quinta-feira, 19 de março de 2015

3765) Bob Dylan para um só (19.3.2015)



Imagine um superstar do rock como Bob Dylan, subindo com sua banda num palco e fazendo um show para uma platéia de – dez mil, vinte mil, cinquenta mil pessoas?  Não: de uma pessoa só. Não é delírio: estou assistindo um clip do show agora (aqui: http://en.experimentensam.com/bob-dylan) e matutando sobre o lado pitoresco do capitalismo. (Digam o que quiserem do capitalismo, mas ele é tão divertido, pelo menos pra quem tem capital, quanto um baile de carnaval no Clube Monte Líbano nos anos 1950.)

 

O show faz parte do projeto Experiment Ensam (“Experimente Só”), financiado por um grupo sueco de apostas (que deve ter dinheiro sobrando, dá pra perceber). A filosofia por trás do projeto (está tudo lá no saite) é que muitas das nossas experiências são comunais, só podem ser fruídas plenamente quando estamos acompanhados, ou quando pelo menos olhamos em redor e sabemos que outras pessoas estão sentindo aquilo que a gente sente. Então, o projeto produz situações coletivas e escolhe ou sorteia alguém para ser o único usuário durante uma noite.

 

Fredrik (um sueco fã de Dylan) diz que uma das coisas mais divertidas nos shows dele é tentar identificar as canções, e tem razão. Dylan é famoso por modificar o tom, o andamento, o ritmo, os arranjos. Já vi 4 shows dele, todos no Rio, e muitas vezes a gente só identifica a música quando ele chega ao primeiro refrão. (Tentar reconhecer pelos versos é igualmente difícil: a dicção dele é pior do que letra de médico.) “O que é isso? Será ‘Changing of the Guards’ em ritmo de reggae?”.  E esse prazer (diz Fredrik) só é possível quando se está com amigos, inclusive após o show: “Você viu o solo de gaita na música tal?...”

 

Num teatro com uma única poltrona ocupada, Dylan cantou músicas de Buddy Holly, Fats Domino, etc. – uma escolha correta. Se eu fosse fazer um show assim, ao invés de cantar os “grandes sucessos obrigatórios” ficaria mais à vontade cantando as músicas que mais gosto, e que ninguém nunca me pede. Fredrik aplaude no silêncio após a música, e a certa altura grita uma frase de incentivo que arranca risadas de Dylan e dos músicos. Diz ele, depois: “Na hora, foi uma das experiências mais intensas da minha vida; depois, no entanto, eu fico meio triste por não ter podido compartilhar com ninguém”.

 
Outros experimentos levam uma pessoa sozinha para um restaurante e depois uma boate, para um parque de diversões, para um show de comédia stand-up. É uma dessas sacadas publicitárias baseadas em idéias curiosas e muito dinheiro. (Aliás, não consegui saber quanto pagaram a Dylan pelo show, nem se ele teve a hora-e-meia de duração habitual.)


quarta-feira, 18 de março de 2015

3764) "Jimi Hendrix por ele mesmo" (18.3.2015)



Ele chegou a ser considerado, pela hiperbólica imprensa roqueira, como o maior guitarrista vivo do rock, o maior guitarrista de todos os tempos e “o homem que nunca tocou uma nota errada”.  Exagero, é claro, fórmulas sem sentido. Toda avaliação estética é qualitativa, subjetiva, impossível de quantificar, medir e organizar num ranking de pontuação.  O próprio Jimi, quando ouvia essas coisas, dava uma risada meio rouca.

O livro Jimi Hendrix por ele mesmo (Ed. Zahar, 2014, tradução de Ivan Weisz Kuck) é uma compilação de declarações de Hendrix em primeira pessoa: entrevistas (jornal, revista, TV, rádio), textos manuscritos, diários, cadernos de anotações. Os organizadores intervêm de vez em quando, com notas de poucas linhas para situar certos depoimentos no contexto de algo que estava acontecendo.

Hendrix serviu de exemplo para muita gente de como alguém podia ser um garoto-problema (fugiu de casa, foi expulso da escola) e ao mesmo tempo não ser um criminoso, não ser “do Mal”, como se diz. Pelo que ele fala, não era nada do Mal, apenas queria trabalhar com o que gostava (e só gostava de uma coisa: guitarra), usar cabelo extravagante, roupa extravagante. Quando voltou famoso a Seattle e recebeu as chaves da cidade, disse: “As únicas chaves que eu esperava ver nessa cidade eram as da cadeia”.

Talentoso e intuitivo, Hendrix não é um pensador articulado, não tem a lógica brechtiana e meio absurdista de Bob Dylan, nem o espírito grouchomarxista de John Lennon. É um rapaz que vive para a música; grande parte dos seus depoimentos é tentando explicar as dificuldades de gravação ou masterização de um disco, porque buscavam efeitos que os técnicos desconheciam. Ele, que despontou para o sucesso no Reino Unido, detestava os técnicos de estúdio dos EUA, preferia os ingleses: “Os engenheiros lá são mais criativos. Fazem coisas fantásticas, que lembram até a forma como lutaram na Segunda Guerra Mundial. É tudo muito positivo, o clima, a engenharia, a coisa toda. Lá, estar com um engenheiro é estar diante de um ser humano. É estar com alguém que está fazendo seu trabalho. Aqui na América, os engenheiros não estão nem aí para você. São tão máquinas quanto os gravadores com que trabalham. Dá pra sentir que falta o ser humano, que o estúdio só está interessado na conta, nos 123 dólares por hora”.

São comentários sobre as canções, queixas do cansaço das turnês, reclamações ou elogios quanto ao som fornecido num show. Protestos hippies de paz e amor um tanto pró-forma, de alguém que tinha uma única idéia fixa: música. Os quatro últimos anos dos 27 que viveu foram uma montanha russa que está bem captada nestes fragmentos.




segunda-feira, 16 de março de 2015

3763) "O Trovador" (17.3.2015)



Uma das histórias mais mal contadas do século 20 é a renúncia do Rei Edward VIII da Grã-Bretanha porque queria casar com Wallis Simpson, uma norte-americana divorciada e (diziam os lordes ingleses) promíscua demais para ser rainha da Inglaterra. O Rei abdicou do trono, foi viver com ela e (diz a galera que não perdoa) foram infelizes para sempre.

Uma das palavras mais misteriosas da literatura é “noigandres”, que aparece num poema do século 12 escrito pelo trovador provençal Arnaut Daniel, e cujo significado ninguém sabia. Depois de intermináveis discussões, há hoje um certo consenso de que a palavra na verdade são duas, “enoi gandres”, significando “antídoto contra o tédio” (já escrevi a respeito, aqui: http://tinyurl.com/kqqlzy6).

Pegando estas duas pontas tão distantes (e mais algumas), Rodrigo Garcia Lopes escreveu um romance policial ambientado em Londrina nos anos 1930, quando a cidade do norte do Paraná estava vivendo um “boom” econômico, produzindo café, atraindo migrantes, devastando florestas de madeira de lei, fazendo fortunas. Lord Lovat, um dos sócios ingleses da operação, vem da Inglaterra para investigar acontecimentos estranhos na sua Companhia, e traz consigo Adam Blake, poliglota e tradutor, para ajudá-lo a lidar com japoneses, judeus, alemães, russos, etc.  Começa então uma intriga que envolve mortes misteriosas cometidas por um assassino que se intitula O Trovador, numa trama com ramificações que vão até a Inglaterra do Rei Edward e a Alemanha nazista.

Rodrigo Garcia Lopes é tradutor (Rimbaud, Whitman, Apollinaire), compositor, co-editor da revista literária “Coyote”, poeta com um trabalho de vívida imaginação verbal e controle linguístico, que tem interfaces com a poesia “beat” de Wiliam Burroughs e Allen Ginsberg. O Trovador (Ed. Record, 2014) é um romance policial de narrativa clássica, retrato de época da colonização do Paraná, cheio de referências literárias que fazem parte essencial da história (em vez de serem apenas piscadelas para os eruditos). A chegada do detetive Blake a Londrina me lembrou, por mais de um motivo, a chegada do Blake interpretado por Johnny Depp àquela cidadezinha de faroeste no início de Dead Man de Jim Jarmusch.

A reconstituição de época é verossímil, sem sobrecarregar a narrativa com longos nacos de pesquisa. Personagens fictícios e reais (Lord Lovat, Churchill, Elias Levy) se misturam numa narrativa com mistério detetivesco, ação e retrato histórico na medida certa. Não são frequentes os casos de autor igualmente seguro na poesia e no romance. R. G. Lopes, mais ousado no verso, demonstra na prosa segurança narrativa e domínio da estrutura do gênero.




sábado, 14 de março de 2015

3762) Fora da foto (15.3.2015)



Uma vez eu estava acompanhando uma filmagem feita por uma daquelas equipes de profissionais Série B, calejados e tarimbados. Foram entrevistar um fazendeiro. No fim da entrevista, o diretor de fotografia pediu a ele que posasse, diante da casa da fazenda.  O sujeito postou-se onde lhe pediram, aí o fotógrafo disse: “Doutor, erga o braço e aponte pro horizonte.”  O cara obedeceu, e foi fotografado. Depois, de volta na kombi, perguntei por quê. E o fotógrafo disse: “É pra dar a sensação de que fora da foto também tem coisa.”

Construir cenografias para o cinema é caro que é danado, de modo que qualquer estúdio aprendeu desde cedo (desde o cinema mudo) a construir apenas a parte que vai ser mostrada pela câmera.  Ruas inteiras de casas que só têm a fachada, de madeira, escorada por trás. Pra que construir casas completas, se a câmera só vai mostrar o lado de fora?  Diretores de cinema desde cedo se acostumaram a minimizar custos com o expediente simples de desenhar um “storyboard”, escolher o ângulo da câmera, e construir um cenário contendo exclusivamente o que a câmera vai mostrar daquela posição. (O problema é que depois não pode ter uma idéia melhor e mudar a posição da câmera – vai ter que ficar sendo aquela mesmo.)

A literatura e o cinema vivem disso: de nos sugerir o tempo todo que fora da foto “também tem coisa”.  Induzir o espectador/leitor a acreditar que o que não está sendo mostrado pelo autor também existe. Às vezes basta um ruído. Uma coisa é mostrar a sala de um apartamento silencioso e um casal conversando. Outra coisa é a mesma sala, o mesmo casal, a mesma conversa, e os sons da rua entrando pela janela aberta: buzinas, vozes, latido de cachorro, briga de vizinhos, música, o caminhão do gás com sua musiquinha, o vassoureiro com seu pregão...

Em seu ensaio clássico “A Simples Arte do Crime”, Raymond Chandler diz que considera o romance policial inglês mais sólido, mais bem escrito, do que o norte-americano, e explica: “Há uma sensação mais forte de ambiente, como se a mansão de Cheesecake Manor existisse de fato, e não apenas a parte mostrada pela câmara.”  A metáfora cenográfica de Chandler explica bem a sensação de incompletude que temos com tantos romances, tantos filmes. Na verdade não sentimos falta da paisagem de fora da foto, mas de uma realidade própria.  Muitas histórias dão a impressão de que não existiam antes do livro começar a ser narrado. Existe só a foto, só o que está sendo dito. Naquele mundo nada mais aconteceu senão o que está sendo contado.  Isto pode até ser empregado de propósito, para efeito literário, mas não se pode negar o vigor de uma literatura que nos dá a sensação de que enquanto estamos lendo o que acontece no lugar A, tem outras coisas igualmente importantes acontecendo em B e C.




sexta-feira, 13 de março de 2015

3761) "Os Inocentes" (14.3.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua da Alfândega com Rua 1º. de Março, pertinho do CCBB. (Após a sessão, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida, e estarei presente sempre que possível, o que não é o caso desta estréia.) Pretendo comentar aqui os filmes escolhidos, e o leitor fora do Rio pode encontrar os filmes nas locadoras e na Internet, caso se interesse.

O filme de abertura, hoje, será Os Inocentes (“The Innocents”, 1961) de Jack Clayton, provavelmente o melhor filme do diretor. É um daqueles clássicos filmes de terror em preto e branco, explorando uma fotografia cheia de claro-escuro e os cenários cheios de mistério de uma enorme mansão. São filmes mais elaborados e mais sutis do que a produção normal de terror da época, de produtoras como a Hammer Films (inglesa) e AIP (norte-americana), de orçamento mediano, feitos meio às pressas. O filme de Clayton é uma produção caprichada dirigida por um perfeccionista.

O filme é adaptado do romance Outra Volta do Parafuso (1898) de Henry James, história de uma governanta que vai morar numa mansão no campo para cuidar de um casal de crianças. A mansão é assombrada pelas aparições de um casal de ex-criados, que quando trabalharam ali viviam muito próximos às crianças e agora parecem voltar do túmulo para se apossar delas. A governanta tenta salvar as crianças desse perigo – e algumas teorias dizem que tudo aquilo é um delírio dela própria.

O livro de James é uma das melhores ilustrações da teoria do Fantástico proposta por Tzvetan Todorov em sua Introdução à Literatura Fantástica (1970). Diz Todorov que o Fantástico é uma zona indefinida entre o Estranho (histórias de fatos aparentemente sobrenaturais, mas que no fim recebem explicações realistas) e o Maravilhoso (histórias em que tudo está claramente situado num mundo sobrenatural qualquer). Histórias fantásticas (diz ele) são aquela que se concluem sem que o autor “bata o martelo” com uma explicação clara, deixando no ar a dúvida: aquilo que aconteceu foi sobrenatural ou não?

Os Inocentes é um dos grandes filmes de terror atmosférico, onde existe pouca ou nenhuma violência física, mas tudo é impregnado de uma aura de ameaça, de maldade, de corrupção.  Disse James de sua história: “Em última análise, qual a sensação que eu tinha de transmitir? A sensação de que esse casal fantasma seria capaz, como se diz, de tudo – ou seja, de exercer, com respeito às crianças, a pior ação a que as pequenas vítimas, tão sugestionáveis, pudessem estar sujeitas.”




quinta-feira, 12 de março de 2015

3760) Falar certo errado (13.3.2015)



Fui ao salão onde corto o cabelo e perguntei se tinha sido feriado na véspera, pois o salão não abriu. O barbeiro respondeu: “Uma das meninas que trabalha aqui o pai dela morreu.”  

Eu entendi, embora vendo a frase escrita pareça haver algo de errado nela.  A comunicação falada tem uma sintaxe mais frouxa, mais permissiva do que a escrita, porque tem a vantagem de reforços como mudança de tom de voz, pausas, expressões faciais, gestos...  

Ele poderia ter dito: “Morreu o pai de uma das meninas que trabalham aqui.”  Seria mais gramatical. Mas do modo que disse, não tive nenhuma dúvida. “Uma das meninas que trabalha aqui---“ houve então uma pequena pausa, para que eu guardasse esse “sujeito” da frase, e depois o complemento: “O pai dela morreu.”  

Houve algum engano? Alguma dúvida, algum ruído na comunicação?  De jeito nenhum. Por mim, comunicação 100%.

Raymond Queneau já fez algumas tentativas quixotescas de mudança no francês, que é uma das línguas mais artríticas do mundo apesar da beleza.  O francês é cheio de consoantes mudas, vogais mudas, uma porção de cacoetes de sintaxe.  

No seu livro Bâtons, Chiffres et Lettres (1952), ele fala no “chinook”, um idioma de índios americanos. Nele, segundo Queneau, começa-se dizendo as indicações gramaticais (os morfemas) e depois os dados concretos (os semantemas). Uma frase como “Tua prima ainda não viajou para a África”, em francês, sairia em chinook mais ou menos como “Ela ainda não viajou, tua prima, para a África”.

Queneau usou isso de brincadeira na frase inicial de seu romance Le Dimanche de la Vie (1952), que começa assim: “Ele não tinha dúvidas de que quando passava diante da loja dela ela o observava, a balconista, o soldado Brû.”  

A organização dessa frase é chinookiana, e é uma tática de Queneau para dar um pequeno susto no leitor, mantê-lo acordado. Na mesma página um personagem diz: “Le vlá” (=le voilà), porque é assim que se pronuncia, mas nenhum outro francês ousaria escrever assim nos anos 1950.

A língua falada conta com muitos recursos paralelos (faciais, sonoros, etc.), e pode se permitir uma aparente imprecisão que seria intolerável na forma escrita, a qual geralmente depende só das palavras para dizer algo.  

Daí que, quando escrevemos um romance, muitas vezes os diálogos, apesar de inteligentes e expressivos, são escritos em linguagem escrita, nada guardam das lacunas, das repetições, dos aparentes “non sequiturs” da linguagem falada. 

É muito difícil usar a linguagem escrita para dar a impressão de que aquilo foi falado. Não é só uma questão de botar gírias ou termos coloquiais, é a própria estrutura sintática do que está sendo dito.






3759) Onde foi que eu vi (12.3.2015)



(Oscarito)

Para um crítico ou historiador das artes narrativas existe sempre uma pergunta que pode ser aplicada a qualquer tipo de criação: Quem foi o primeiro que fez isto?  O crítico sabe que um filme ou um livro é apenas um fotograma (rico de informações, é claro) de um filme mais longo, onde aquela idéia sofrerá suas próximas e sucessivas mutações. Aquela obra é o instantâneo atual daquela idéia. Mas o espectador (leitor, fã, etc.) tem uma pergunta diferente, quando ele pensa em todas as histórias que já foram contadas.  Ele pensa: Onde foi que eu vi isso pela primeira vez, e minha alma nasceu, ou nasceu de novo?

Leitores muitas vezes têm suas epifanias mal acompanhados. Quando ele lê uma das grandes cenas da literatura, que encanta a humanidade há milênios, vai ler numa versão contemporânea, mal traduzida ainda por cima, mas vai ser uma epifania do mesmo jeito. A primeira vez em que li sobre o jardim das veredas que se bifurcam foi num romance de F. Richard-Bessière aos dez anos. Fiquei pronto para conceber o espaçotempo como os fios de uma tapeçaria que não enxergamos por inteiro. Sabemos apenas que nosso fio vai em tal e tal direção, muda de cor aqui e ali, e que se isso não acontecesse o desenho final ficaria maculado ou incompleto.

Onde foi que eu vi minha primeira máquina do tempo?  Foi no filme de George Pal, e sem ele eu não teria ido atrás de um escritor chamado Wells, que eu na verdade pensava ser um ator de cinema que tinha inventado uma invasão de discos voadores num programa de rádio.  Qual foi a primeira vez em que eu vi uma mulher nua no cinema? Acho que foi uma vez no cine São José de Campina Grande (que está em processo de restauração, salvou-se uma alma!). Eu tinha uns nove ou dez anos.  Tia Adiza me levou, como fazia quando era à noite, para ver uma chanchada qualquer com Oscarito, Zé Trindade, Ankito... aquela turma. Antes do filme, entrou um trailer onde aparecia (em preto e branco, anos 1950) uma dançarina usando o que uma rainha de bateria de Escola de Samba usa em 2015.  Um cronoclasma, na terminologia de John Wyndham.

Na volta, após o filme, vínhamos a pé pelo balde do Açude Novo e alguém comentou: “Que absurdo!”, com minha tia. “Sim, é um absurdo, passar uma coisa daquela num filme que as crianças vêm ver,” disse Tia, com luterana convicção. Eu estava ansioso para botar alguma coisa pra fora e tentei concordar com ela: “Eu, pelo menos, venho sempre que posso”.  A ousadia masculina dessa frase, aliás absurda nas circunstâncias “presentes”, me sobressaltou. Eu pensei baixinho: “Quem vê diz que tu pode vir sozinho.”  E respondi, mais baixo ainda: “Um dia eu venho, e aí vocês vão ver.”




terça-feira, 10 de março de 2015

3758) Caça aos clichês (11.3.2015)



Lendo uma entrevista do jornalista Sérgio Augusto no suplemento Cândido (Curitiba-PR), li um parágrafo que me alegrou e me constrangeu, quando ele fala do uso insuportável de clichês nas matérias de jornal e revista. Diz ele:

“Para ganhar tempo, paro de ler de imediato qualquer texto com clichês e expressões que abomino.  De imediato, mesmo, ainda que o assunto me esteja interessando. É minha forma de protestar em silêncio contra o insulto que a meu ver representam coisas do tipo ‘resgatar a memória’, ‘conquistar corações e mentes’, ‘ícone’ disso e daquilo, ‘emblemático’, e por aí vai, o glossário não para de crescer. Com a internet e seu vale-tudo vernacular, sintático e estilístico, esse descalabro atingiu culminâncias inéditas. Há blogs que, só de olhar, me provocam engulhos, com seus pontos de exclamação torrenciais, suas palavras ‘gritadas’ em caixa alta, seu gosto por hipérboles do tipo ‘o máximo’, ‘genial’, ‘imperdível’.”

Fiquei alegre porque concordo, e constrangido porque uso alguma dessas besteiras. São as filhas da pressa e da palavra impressa. Vemos uma frase repetida dia e noite, noite e dia, em jornal, em livro, em TV, em rádio, em papos ao vivo... Aquilo se instala em nossa memória por mero peso estatístico. Quando tentamos dizer alguma coisa parecida, nossa memória age como um Google e nos traz “a mais frequente, a mais acessada”. Aí a gente escreve coisas do tipo: “O novo livro de Fulano de Tal me deu um prazer inenarrável”.

O clichê nunca é uma simplificação, é sempre uma enfeitação de uma idéia.  Como tantas enfeitações, no momento em que aparece produz um susto-de-novidade que pode passar como uma comunicação mais intensa.  O leitor percebe aquela expressão que nunca viu na vida: “Resgatar a memória”. Que coisa profunda: a nossa memória, a nossa História foi sequestrada, e estamos invadindo o território inimigo, pegando-a de volta na marra, como é nosso direito, etc.  Depois da décima vez, no entanto (e pra isso bastam alguns meses depois da primeira vez), quem aguenta mais ouvir o clichê? Deixou de dizer. Virou uma expressão coringa, sem informação própria, e que está ali meio que guardando lugar para a próxima expressão criativa que alguém vier a produzir.

O clichê é como aquele cigarro de mentira dos caras que estão tentando deixar de fumar.  Eles ficam segurando, levando à boca, aspirando sem fumaça, botando no cinzeiro ou na beirada da mesa...  O objeto cumpre todo o ritual de movimentos de um cigarro, mas não tem essência de cigarro.  Não transmite informação nicotínica, assim como o clichê não transmite mais nenhuma informação verbal nova.



segunda-feira, 9 de março de 2015

3757) Racismo e literatura (10.3.2015)




(Nalo Hopkinson e Samuel R. Delany)


Num artigo de 1998 sobre “Racismo e Ficção Científica” (aqui: http://tinyurl.com/corglp), Samuel R. Delany comentou, entre outras coisas, o que ele chama de “racismo de boas intenções”. Ele afirma, muito tranquilo, que o racismo não é necessariamente um impulso de maldade: 

“O racismo é um sistema. Como tal, ele é alimentado tanto pelo acaso quanto por intenções hostis e até mesmo boas intenções.  Ele é tudo que sistematicamente acostuma  as pessoas, de todas as cores, a se sentirem confortáveis com o isolamento e a segregação das raças, num nível visual, social ou econômico – o que por sua vezes tanto apoia quanto é apoiado por uma discriminação sócio-econômica.”

Delany, que é negro, conta o episódio de sua ida a uma convenção de FC onde as sessões de autógrafos eram realizadas com duplas de autores, durante uma hora, para dar chance a todos. A autora indicada para autografar junto com ele nesse dia foi Nalo Hopkinson, uma jovem autora negra, ex-aluna e amiga dele.  

Delany depois observou aos organizadores que era amigo e ex-professor de dezenas de outros autores. Por que escolheram Hopkinson para ficar com ele na mesa?  E o pessoal, com toda simpatia, disse: “Bem, achamos que vocês dois juntos se sentiriam mais à vontade”.

A boa intenção da rapaziada acabou reproduzindo um isolamento do tipo “negro anda com negro, branco anda com branco”.  

Delany diz que várias vezes por ano é chamado para mesas-redondas de FC ao lado de Octavia Butler, outra escritora negra, que ele admira, mas que faz uma literatura completamente diferente da literatura dele.  Por outro lado, ele se considera muito identificado com a literatura dos cyberpunks; Wiliam Gibson fez um prefácio elogioso à reedição de seu romance Dhalgren, declarou ter sido influenciado por ele, etc., mas ele não é chamado para debater com os cyberpunks, que por uma certa coincidência são todos brancos (ou eram, na época do texto).  

Não: só o convidam para, junto a Octavia, ou a Nalo Hopkinson, ou a Tananarive Due, falar sobre “a ficção científica afro-americana”, uma coisa, diz ele, “que, em grande parte, existe apenas porque recebeu um nome”.

“Tudo que essa comparação indica,” diz ele, “é a força pura e não-adulterada do discurso de raça em nosso país, comparado a qualquer outra. Numa sociedade como a nossa, o discurso de raça está tão envolvido e misturado com o discurso do racismo que eu desafio qualquer pessoa a conseguir fazer uma distinção clara e precisa entre os dois. (…) O racismo consiste também em acostumar as pessoas a se familiarizar com certas configurações raciais, de modo a que se sintam desconfortáveis com outras.”




domingo, 8 de março de 2015

3756) Quatro tábuas e uma paixão (8.3.2015)



Uma frase muito citada por aí, e atribuída a Shakespeare, é a que define o teatro como “quatro tábuas e uma paixão”.  Ou seja, para se fazer teatro precisa-se apenas de um espaço mínimo, para encenar em cima dele uma paixão humana representada por atores.  É uma frase que equivale à famosa máxima de Glauber Rocha para fazer cinema, “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”.

Fui rastrear essa frase e, como sempre, descobri que a história é muito diferente. Pra começar, não é de Shakespeare; tudo indica que seja de Alexandre Dumas.  Num artigo publicado em 1883 a respeito de Dumas, William Ernest Henley cita o autor francês:

“’Tudo que eu quero,’ disse Dumas numa comparação memorável entre ele próprio e Victor Hugo, “são quatro cavaletes, quatro tábuas, dois atores e uma paixão’; e as suas peças são uma prova de que não falava mais que a verdade”.

Quatro cavaletes, com quatro tábuas deitadas por cima deles, fornecem um palco mínimo. Já vi alguns atores e músicos (não são todos, claro) dizerem que pra se apresentarem bem precisam estar acima do chão, nem que seja um palmo. Não por se acharem superiores, mas para terem melhor a sensação de um espaço diferenciado, o espaço da criação, que (na cabeça deles) precisa ser distinto do espaço da platéia.  Veja-se que Dumas lembra de incluir os “dois atores”, porque o ator é o núcleo do teatro, sem eles nenhuma “paixão” é possível.

O número de tábuas varia entre duas, três e quatro, nas outras referências que achei no Google.  Acabei achando até referências minhas, no tempo em que eu, indo de maria-vai-com-as-outras, atribuí a frase a Shakespeare.  Pelo que vi agora, acho que foi mesmo Dumas quem disse primeiro.

Quatro tábuas, dois atores, uma paixão.  Esta seria para mim a fórmula mais redonda para essa idéia, inclusive pela simetria geométrica que propõe, numa concentração de importância proporcional à diminuição de quantidade (4, 2, 1).

E a literatura, seria o que?  Eu respondo: um toco de lápis e um pedaço de papel.  Ninguém precisa de mais do que isso (e um cérebro, claro) para fazer boa literatura.  É possível fazer poesia com uma lata de spray e um muro, com uma lasca de carvão e uma parede.  Mas hoje tem romancistas que não conseguem escrever sem ser num notebook Mac, “por causa dos comandos, dos recursos, da interface gráfica”, etc.  É meio constrangedor perceber que, se a humanidade regredir a um estágio pré-computador (o que não é impossível, no caso de uma catástrofe econômico-ecológica em escala mundial) muitos escritores vão deixar de sê-lo, mesmo que estejam cercados por pilhas enormes de cadernos e de canetas esferográficas.