sábado, 17 de fevereiro de 2018

4315) A arte da pontuação (17.2.2018)




Ninguém nos ensina isto na escola, de modo que é conveniente dizê-lo aqui: a pontuação de um texto é uma espécie de notação musical. Ela serve para nos indicar a melodiazinha que devemos imprimir a uma frase qualquer. Não é uma sinalização rígida, uniforme. Cada pessoa (cada “instrumentista da voz”) obedece do seu jeito, mas a intenção básica é uma só.

– Você vai ao cinema hoje?
– Você vai ao cinema hoje.
– Você vai ao cinema hoje?!

As melodias são diferentes, e cada uma delas impõe um sentido diferente.

Quando falamos, muitas vezes usamos uma inflexão de voz para impor uma interpretação ao que estamos dizendo. Digamos que queremos ironizar um termo qualquer; falando em voz alta dizemos, por exemplo:

– Hoje é sexta-feira à noite e meu pai ligou para casa dizendo que vai ficar “fazendo serão no escritório”...

As aspas aparecem aí para destacar o trecho que está sendo ironizado. O curioso é que linguagem falada e linguagem escrita se influenciam mutuamente, e de uns anos para cá se popularizou o gesto com os dedinhos indicador e médio de ambas as mãos erguidos no ar, mexendo-se, imitando visualmente as aspas, para destacar essa ironia.

As reticências servem, em sua origem, para indicar um pensamento que se interrompe no meio:

– Eu estava pensando em ir à praia hoje, mas...

Pelos caminhos tortos da retórica, acabaram servindo para indicar também um tom de voz um tanto queixoso, incerto, diferente da afirmativa pura e simples:

– Eu gostaria tanto de voltar a estudar...

É diferente de:

– Eu gostaria tanto de voltar a estudar!

A gente esquece às vezes a quantidade de usos que a pontuação simples pode ter. A pontuação pode ser muito expressiva quando a arrancamos das funções burocráticas de sempre. Por exemplo: ponto de interrogação indica que se está fazendo uma pergunta, e fim de papo. Mas pode ser usado também para reproduzir uma entonação de voz bem particular, como aqui:

Fulano percebeu que a porta do quarto da mãe estava apenas encostada. Não ouviu nenhum ruído lá de dentro. Receoso, aproximou-se, empurrou a porta de leve, e disse: – Mamãe?...

Não é uma pergunta propriamente dita, mas o tom de voz dessa cena só pode ser reproduzido através da interrogação.

O ponto parece um mero “encerrador de frases”, mas pode ser usado também como elemento expressivo. Vemos com muita frequência pessoas dando ênfase ao que falam através desse recurso:

Pessoal, por favor, não deixem de assistir “Caninos Rubros”. O. Melhor. Filme. De. Vampiro. Da. Década.

Uma das maiores dificuldades de quem estuda textos antigos é a ausência quase completa de pontuação. Documentos e textos, históricos e literários, da maior importância, são transcritos hoje com pontuação moderna, inexistente no original, para que a gente possa compreendê-los corretamente.

Na literatura, foi preciso muito tempo para surgir a pontuação com a riqueza de sinalizações que temos hoje. E nem tudo é universal. Nós brasileiros indicamos o diálogo com travessões; os norte-americanos indicam com aspas. Usamos itálicos ou negritos para indicar ênfase, ou, literariamente, para destacar um trecho do discurso que tem uma origem diferente do discurso principal.

Muitos leitores ainda têm dificuldade para sinalizar por conta própria um certo tipo de discurso livre que se impôs, pelo menos aqui no Brasil, ao longo da década de 1970:

Saí de rua afora, trânsito pesado, chuva forte vai cair, mas é isso mesmo, tou é puto, alguém vai me pagar, principalmente Seu Léo, muita cara de pau, chegar pra mim, é isso aí seu moleque, ou trabalha ou te meto pé na bunda, pé na bunda ele mete é na bunda da mãe dele, sou funcionário, não sou escravo, ele vai ver uma coisa, olá Roberto, boa tarde Dona Sandra, queria conversar com Seu Léo, ele está?

Essa narrativa livremente “virgulada” mistura, num mesmo plano, descrição de ambiente externo, lembranças do narrador, prefiguração de ações por parte do narrador, voz do narrador, vozes de outras pessoas... Tudo separado por vírgulas; fica para o leitor a tarefa de pegar cada segmento e ir pendurando no gancho mental correspondente.

Rubem Fonseca foi um dos grandes popularizadores deste estilo, que acho excelente, e só tem um grande defeito: as pessoas se acostumam a ler assim, escrever assim, e não sabem mais escrever sinalizando, não sabem usar maiúsculas, nem cortar parágrafo, nem pontuar. Virou um cobertor curto, cabeça coberta e pés de fora.

Um escritor como José Saramago criou para si umas poucas regras de pontuação pouco convencional. Essa pontuação é, pelos comentários que ouço, o principal obstáculo à sua leitura. Tem gente que simplesmente não consegue avançar, diante de uma sinalização como aquela.

Que nem é tão complicada assim. O problema é que nós, como leitores, já internalizamos essa sinalização. Não a vemos. Interpretamos subconscientemente o que nos é indicado através de vírgulas, dois-pontos, ponto-e-vírgula, travessão... Quando o autor resolve mexer nisso, nos faz tropeçar a cada frase, ressetar os critérios constantemente. Tem leitor que refuga. É como dirigir num carro em que as marchas foram trocadas de posição.








quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

4314) Contracapa de Linux (14.2.2018)




(foto: Katinka Matson)

liberdade individual, só a do eremita na gruta; toda liberdade é um equilíbrio entre possibilidades e limitações dentro de um coletivo 

&  a vida é um plano-sequência sem roteiro e sem ensaio 

&  bem q o Brasil podia se despedir com uma nota oficial, dizendo q aprendeu muito com a Democracia, mas q está na hora de encarar novos desafios 

&  hoje em dia todo mundo é culpado a menos que um escritório de advocacia prove o contrário a peso de ouro 

&  certas pessoas já saem à rua com a prática bem planejada, e para elas qualquer teoria serve 

&  a vida ensina a dirigir o carro, mas mexer no motor a gente aprende sozinho 

&  muita gente pensa que a Realidade é governada por alguma coisa parecida com o Sistema Métrico Decimal 

&  existem 3 tipos de políticos: 1) os que vão com muita sede ao pote; 2) os que derramam a água; e 3) os que derrubam o pote 

&  basta que a gente aceite a existência do Absurdo e tudo o mais começa a fazer sentido 

&  protestar nas redes sociais requer o tempo e o esforço de um passeio de escada rolante 

&  eu não sei o que é pior, se é estar andando pra trás e olhando pra frente, ou andando pra frente e olhando pra trás 

&  pensando bem, o milagre não é que a lagarta se transforme em borboleta, é que ela não vire lagarta de novo na manhã seguinte 

&  se alguém naquela época tivesse chegado pra mim com um Deus não-onipotente, não-onisciente e não-onipresente, eu tinha acreditado na hora 

&  eu não gosto quando durmo seis horas consecutivas, sem acordar, porque quando acordo estou me sentindo outra pessoa 

&  tem quem goste de se refestelar no próprio sofrimento, porque só a tragédia sofrida lhe dá uma chance de bancar o herói diante de si mesmo 

&  a grande maioria se contenta com seis dias de Básico Garantido e uma transgressãozinha por semana 

&  uma ditadura é mais parecida com o passado histórico do seu próprio país do que com o sistema político-econômico que alega defender 

&  não existe mais o Belo e o Sublime, a arte hoje só tem o Bélico e o Subliminar 

&  é melhor ter um poema escrito na porta de uma privada do que estátua em praça pública 

&  a direita fica só dando os motes que quer e a esquerda glosando 

&  o Brasil vai ficar igual àquele Hotel 5 Estrelas que cobra 15 paus num guaraná e não dá nem sabonetinho 

&  certos conflitos de egos não passam da Peleja do Gnomo de Jardim com o Pinguim de Geladeira 

&  uma das piores consequências da Passeata Contra A Guitarra Elétrica foi dar origem às Passeatas A Favor Da Guitarra Elétrica 

&  vivemos num mundo que só é possível explicar usando clichês 

&  o que me consola é viver numa bolha maior que a bolha do meu vizinho

&  a arte é a bola que atravessa a rua quicando, o artista é a criança que vem correndo atrás dela

&  botar num pitbull o nome de Coisinha Tão Bonitinha Do Pai não vai ajudar a resolver problema nenhum

&  nada é tão previsível quanto certas surpresas

&  é triste constatar que por mais que a gente estude as outras pessoas insistem em pensar por si mesmas

&  quando tenho tempo não tenho dinheiro, quando tenho dinheiro não tenho saúde, quando tenho saúde não tenho tempo

&  ele é o tipo do cara que desmoraliza um velório com uma piada

&  o mundo é um quebra-cabeças, a vida um quebra-corações

&  eu sou do tipo que dou um boi para não entrar numa briga, mas se entrar dou uma boiada para o juiz

&  percevejo é um bicho tão pequeno que eu nem percebo nem vejo

&  chega uma hora em que a gente desiste de fazer contas e começa a fazer de conta

&  o Facebook é um Jardim Zoológico de peculiaridades mentais que se querem auto-expor

&  um dia em ainda vou morar numa casa que tenha uma escada rolante, uma sorveteria, e um rio só meu

&  o músico é uma espécie de abelha atarefada adoçando o lazer dos outros

&  minha ruindade é como unha de gato, só aparece quando é preciso

&  há momentos em que é preciso redescobrir o óbvio no matagal das sutilezas







domingo, 11 de fevereiro de 2018

4313) Como começar uma história (11.2.2018)




Existem mil regras para começar uma história. Cormac MacCarthy dizia que nunca se deve começar um livro descrevendo o clima que faz. Certamente para fugir àquele clichê mais que famoso de Edward Bulwer-Lytton: “Era uma noite escura e tempestuosa...”.

Melhor do que inventar fórmulas (e do que segui-las) é escolher começos que nos parecem bons e fazer aquela pergunta crucial: Por que isto é bom?

Digressão: sempre que faço oficinas, aconselho aos participantes que interrompam uma leitura sempre que gostarem ou não gostarem de algo. E que se perguntem: “Por que isto é bom? O que o torna ‘algo bem escrito’? E se me pareceu mal escrito, por que foi?”  Fazer essas perguntas nos ajuda a entender os efeitos produzidos em nós pela escrita alheia. Em geral, a gente gosta mas não pára pra pensar, e acaba sem saber por que gostou.

O conselho mais universal sobre o começo de uma história, seja conto ou romance, é a teoria do “gancho” (“hook”): algo que agarra a atenção do leitor e não permite que ele afaste os olhos da página daí em diante.

O começo de uma história, segundo essa teoria, tem que ser o que em certa época a gente chamava de “começo Mike Tyson”, ou seja, desde a primeira palavra o texto tinha que partir para cima do leitor como o feroz Tyson partia, ao soar do gongo, pra cima dos seus adversários: batendo sem parar, sem lhes dar tempo para respirar sequer.

A literatura Romântica do século 19, principalmente aquela voltada para o Fantástico, era mestra nesses começos “de arregalar os olhos”.

É verdade! Sou nervoso, muito, terrivelmente nervoso; sempre fui e sou-o ainda. Mas por que me chamam vocês de louco? A doença aguçou os meus sentidos, ao invés de destruí-los, de amortecê-los. Acima de tudo, era o meu sentido da audição o mais agudo de todos. Eu escutava todas as coisas que havia entre o céu e a terra. Escutava muitas coisas no inferno. E como, então, estarei eu louco? Esperem! E observem com que saúde mental, com que tranquilidade, eu lhes contarei minha história por inteiro.
(Edgar Allan Poe, “O Coração Revelador”, 1843, trad. minha)

Meu Deus! Meu Deus! Finalmente vou escrever o que me aconteceu! Conseguirei fazê-lo? Atrever-me-ei? É coisa tão estranha, tão inexplicável, tão incompreensível, tão louca!
(Guy de Maupassant, “Quem sabe?”, 1890, trad. Ondina Ferreira)

Aberturas assim contrastavam com os começos bucólicos das histórias rurais e os começos burocráticos dos contos urbanos. Arrebatavam o leitor numa montanha-russa de efeitos. Era o Romantismo reagindo à austeridade racional do Realismo, e abrindo o caminho para uma literatura do subjetivo que viria a ser chamada de Expressionismo, cem anos depois, e já num outro tom de voz.

Criar um mistério logo no primeiro parágrafo, contudo, é uma técnica que os seguidores de Poe e Maupassant não menosprezaram. Um deles era H. P. Lovecraft, no qual já vemos uma certa contenção descritiva, mas buscando o mesmo efeito:

Eu repito, cavalheiros, sua inquisição é infrutífera. Detenham-me aqui para sempre se quiserem, confinem-me ou me executem, se precisam de uma vítima para apaziguar a ilusão que chamam de justiça; mas eu não posso dizer nada além do que já disse. Tudo o que consigo lembrar eu já lhes contei com perfeita sinceridade. Nada foi distorcido ou ocultado, e se algo permanece vago é por causa das nuvens escuras que cobriram minha mente – dessas nuvens e da natureza nebulosa dos horrores que as atraíram sobre mim.
(H. P. Lovecraft, “O depoimento de Randolph Carter”, 1919, trad. Francisco Inocêncio)

O “gesto narrativo” é o mesmo, o gesto de agarrar o leitor como o Velho Marinheiro do poema famoso de Coleridge agarrava um transeunte, em desespero, precisando a todo custo despejar sobre alguém a história que o atormentava.

William Sloane (1906-1974) foi um obscuro professor e editor literário que nos anos 1930 produziu dois notáveis romances de terror, muito elogiados por Stephen King na introdução à edição conjunta dos dois, The Rim of Morning (New York Review Books, 2015).

Sobre o primeiro deles, To Walk the Night (1937) já escrevi aqui:


O segundo, The Edge of Running Water (1939), começa com um parágrafo que traduzo abaixo.

O homem para quem está história é narrada pode estar ou não estar vivo. Se está, não sei o seu nome, nem onde mora, nem coisa alguma a seu respeito, exceto que existe algo que é vital para mim e que preciso contar-lhe. É um método de comunicação estranho e desajeitado, este expediente de escrever um livro inteiro sem ter sequer a segurança de que ele chegará às suas mãos, e no entanto não sei de outra maneira de preveni-lo. Acho que existe uma chance razoável de dar certo. Algum dia, talvez numa livraria, talvez numa biblioteca, ele pode encontrar um exemplar desta narrativa. Ou alguém que ele conhece a mencionará distraidamente e ele se sentirá induzido a procurar e ler este livro. As pessoas sempre dão um jeito de ter acesso a coisas que são de suprema importância para sua vida e seu trabalho. O que me perturba não é a possibilidade de que ele nunca encontre esta mensagem, mas a de que o faça quando já for tarde demais.

Este é um típico começo criador de suspense sem nada revelar sobre o enredo: ele trata da importância do enredo para alguém. A história precisa ser lida por alguém que o autor desconhece. Por que? Que mensagem tão importante é esta?

Por outro lado, o autor controla essa tensão melodramática usando distanciamento. Não há súplicas, gritaria, pontos de exclamação. Ele fala com calma da importância da mensagem, sugere hipóteses, divaga um pouco sobre as circunstâncias em que o livro pode ser lido... E no final volta a aumentar a tensão ao usar esta velha e infalível fórmula verbal: a expressão “antes que seja tarde demais”.

Há outras maneiras de criar um mistério na abertura do livro. Uma delas é narrar um fato espantoso, e depois retroagir no tempo, levando o leitor junto consigo, e mostrar como foi que aquilo aconteceu.

Um exemplo clássico disto é a abertura famosa de A Judgement in Stone (1977; no Brasil, Um assassino entre nós), de Ruth Rendell:

Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever.

Na primeira frase a autora descreve o episódio final e clímax do romance, no maior exemplo de “auto-spoiler” que alguém pode imaginar. Ela troca a surpresa pelo mistério, no entanto, porque a partir desta frase inicial o leitor passa a perguntar: Como é que uma coisa tão absurda pode acontecer? E o livro responde.

São “iscas” muito mais sutis e que para mim funcionam muito melhor do que os começos delirantes (mas datados – até que alguém me prove o contrário) dos antigos mestres.







quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

4312) O Feiticeiro de Terramar (7.2.2018)



Ursula Le Guin faleceu alguns dias atrás, aos 88 anos. Por sincronicidade, eu estava em plena leitura da trilogia inicial do seu ciclo sobre o Arquipélago de Terramar (“Earthsea”), ciclo do qual eu só conhecia algumas histórias mais recentes.

Le Guin era uma dama de calma sabedoria e inexcedível elegância, mas ela própria não estava (nem precisava estar) acima de certos ciúmes e certas rivalidades literárias. Quando alguém se referia ao ciclo de Harry Potter e Hogwarts, ela dava um muxoxo e dizia: “Bem que aquela moça poderia ter dito de quem pegou a idéia de uma Escola para Magos”.

A idéia, claro, é a que ela criou (com grande impacto junto à crítica e aos leitores) nos três primeiros volumes de sua série: A Wizard of Earthsea (1968), The Tombs of Atuan (1971) e The Farthest Shore (1972). A Ilha de Roke, governada pelos Nove Mestres da magia.

Os três romances foram escritos para o público juvenil, mas pertencem àquela faixa que qualquer leitor adulto pode ler com prazer e proveito. Uma prosa límpida, rica, encantatória. São três histórias com protagonistas adolescentes.

No primeiro livro, o garoto Ged, ou “Sparrowhawk” demonstra talento para a magia e é encaminhado para a Escola dos Magos, na ilha de Roke. Ali ele acaba liberando, por imprudência e hubris, uma força sobrenatural que lhe caberá enfrentar e dominar no desfecho.

No segundo, Arha é uma menina sacerdotisa de um culto antiquíssimo na ilha de Atuan, numa ordem composta apenas por mulheres e eunucos. Uma de suas atribuições é ser capaz de se orientar, na treva total, no interior do enorme labirinto subterrâneo que existe por baixo do templo – e onde um dia, inesperadamente, ela descobre a presença de um ladrão que desperta sua ira e depois sua curiosidade.

No terceiro livro, um jovem príncipe é enviado para a ilha de Roke para se queixar aos Nove Mestres de que a magia, a cultura e a memória estão desaparecendo em muitas ilhas do Arquipélago. E cabe-lhe acompanhar o Arqui-Mago na caçada ao inimigo invisível que está apagando a memória cultural de Terramar.

A série está sendo publicada no Brasil pela Editora Arqueiro (SP), que já lançou os dois primeiros volumes, com tradução de Ana Resende.

Ursula Le Guin pertence à escola dos autores de Fantasia para quem a magia não é um simples “abracadabra” capaz de produzir qualquer resultado. Ela trabalha na linha da hard fantasy: a magia precisa ter regras, ter limitações, ter uma economia interna tal como tem a Ciência, onde nada pode ser feito “de graça”.

Criar um efeito mágico produz um desgaste na energia do mago. Ele pode criar um vento artificial para soprar a vela do seu barco e navegar com mais rapidez, ou pode evitar que um prédio desmorone sobre sua cabeça durante um terremoto; mas com isso gasta uma espécie de combustível, não pode manter esse esforço indefinidamente. Não existe almoço grátis no mundo da magia.

A magia no Arquipélago de Terramar (tal como o futuro no mundo cyberpunk!) também não está distribuída por igual.

Os Poderes Antigos não conseguem cruzar o mar, e cada um deles está preso a uma ilha, a um certo local, a uma caverna ou a uma nascente de água. (Wizard, cap. 7; estas traduções são minhas)

“Há encantamentos eficazes que eu aprendi em Roke mas que não funcionam aqui, ou funcionam desordenadamente. E também há encantamentos daqui que nunca estudei em Roke. Cada terra tem seus próprios poderes, e quanto mais a gente se afasta do centro do arquipélago menos é capaz de prever essas forças e o modo de controlá-las.” (Wizard, cap. 9)

É uma magia que extrai seu poder do verdadeiro nome de todas as coisas e todos os seres, nome que só os magos são capazes de descobrir e controlar. Controlar o nome das coisas é controlar as coisas do mundo.

Saber os nomes é o meu trabalho. A minha arte. Para produzir a mágica de alguma coisa, é preciso descobrir seu verdadeiro nome. Na terra onde eu vivo, mantemos nossos verdadeiros nomes escondidos durante a vida inteira, diante de todos a não ser aqueles em quem temos total confiança. Porque num nome existe grande poder, e grande perigo. Huve uma época, no princípio dos tempos, quando Segoy fez as ilhas de Terramar se erguerem das profundezas do oceano, em que todas as coisas portavam seus verdadeiros nomes. E todo o ofício da magia, da feitiçaria, se baseia em reaprender, em lembrar, essa antiga e verdadeira linguagem do Fazer. Há encantamentos a serem aprendidos, claro, modo de usar as palavras; e o mago deve saber também quais são as consequências. Mas o que um mago leva a vida inteira fazendo é descobrir quais os nomes verdadeiros das coisas, e como usar os nomes dessas coisas.” (Atuan, cap. 9)



Outra presença forte na trilogia é a dos dragões, que em Le Guin não são meros monstros: são criaturas antiquíssimas, dotadas de pensamento, linguagem e recursos mágicos próprios. Como se fossem velhos feiticeiros metamorfoseados em serpentes de fogo.

Dizia Ursula que as pessoas que não acreditam em dragões acabam sendo devoradas por eles, só que de dentro para fora. Seus dragões são ferozes e indecifráveis; ora amistosos, ora predadores. Nem todos os Magos são capazes de dialogar com eles; os que o conseguem são chamados de Dragonlords.

Quando o sol começou a brilhar sobre a neblina do Leste, as minúsculas partículas douradas que Arren tinha visto à distância pareceram cintilar, como ouro em pó arremessado sobre as águas, ou grãos de poeira num facho de luz do sol. E então Arren percebeu que eram dragões.
O barco chegou mais perto das ilhas e Arren viu que os dragões flutuavam no ar e descreviam círculos no vento matinal, e seu coração saltou junto com eles com alegria, com uma alegria cuja plenitude chegava a doer. Todo a glória da mortalidade estava naquele voo. A beleza dos dragões era feita de uma força terrível, com uma selvageria sem limites e a dádiva da razão, porque eles eram criaturas pensantes, eram dotados da fala, e de uma sabedoria ancestral: nos padrões do seu voo havia uma sincronização deliberada e feroz.
Arren ficou em silêncio, mas pensou: “Eu não ligo mais para o que acontecer de agora em diante: eu vi o voo dos dragões no vento da aurora.”
(Farthest Shore, cap. 10)

Num ótimo artigo sobre o ciclo de Terramar, David Mitchell (o autor de Cloud Atlas) lembra que num romance de fantasia heróica, como são estes de Ursula Le Guin, o mais difícil é equilibrar o estilo literário e a voz narrativa. “Escrever fantasia de qualidade,” diz ele, “é muito difícil, porque é um terreno saturado de clichês verbais.” É preciso evitar no leitor a sensação de estar preso dentro de um parque temático, e por outro lado evitar uma linguagem tipicamente contemporânea. Uma história de fantasia pode vir abaixo por inteiro se um personagem disser algo como “maneiro demais!”. 









sábado, 3 de fevereiro de 2018

4311) Sagarana: "Conversa de Bois" (3.2.2018)




(ilustração: yrodar.wordpress.com)

O penúltimo conto de Sagarana (1946) é uma experiência mediúnico-telepática em que Guimarães Rosa imagina o que se passa na cabeça das quatro juntas de um carro-de-bois, enquanto conduzem uma carga heterogênea que inclui rapaduras e um defunto.

O defunto é o pai de Tiãozinho, o garoto que munido de vara segue adiante do carro, servindo-lhe de guia. O velho era entrevado e mudo. Morreu na véspera, e está sendo conduzido para sepultamento, aproveitando que a carga de rapaduras já estava embalada e com transporte marcado para aquela data.  Cabe assim a um menino de 10 anos servir como uma espécie de Caronte para o transporte dos restos do próprio pai.

Mais propriamente, o Caronte não é o menino, e sim o carreiro adulto que toca o transporte: Agenor Soronho, sujeito de maus bofes, detestado pelos bois e pelo garoto, um oportunista que se aproveitou da doença do velho para se achegar à esposa ainda jovem, sujeita a “dengos”, e tornar-se praticamente dono da casa e padrasto de Tiãozinho.

E enquanto isto, os bois vão conversando. Essa projeção antropomórfica não é novidade em Rosa, que já havia dado umas triscadas nela desde “O Burrinho Pedrês”. Como observou Álvaro Lins quando do lançamento da obra:

Os animais dessas admiráveis histórias de Sagarana, os bois como o burrinho pedrês, agem, pensam e falam, não como os homens na maneira das fábulas e histórias da carochinha, mas como podemos imaginar, com o recurso da intuição, que eles o fariam se realmente pensassem e agissem racionalmente. Era como se o autor se transportasse para dentro dos bichos, e não para lhes transmitir a sua própria personalidade, mas para interpretar e exprimir a imaginada vida interior deles.
(Correio da Manhã, 12.4.1946)

Um tipo de projeção que Rosa viria a aperfeiçoar em “Meu tio, o Iauaretê” (1961).

A distinção feita por Álvaro Lins se justifica em face do próprio parágrafo inicial de “Conversa de Bois”:

Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carôchas. Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali e em toda a parte, poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?!

A “comprovação” alegada por ele é de ordem puramente mítico-literária. “Conversa de Bois” é, como “Corpo Fechado” (que o antecede) uma história típica de Rosa-o-doutor-da-cidade-colhendo-anedotas-junto-aos-capiaus. Porque ele (o onipresente Narrador) alega estar ouvindo essa peripécia toda de um conhecido Manuel Timborna, capiau local, que lhe diz:

– (...) Boi fala o tempo todo. Eu posso até contar um caso acontecido que se deu.
– Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco...
– Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja.

E a partir daí ficamos sabendo que o “exemplo” a ser narrado por Timborna não foi presenciado por ele, e sim por uma irara, bichinho esperto que se homiziou no matagal à aproximação do carro-de-bois, passou a segui-lo, viu o episódio inteiro, e depois, tendo sido apanhada por Timborna, “só pôde recobrar a liberdade a troco da minuciosa narração”.

Ou seja: os bois conversaram, a irara viu tudo, contou a Manuel Timborna, e este repassou o conto ao Narrador, com liberdade de recontação. Uma cadeia de narradores não-confiáveis que lembra as oito versões sucessivas do “Recado do Morro” (1956).

Numa entrevista a Ascendino Leite, Rosa confessou que essa irara, a quem ele dá o nome de Risoleta, ele a conheceu “...aqui no Rio, no Jardim Zoológico velho, em Vila Isabel. Um amor de criaturinha!”  (Ascendino Leite entrevista Guimarães Rosa, org. Sônia Maria van Dijck Lima, Ed. Universitária da UFPB, João Pessoa, 1997).

É portanto da irara Risoleta a responsabilidade pela narrativa da viagem e, indiretamente, a percepção da ligação telepática das quatro juntas de bois com o menino Tiãozinho, que ao longo do trajeto vê crescer sua repulsa pelo padrasto Agenor Soronho, chamado pelos bois “o-homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta” (o aguilhão).

Os bois (Buscapé e Namorado; Capitão e Brabagato; Dansador e Brilhante; Realejo e Canindé) conversam, queixam-se da vida, queixam-se dos homens:

O homem é um bicho esmochado, que não devia haver. Nem convém espiar muito para o homem. É o único vulto que faz ficar zonzo, de se olhar muito. É comprido demais, para cima, e não cabe todo de uma vez, dentro dos olhos da gente. (...) Perto do homem, só tem confusão! (...) [O] homem pode se ajuntar com as coisas, se encostar nelas, crescer, mudar de forma e de jeito... O homem tem partes mágicas... São as mãos... Eu sei...

Meditações que pelo menos a mim fazem lembrar o poema famoso (e posterior) de Carlos Drummond:

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. (...)
(“Um boi vê os homens”, Claro Enigma, 1951)

De onde vem essa capacidade pensadora dos bois? Eles todos comentam, de vez em quando: “Não podemos mais deixar de pensar como o homem... Estamos todos pensando como o homem pensa...”


(ilustração: Poty)

Rosa não fala de origens, mas nos dá um exemplo de personagem mítico: o boi Rodapião, que de repente é evocado pela memória de Brilhante.

O boi Rodapião é uma espécie de Prometeu bovino, um herói que de algum modo trouxe dos homens para os bois o “fogo” do pensamento. Rodapião tinha passado tempo demais junto dos homens e isso lhe despertou uma consciência parcialmente humana: “olhava e olhava, sem sossego”.

E argumentava coisas que deixavam os outros bois atarantados:

Cada dia o boi Rodapião falava uma coisa mais difícil p’ra nós bois. Deste jeito: – Todo boi é bicho. Nós todos somos bois. Então, nós todos somos bichos!

Como o macaco que toca o monolito em 2001, uma Odisséia no Espaço, Rodapião é o Portador da Centelha, e começa a dar instruções (muito divertidas) aos demais, sobre maneiras mais práticas de comer e beber, ou sobre pequenas malícias e jogos-de-cintura para extrair dos humanos um tratamento mais cinco-estrelas.

Até que a hubris vitima Rodapião. Ele tenta escalar um barranco alto em busca de melhor comida, não consegue convencer os demais, vai sozinho, e de repente (lembra Brilhante):

Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e chão solto... Bateu aqui em baixo e berrou triste, porque não pôde mais se levantar do lugar das suas costas...

O herói é vitimado pela sede de saber, mas deixa a herança nos boizinhos comuns.

Ao episódio rememorado da morte de Rodapião sucede imediatamente, no conto, o encontro de um carro-de-boi também vitimado numa subida, o carro de João Bala, todo escangalhado, junto do qual Agenor e Tiãozinho se detêm. Bois e homens estão sujeitos a tais desastres, quando não pensam direito. João Bala narra o acidente, com a habitual finura rosiana na descrição dos fatos mentais: “Foi tudo num relance tão ligeiro, que só depois é que eu vi que tinha visto...”

O tema geral do livro Sagarana é “a ida e a volta”, e neste conto toma a forma de uma viagem só de ida de um morto (o pai de Tiãozinho, amarrado na padiola por entre as rapaduras) e de um vivo (o carreiro Agenor, que mal supõe o que o espera mais adiante).

Porque a raiva do menino, que vai meio que cochilando no “chouto” manso do caminho, vai sendo captada telepaticamente e glosada pelos bois, que sentem crescer em si o ódio pelo cruel Agenor Soronho, como nessa vocalização do boi Capitão:

Mhú! Hmoung!... Boi... Bezerro-de-homem... Mas, eu sou o boi Capitão!... Moung! Não há nenhum boi Capitão... Mas, todos os bois... Não há bezerro-de-homem!... Todos... Tudo... Tudo é enorme... Eu sou enorme!... Sou grande e forte... Mais do que seu Agenor Soronho! Posso vingar meu pai... Meu pai era bom. Ele está morto dentro do carro... Seu Agenor Soronho é o diabo grande... Bate em todos os meninos do mundo... Mas eu sou enorme... Hmou! Hung!  (...)

A sintonia de pensamentos se revela através do monólogo interior dos bois, até que o menino tem um sobressalto, dá um grito, uma varada, os bois arrancam de súbito todos juntos, e Agenor, que vinha cochilando sentado, cai embaixo do carro e é degolado, porque:

(...) ...uma rodeira de carro, bem ferrada, chapeada nas bandejas e com o aro ondulado de gomos metálicos, pesa no mínimo setenta quilos, mormente se, para cantar direito, foi feita de madeira de jacaré ou de peroba-da-miúda, tirada no espigão...

O menino é socorrido por dois cavaleiros, que lamentam a tragédia. Um deles se dispõe a conduzir o carro, que prossegue, estrada afora, levando em sua carga dois defuntos em vez de um só. E um menino vingado.

“Conversa de Bois” pode ser considerado um conto fantástico se interpretarmos literalmente o “transmimento de pensação” ocorrido entre o menino e os bois, em que o ódio cego e primitivo de Tiãozinho pelo padrasto serve de energia mobilizadora para os bois, que depois da violência perpetrada voltam ao normal:

Com os bois olhando. Olhando e esperando. Calmos. Bons. Mansos. Bois de paz.


(foto: Cecilia Araujo de Oliveira)





quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

4310) Legendas de caricaturas (31.1.2018)



(by Bill Waterson)


Sempre fui um leitor voraz de humor, piadas, anedotas e tudo o mais nesse universo. Quando eu era menino havia revistinhas só de piadas,, que a gente comprava na banca. Coisas como Vamos rir!  Muitos anos depois, a editora Codecri, do Pasquim, publicou uma série de livretos de piadas, organizados por Ziraldo e outros, revivendo esta nobre tradição; houve uma série com o título magnífico de Tem aquela do....

Uma das minhas fontes era a revista Seleções do Reader’s Digest, da qual eu comprei uma coleção completa com meus primeiros salários no “Diário da Borborema” em 1965.

Seleções tinha várias seções de pequenas histórias cômicas enviadas pelos leitores: “Flagrantes da vida real”, “Piadas de caserna”, “Rir é o melhor remédio”, etc.

Uma delas dava o balanço nos cartuns e charges que saíam na imprensa norte-americana, e se intitulava: “Legendas de caricaturas”.

Essa seção criou um gênero de humor interessante: o humor visual que prescinde do visual. De certa forma, era um verdadeiro desaforo contra os desenhistas, porque transformava um cartum numa piada puramente verbal. Vou dar exemplos:

Mulher para o marido à janela, vendo cogumelo atômico sobre a cidade: -- Ainda bem que já fui ao cabeleireiro ontem.

Índio para outro, vendo à distância pessoas que recolhem apetrechos de piquenique embaixo de chuva: -- Precisamos estudar essa dança da chuva deles, sempre funciona.

Garoto com birra sentado à mesa, diante dos pais, com o prato cheio à frente.
Mãe: Se você não comer tudo, vamos jogar seu almoço para os cães.
Pai: Se você não comer tudo, vamos jogar você para os cães.

O que isto nos diz sobre o humor?

Ele diz de certa forma que esse tipo de piada consiste em dois elementos: contexto e frase. O contexto sozinho não é engraçado, e a frase sozinha não é engraçada. É a justaposição dos dois que cria a piada. E na nobre arte do cartum, o contexto é visual (desenho) e a frase é frase mesmo.

O que Seleções fazia era substituir o contexto desenhado por uma mera descrição. Era um processo de tradução, no sentido amplo. O desenho, mesmo que fosse o desenho de um mestre cartunista, podia ser traduzido. O leitor, decerto, perdia a fruição estética do traço de Fulano ou Sicrano; mas como a função do desenho era fornecer contexto, na maioria dos casos esse contexto podia ser fornecido  por uma descrição verbal.

O contexto (o desenho, ou a descrição do desenho) tem a função de (em termos de vôlei) levantar para a frase cortar.

("-- Não basta termos sucesso. Os gatos têm que fracassar!")

E nos melhores cartuns, eu diria, o leitor volta ao desenho, numa terceira etapa. Ele vê o desenho rapidamente e assimila o contexto, depois, lê a piada, percebe o humor, dá uma risada; volta ao desenho e (idealmente) reforça a impressão inicial, captando detalhes que na primeira olhada (impaciente para ler logo a legenda) ele não percebeu. A segunda olhada no desenho é o momento de ficar saboreando, degustando a piada após a descarga de riso.

Os norte-americanos transformaram esse cartum (desenho+frase) numa forma de arte específica, que bem mereceria um estudo aprofundado. (Besteira minha – a esta altura, já deve haver umas 200 monografias a respeito nas universidades de lá, desde a Johns Hopkins até a Bowling Green.)

Publicações como The New Yorker têm um espantoso arquivo de piadas de ótima qualidade, pequenas jóias deste subgênero.

("Está morno... está esquentando...")

A expressão usada nas edições brasileiras de Seleções, “Legendas de caricaturas”, é incorreta. O mais certo seria “Legendas de cartuns”. Esse tipo de piada que estou descrevendo chama-se cartum, “cartoon”. A palavra “caricatura” não designa uma piada do tipo imagem+texto: é um mero desenho, onde o humor é obtido por uma deformação expressionista de uma figura humana, aumentando ao máximo possível a distorção crítica (uma distorção visual que equivale a um comentário sobre a personalidade ou o contexto social do retratado) e a possibilidade de reconhecimento.

Na caricatura, deformação e reconhecimento são mutuamente excludentes. Quando aumenta um diminui o outro. A arte é equilibrar os dois. Há caricaturas (vejo muito as matérias sobre os premiados nos Salões de Humor) que são tecnicamente brilhantes  mas a gente tem que ver a identificação para perceber que o retratado é Quentin Tarantino ou Tite da Seleção.

Voltando à idéia inicial:

Curiosamente, conheci esses cartuns-sem-desenhos durante a década de 1950, que foi justamente quando floresceu um gênero literário híbrido: o filme recontado.

Revistas de cinema, naquela época, havia duas: Cinelândia e Filmelândia. A primeira, Cinelândia, era o que eu definia mentalmente como “revista para mocinhas”: fofocas da vida pessoal dos astros e estrelas de Hollywood, notícias sobre as produções em curso, comentários sobre os sucessos em cartaz, dicas de beleza, e fotos, muitas fotos.

Já a Filmelândia era a minha preferida. Nela a gente tinha novelizações de filmes: os filmes do momento, recontados em prosa, cena por cena, como se fosse um conto. Não era uma adaptação do roteiro (como temos hoje romances recontando filme de sucesso, mas com uma certa latitude de reinvenção própria): era o filme contado e pronto, em dez ou quinze páginas de texto corrido.


Filmelândia servia para divulgar os filmes em cartaz, contando sua história, e muitas vezes fiz questão de ver um filme porque tinha gostado de ler sua recontação na revista. Um exemplo aleatório que me vem à lembrança é O Irresistível Forasteiro, western meio cômico com Glenn Ford (uma espécie de avatar de Harrison Ford).

Era uma época em que pessoas contavam para as outras os filmes que tinham assistido, como Homero Fonseca inesquecivelmente descreveu em seu romance Roliúde (Ed. Record, Rio), sobre Bibiu, o matuto que via os clássicos do cinema e os recontava ao seu modo.



Tudo isto me conduz para a tese que defendo esta manhã:

Qualquer experiência estética visual (desenho, pintura, filme, encenação de palco, etc.) pode ser traduzida em palavras, de maneira a criar um substituto sofrivelmente satisfatório para um público meramente curioso.

Essas descrições nunca serão equivalentes, é claro, à obra original, mas no mesmo sentido em que a tradução de um livro para outro idioma também não o é.

Toda recriação verbal desse tipo implica numa perda, mas toda recriação verbal seja lá do que for implica numa perda.

Negar que se possa recontar verbalmente um cartum ou um filme é negar que se possa fazer o mesmo com qualquer aspecto da vida real, a qual, por definição, é sempre muito mais complexa que a mais complexa obra de arte.

Mulher de camisola, para o marido desgrenhado diante da prancheta em branco: -- Se não teve nenhuma idéia para o cartum de amanhã, vamos fazer sexo. É sempre na metade disso que você sai correndo e gritando ‘heureca!’.








domingo, 28 de janeiro de 2018

4309) Um teste com tradutor automático (28.1.2018)




É cada vez mais generalizado o uso dos tradutores automáticos na Internet. Tempos atrás, passei uma tarde numa biblioteca pública, porque estava em outra cidade e precisei acessar a web. Todos os computadores de lá estavam programados para traduzir automaticamente todos os saites estrangeiros.

O resultado muitas vezes era bem razoável. Basta dizer que só vim me tocar depois de uns cinco minutos, quando acessei um saite bem obscuro e pensei: “Peraí. Esse saite tem versão em português?”.

Mas o fato é que continua vigorando o velho princípio de que a cada tradução se multiplica o “ruído informacional”, ou seja, as palavras não traduzíveis vão ficando como verdadeiros “caroços” no texto, enquanto outras são entendidas erradamente pelo robô e viram surrealismo puro.

Para comprovar (ou desprovar) esta minha opinião, vou pegar estes quatro parágrafos iniciais deste post e traduzi-los sucessivamente no seguinte percurso:

Português -> Inglês -> Francês -> Italiano -> Espanhol -> Alemão -> Português.

O resultado final em português, depois dessas passagens sucessivas, ficou assim:

O uso de tradutores automáticos pela Internet está se tornando mais generalizado. Há algum tempo passei uma tarde em uma biblioteca pública porque estava em outra cidade e tinha acesso à internet. Todos os computadores foram programados para traduzir automaticamente para todos os estrangeiros.
O resultado foi muitas vezes bastante razoável. Estou apenas dizendo que não posso jogar até depois de cerca de cinco minutos quando recebi um quarto muito escuro e pensei: "Aguarde, você tem uma versão em português?"
Mas o fato é que o antigo princípio continua a multiplicar que toda tradução do "ruído informacional", o que significa que as palavras não "core" reais são traduzidas no texto, outras incógnitas do robô e viram o puro surrealismo.
Para provar (ou refutar) essa visão, vou levar esses quatro primeiros parágrafos desta publicação e, em seguida, traduzir a próxima marcha (4 que vem diretamente abaixo dos parágrafos abaixo):


Como se vê acima, mesmo depois de passar por cinco traduções intermediárias, visitando dois grupos distintos de idiomas (inglês/alemão de um lado, e os latinos francês/italiano/espanhol do outro), dá para ter uma idéia muito boa do texto original, e metade das frases não parecem sequer ter sido traduzidas.

Agora, peguei esta última versão e fiz o seguinte percurso, saltando entre línguas de origem e estrutura muito diferentes:

Português / Árabe / Gaélico-escocês / Latim / Iorubá / Português.

E o texto final em Português ficou muito diferente:

Para o uso da tradução on-line tornou-se vantajoso. Mais uma vez, passei a tarde em uma biblioteca pública que estava em outros países e as capacidades da internet. Isso ocorre porque cada cartão de memória significa uma vez um estranho

Resultados positivos. Como sofremos cinco minutos depois, você pode jogar quando você tem um quarto muito escuro, e eu acho, 'versão em português sua manhã? "

Mas o princípio ainda é verdade que as classificações de tradução antigas têm o "ruído da mídia" duas vezes. Essas palavras são traduzidas para o texto não-core e sente que não é branco.

Pode (ou não) Primeiros quatro parágrafos e o processo enviado (imediatamente abaixo do parágrafo 4 abaixo)

Isso sugere que os tradutores automáticos – o que utilizei foi o Google Translator – estão avançando muito na questão do vocabulário, mas ainda patinam quando têm que transpor para línguas de estrutura sintática muito diferente.

É curioso que um trecho como “Todos os computadores de lá estavam programados para traduzir automaticamente todos os saites estrangeiros” acabe resultando em “Isso ocorre porque cada cartão de memória significa uma vez um estranho”.

Há também a questão de certas expressões idiomáticas que em línguas próximas têm equivalentes próximos, mas em línguas distantes acabam sendo traduzidas ao pé da letra e geram um “samba do crioulo doido”.

Uma expressão coloquial nossa como “só vim me tocar” (=só vim perceber) rapidamente perde o sentido depois de algumas transposições.

“E viram puro surrealismo” acabou resultando no surrealista “e sente que não é branco”. Nota-se que de salto em salto a frase passou por um dicionário onde “surrealismo”, um termo muito específico, provavelmente não estava registrado – digamos que tenha sido o Latim ou o Yorubá.

Tudo isto tem uma grande importância quando se torna cada vez maior o acesso a publicações de outras línguas com a possibilidade de filtrá-las através de um tradutor automático. Faço isso às vezes quando me deparo com links interessantes (cinema, FC, etc.) em japonês ou russo – mas só para ter uma idéia do que se aborda no saite. Nunca para saber "o que o texto está dizendo".

Mas já vi exemplos de livros em PDF totalmente traduzidos dessa maneira, obras literárias (romances, contos) cujo resultado está sendo lido com perplexidade por jovens leitores brasileiros, atônitos diante de livros de Philip K. Dick em PDF que parecem traduzidos por Zé Limeira.