu considero isso uma ótima notícia.

Pra uma história, basta ser inventada para conquistar um certo grau de verdadeira.