quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
2433) Cada qual sua auto-ajuda (22.12.2010)
No curto espaço de algumas semanas conversei com duas amigas que estão aderindo aos livros de auto-ajuda. Numa livraria, encontrei com Margarete (nome fictício, para proteger-lhe a identidade) e sentei para um café de meia-hora. Falamos da meteorologia, da vida em geral, e fomos comparar os livros que tínhamos comprado. Ela estava lendo algo que se intitulava (acho) Você não pode parar a chuva. Peguei, constatei a capa, folheei com o polegar e perguntei: “Presta?...” Ela deu uma banguela de dez minutos. Estava comprando o livro para presentear uma amiga; era o quinto exemplar que comprava naquele mês, porque aquele livro tinha mudado sua vida. “Harmonia é a palavra chave”, disse ela, “harmonia com o universo, com o fluir as coisas, com a mudança das estações, harmonia com o tempo. Descobri que eu precisava perder o inconformismo com a realidade. Parar de dar murro em ponta de faca. Fluir com a correnteza, cê tá entendendo? Em vez de nadar, tornar-se uma coisa só com a correnteza”. Foi nessa pisada por um tempão e fiquei olhando para ela. “Claro, Margarete”, falei, “eu acho que cada um tem que encontrar justamente isso: sua harmonia interior”. Ela agarrou minha mão com os olhos brilhando: “Você entendeu tudo!”.
Tempos depois pego o metrô e sento ao lado de Gertrudes, que não via há tempos. Fomos falando uma coisa e outra, até que ela sacou um livro da bolsa. Creio que se chamava A Vida é sua... se você quiser. E ela começou também a pregar para mim as qualidades do livro. Falou que tinha deixado de ser uma pessoa acomodada, passiva, complacente. Que o livro lhe ensinou a criar oportunidades ao invés de esperar que aparecessem; a impor suas próprias condições antes que os outros impusessem as deles; a defender seus interesses numa negociação ao invés de já começar buscando uma solução que conviesse aos dois. “Cada pessoa entra numa disputa pensando 100% em si”, disse ela; “eu entrava pensando 50% em mim e 50% no outro, então estatísticamente estava perdendo pelo placar de 75 a 25%”. Falou que agora “botava pra quebrar” (ela é advogada) e que há seis meses não perdia uma causa.
Vejam só o que é a vida. Porque esta Gertrudes sempre foi (aos meus olhos) a pessoa mais batalhadora e argumentativa que eu já vi; enquanto que Margaret é (sempre foi) uma menina zen, contemplativa, do tipo que fica olhando uma laranja amadurecer. E agora eu encontrava cada uma delas atribuindo a um livro miraculoso um conjunto de qualidades que eu, mero observador imparcial, já via nelas há anos. Imaginei como seria a reação de cada uma delas se lesse o livro da outra; se iriam sentir que aquele outro livro lhes seria benéfico. Pensei depois que existem dois tipos de livros de auto-ajuda: os que mudam nossa vida, quando estamos precisando, e os que simplesmente nos fornecem uma receita, com assinatura ilustre, para um remédio que já tomamos por conta própria desde que botamos o pé no chão do mundo.
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
2432) O Homem Bicentenário (21.12.2010)

Este filme de Chris Columbus se baseia na noveleta homônima de Isaac Asimov, que ganhou em 1976 o Prêmio Nebula de ficção científica. É a história de um robô (interpretado por Robin Williams) que ao longo de dois séculos evolui passo a passo até se transformar, se não num ser humano biologicamente idêntico (o que seria quase impossível) pelo menos em alguém tão semelhante a uma pessoa que, nas cenas finais, é assim reconhecido pelo governo. Os numerosos romances e contos de Asimov sobre o “Ciclo dos Robôs” mapeiam essa evolução, começando com os desajeitados robôs de corpo metálico, com aparência de escafandristas, até os andróides com visual humano e interior cibernético. Asimov se serviu disto para fundir suas histórias de robôs com seu outro ciclo, o da “Fundação”, um império galáctico cujos protagonistas humanos (ficamos sabendo depois) eram, em grande parte, meros andróides evoluídos dessa forma.
É interessante notar que o conto de Asimov é de 1976, quando os EUA comemoravam os 200 anos de sua independência, e a palavra “bicentenário” estava por toda parte. Ao invés de comentar os 200 anos transcorridos, Asimov fez uma projeção para os próximos 200 anos. É possível ver na história de Andrew, o robô, um processo de conquista de liberdade, cidadania e direitos humanos que de certo modo ecoa o dos cidadãos norte-americanos após a Independência. A certa altura do filme, o robô (cuja habilidade como artesão o torna milionário, encorajado pelos seus proprietários, uma família liberal) diz que quer comprar sua liberdade. (Como será que se diz “alforria” em inglês?) O patrão lhe diz que ele é livre para fazer o que quiser, e ele retruca que quer um atestado formal de liberdade, explicando: “Milhões de seres humanos morreram para conquistar isso, então deve ser algo muito importante, e eu gostaria de experimentá-lo”.
A noveleta e o filme, portanto, são percorridos por um subtexto político evidente. Um robô é alguém governado de maneira inflexível pelas Três Leis da Robótica, que o obrigam a obedecer os humanos, protegê-los e proteger a si próprio. Já um ser humano é protegido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, que à época da publicação da noveleta era quase bicentenária também, e que está integrada de forma indissolúvel ao espírito da Revolução Norte-Americana de 1776 e da Revolução Francesa de 1789. Um robô, como um escravo, é alguém que quer deixar de ter apenas deveres para ter também direitos, para ser também um cidadão. Um robô se torna um ser humano não apenas quando conquista tecidos, músculos e glândulas artificiais, mas quando entende, conquista e pratica a cidadania, a liberdade. Até mesmo a contraditória liberdade de, podendo ser imortal, preferir ser como os humanos, sentir dores, envelhecer, morrer. Ele se torna um cidadão por ser, como dizia Edmund Burke ao Parlamento britânico sobre os colonos da América, “incapaz de barganhar a jóia íntima de sua alma”.
domingo, 19 de dezembro de 2010
2431) Drummond: poemas natalinos (19.12.2010)

Fazer poemas sobre o Natal é algo que se espera de qualquer poeta. Um teste de admissão ao Empíreo dos Vates: será que o caro amigo consegue dizer algo de novo sobre um tema tão desgastado? O livro de estreia de Carlos Drummond, Alguma Poesia (cujos leitores comemoram 80 anos de seu lançamento) trazia logo dois. O primeiro, “O que fizeram do Natal”, começa com uma descrição melancólica: “Natal. / O sino longe toca fino. / Não tem neves, não tem gelos.” A descrição do ambiente se prolonga cheia de diminutivos: “coitadinho”, “burrinho”, “estrelinha”, “o deus nuzinho”) certamente ecoando a sensibilidade maternal das beatas e as dimensões do presépio. É somente no final que a guilhotina modernista decapita a cena: “mas as filhas das beatas / e os namorados das filhas, / mas as filhas das beatas / foram dançar black-bottom / nos clubes sem presépio”. Note-se a eficácia da repetição da frase. Quando o poeta repete “mas as filhas das beatas”, é como que considerando a menção aos namorados das filhas uma lembrança repentina e incômoda, e quisesse às pressas retomar o discurso interrompido: “Mas, como eu ia dizendo, as filhas das beatas...” E essa história de dançar black-bottom, seja isto o que for, é Modernismo puro.
O outro poema, talvez um dos mais divertidos de Drummond, é “Papai Noel às avessas”, em que Papai Noel entra de madrugada pela porta dos fundos, examina a casa com olho de profissional, belisca alguma comida na cozinha, rouba os brinquedos das crianças e vai embora com o saco cheio às costas. Como desmistificação do espírito natalino, é uma ótima piada. Como narrativa, é excelente, e poderia ser usado como guia num oficina de roteiro para curta-metragem. Drummond sempre teve um olho cinematográfico e muitos bons momentos de sua poesia são decupagens perfeitas, de cortes precisos, de uma cena visualmente bem concebida.
Há no poema os pequenos detalhes de linguagem com que Drummond dá tapas de luva na poética do século anterior. Veja-se o uso de expressões plebeias (“que nem”, “pegar fogo nas”, ao invés de “atear fogo às”) e de imagens dessacralizadoras para além da mitologia propriamente religiosa (“um presidente da república de celulóide”). Quando o poeta diz que “a eletricidade bateu nas coisas resignadas”, que um galo “comunicou o nascimento de Cristo” e que o luar “abençoava os legumes”, cada expressão destas é uma pequena deseducação imposta ao leitor, como quem diz: “desaprenda o jeito antigo de falar dessas coisas, de pensar nessas efemérides, aquilo não existe mais”.
O Modernismo foi um processo de substituir o olhar romântico pelo olho “esperto” com que Papai Noel localiza um queijo e come. Olho de rato, talvez; mas olho vivo, olho malandro, olho finório, olho irônico. Os poetas parnasianos e simbolistas eram tudo, menos espertos. A esperteza não vem do Empíreo dos Vates nem do Parnaso das Musas, vem das ruas, como veio o Modernismo, e para onde ia a poesia de Drummond.
sábado, 18 de dezembro de 2010
2430) “The Unforgettable Fire” (18.12.2010)

Acabei a leitura do livro que, sob esse título, conta a história da banda U2, que por motivos variados é uma das minhas preferidas. Comecei a escutar o U2 por volta de 1991 quando saiu o disco Achtung Baby, e foi essa a minha primeira impressão sonora. Depois veio Pop, que na época achei um disco muito barulhento e preferi suspender julgamento. Mas aí comprei e conheci, meio em flashback, The Joshua Tree, que foi (no pitoresco estilo da imprensa roqueira) o disco que os catapultou para a fama. Do U2 o que eu sempre soube foi que era uma banda irlandesa, envolvida com política. A banda tem Bono, um vocalista melodramático no palco e sagaz fora dele, e The Edge, o homem-guitarra-orquestra, que para mim está para a banda assim como Keith Richards está para os Rolling Stones. A cara é o outro, mas o cérebro é ele. (A banda é complementada por dois galegos, baixista e baterista, que fazem questão de permanecer nos bastidores, coisa rara no rock).
O livro conta a história da banda, onde os rapazes cresceram, estudaram, como se conheceram, etc. E se encerra em 1987, com a explosão de The Joshua Tree e a gravação do filme Rattle and Hum. Os últimos vinte anos estão fora, mas o que me interessava era o começo. Por exemplo, nunca imaginei que a influência religiosa fosse tão forte, mais até do que a política. Houve um momento crucial em que o grupo Cristão Carismático a que pertenciam Bono, Edge e Larry (o baixista Adam estava noutra) exigiu que abandonassem o rock, por ser um culto ao ego. Depois de muita reunião, os três decidiram manter a religião, afastar-se da ortodoxia e continuar tocando.
O livro de Eamon Dunphy é em muitas sentidos uma biografia de fã. Detesto biografia de fã, onde a cada página encontramos parágrafos tipo “Naquela noite, chorando no travesseiro, aquele adolescente rebelde jurou que um dia os adultos incompreensivos haveriam de reconhecer o quanto estavam errados...” É a História escrita de trás para diante, os fatos do passado explicados e coloridos pelos triunfos do presente. O bom biógrafo escreve cada momento da história que conta como se não soubesse o que vai acontecer no futuro, porque é assim que a vida é vivida. Há um apêndice escrito (com sensatez, em geral) por John Waters, que diz tietagens como: “Os Beatles podem ter tido esperança. Os Stones podem ter ansiado por isto. Springsteen pode ter tentado. O U2, porém, SABIA que um dia seria A Maior Banda do Mundo”. Os Sebomatos também sabiam.
Por outro lado, Dunphy é perceptivo e ácido em suas críticas aos excessos decadentes do rock (sexo, drogas, egotrips, mau profissionalismo) e ressalta o lado até meio ascético que o U2 tem (ou tinha – não sei como é agora). Interpretações e ingenuidades à parte, é um livro com muita informação sobre a banda e sobre o contexto religioso-político-social de onde ela emergiu, e isto é o bastante para justificá-lo.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
2429) A pergunta boba (17.12.2010)
Todos nós, profissionais calejados, rimos quando vemos na TV a jovem repórter principiante (sim, minhas amigas, não é preconceito meu, mas geralmente é uma mulher) perguntando ao entrevistado famoso quem ele levaria para uma ilha deserta ou qual a sua cor favorita.
São perguntas idiotas, mas no estreito mundinho mental em que ela foi forçada a viver, o das revistas-para-meninas e revistas-para-moças, essas perguntas são feitas com enorme frequência. Ela cresceu ouvindo-as e certamente imagina viver numa cultura em que não apenas todo mundo tem uma cor favorita, mas todo mundo se interessa em saber qual é a cor favorita dos outros.
Grande parte das perguntas feitas em entrevistas não são coisas que o público quer saber, e muito menos coisas que o jornalista quer perguntar. São perguntas que ele herdou. Perguntas que passam de geração em geração de repórteres, pelo simples fato de que é mais fácil usá-las de novo do que ter uma ideia nova.
Grande parte das perguntas feitas em entrevistas não são coisas que o público quer saber, e muito menos coisas que o jornalista quer perguntar. São perguntas que ele herdou. Perguntas que passam de geração em geração de repórteres, pelo simples fato de que é mais fácil usá-las de novo do que ter uma ideia nova.
Além do mais, quem critica jornalistas não sabe o que é todo dia ter que encher aquela página que parece ter um hectare de superfície branca. Todo dia ter que reinventar o mundo a partir do zero. Todo dia ter que perguntar algo a desconhecidos, a alguém sobre quem o repórter leu meia lauda de informações colhidas às pressas, enquanto sobe no elevador para bater na porta do entrevistado.
Daí que muitas vezes o repórter faz uma pergunta besta e o entrevistado dá uma resposta áspera. Perguntaram a Nelson Rodrigues “que recado ele daria aos jovens”. Nelson jogou este paralelepípedo: “Envelheçam!”. Coitados dos jovens, que tiveram de obedecer-lhe a contragosto.
Daí que muitas vezes o repórter faz uma pergunta besta e o entrevistado dá uma resposta áspera. Perguntaram a Nelson Rodrigues “que recado ele daria aos jovens”. Nelson jogou este paralelepípedo: “Envelheçam!”. Coitados dos jovens, que tiveram de obedecer-lhe a contragosto.
O repórter (desta vez imagino que era um rapaz) certamente estava acostumado a entrevistar velhos cheios de conselhos e palavras de ordem.
Consta que alguém perguntou a Ariano Suassuna o que ele achava da Aids, e ele retrucou: “Prefiro Dostoiévski”. Menos mal para o entrevistador, que voltou para a redação com uma resposta pitoresca, ainda que revestida de um certo azedume. Ariano é o tipo do escritor que se irrita com a mania de se querer saber a opinião de um escritor sobre qualquer assunto, como se pelo fato de ser escritor ele tivesse obrigação de ter uma frasezinha espirituosa ou uma idéia revolucionária a respeito de qualquer tema.
Há autores que raramente dão entrevistas (Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, etc). Não é por serem antipáticos ou misteriosos, é para não terem que dizer “onde encontram idéias para escrever tantos livros” ou “tipo, como foi que pintou essa coisa, assim, de escrever”.
Consta que alguém perguntou a Ariano Suassuna o que ele achava da Aids, e ele retrucou: “Prefiro Dostoiévski”. Menos mal para o entrevistador, que voltou para a redação com uma resposta pitoresca, ainda que revestida de um certo azedume. Ariano é o tipo do escritor que se irrita com a mania de se querer saber a opinião de um escritor sobre qualquer assunto, como se pelo fato de ser escritor ele tivesse obrigação de ter uma frasezinha espirituosa ou uma idéia revolucionária a respeito de qualquer tema.
Há autores que raramente dão entrevistas (Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, etc). Não é por serem antipáticos ou misteriosos, é para não terem que dizer “onde encontram idéias para escrever tantos livros” ou “tipo, como foi que pintou essa coisa, assim, de escrever”.
O problema não é a dificuldade de dar uma resposta, é o constrangimento de ter que escutar a pergunta. Perguntaram a Jorge Luis Borges o que faria se fosse nomeado Ministro da Economia da Argentina, e ele explicou: “Renunciaria”. Acho que é por isso que se perguntam tantas coisas, mesmo bobas, aos escritores. Eles só dão respostas pra lá de sensatas.
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
2428) Mark Twain e a Internet (16.12.2010)
Uma diversão de quem mexe com ficção científica é tentar descobrir em textos antigos a menção a alguma coisa que não existia no tempo em que o texto foi escrito, e que pode ser interpretada como um vislumbre profético.
Não que a função da FC seja predizer o futuro, assim como a função da literatura policial não é provar que o crime não compensa. Mas um escritor inteligente e bem informado é capaz de extrapolar o desenvolvimento ou as consequências futuras de algo que já existe no seu tempo.
No saite Cracked tomei conhecimento de um conto de Mark Twain que eu tinha (em The Science Fiction of Mark Twain, Archon Books, 1984, editado por David Ketterer) mas nunca lera.
O conto é “From the London Times of 1904” e foi publicado em 1898. A história, contada sob a forma de reportagem, é vista como uma prefiguração da Internet.
Um homem, o Capitão Clayton, é acusado do assassinato de seu desafeto, o cientista Szczepanik, inventor do “telectroscópio”. Este invento, depois de demonstrado na Feira Mundial de Paris, em 1901, é conectado à rede telefônica mundial. Diz Twain:
“Este sistema aperfeiçoado de telefone sem limite de distância foi introduzido, e assim os fatos diários de todo o planeta tornaram-se visíveis a qualquer pessoa, podendo ser comentados, também, por testemunhas separadas por qualquer número de léguas”.
Condenado à morte, Clayton pede para passar seus últimos dias observando o que se passa no resto do mundo através do telectroscópio.
“A conexão foi feita com a estação telefônica internacional, e dia a dia, noite a noite, ele chamava um recanto do globo, depois outro, e observava sua vida, estudava suas estranhas paisagens, falava com seus habitantes, e percebia que graças a esse maravilhoso instrumento ele era quase tão livre quanto as aves no ar, mesmo prisioneiro por trás de cadeados e barras de ferro”.
O desfecho da história é quando o condenado reconhece, num evento que está acontecendo em Pequim (a coroação do Czar da China!), a suposta vítima, Szczepanik, que tinha fugido à fama mudando de nome e de aparência; e tudo acaba bem.
A simultaneidade do processo é destacada por Twain, após o reconhecimento:
“Um mensageiro levou a notícia a Szczepanik no pavilhão, e era possível ver a perplexidade em seu rosto enquanto escutava. Então ele veio até a outra extremidade da linha, e falou com Clayton e com o governador e os demais”.
Nada mau para quem escrevia em 1898, não é mesmo?
O telefone era uma invenção recente, mas de rápida propagação nos EUA. Em 1890 cobria toda a Nova Inglaterra; em 1893 tinha alcançado Chicago, em 1897 Minnesota, Nebraska e Texas, e em 1904 cobria todo o continente.
Twain reúne em seu conto despretensioso algumas ideias básicas, se não da Internet inteira, pelo menos do Skype: a malha telefônica, a transmissão de imagens e sons em tempo real, a possibilidade de visualização de cenas e de diálogo áudio-visual entre pontos remotos do globo.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
2427) Os monstros do colonialismo (15.12.2010)

(Marlon Brando interpretou no cinema tanto Moreau quanto Kurtz)
Ter lido num intervalo de alguns meses estes dois livros me mostrou o quanto são semelhantes em forma e substância, se bem que na maioria dos ensaios que consultei sobre cada um não vejo menção ao outro. Refiro-me a A Ilha do Dr. Moreau de H. G. Wells (1896) e O Coração das Trevas de Joseph Conrad (1899). O livro de Wells é uma novela de ficção científica com ressonâncias alegóricas; o de Conrad é uma novela realista com ressonâncias góticas (no sentido do triunfo de forças malignas e incompreensíveis sobre as racionalizações da mente civilizada).
O livro de Wells é o relato de Prendick, um náufrago que vai parar numa ilha remota no Pacífico onde Moreau, expulso da comunidade científica pelas suas experiências cruéis, dedica-se a vivisseccionar animais para transformá-los em arremedos de seres humanos, produzindo assim um Homem Cão, um Homem Macaco, um Homem Leopardo, além de híbridos semi-humanos como a Hiena Suína e o Cavalo Rinoceronte. Todos eles têm uma consciência rudimentar equivalente à de um ser humano bronco, todos falam, todos andam eretos e são proibidos de comer carne. Para mantê-los sob controle, Moreau inventa uma Lei que eles repetem sem cessar, terminando o rosário de proibições com o refrão: “Então não somos Homens?”. Qualquer violação da Lei será punida com o retorno à Casa da Dor, o laboratório onde foram criados (as cirurgias que os transformam em semi-homens são feitas sem anestesia).
O livro de Conrad fala da viagem de Marlow, o narrador, em busca de Kurtz, administrador de um remoto entreposto comercial na África. Kurtz é elogiado por todos que o conhecem como sendo um homem notável, artista, intelectual, idealista, dedicado a civilizar os africanos. Quanto mais se aprofunda na floresta, ao longo de meses, Marlow vai se espantando com a desumanização absurda que os negros sofrem pela invasão branca; e quando encontra Kurtz percebe que este se transformou num contrabandista de marfim, assassino, e que participa com os negros de rituais abomináveis (que o livro não explica quais são, mas que horrorizam o narrador).
Moreau é morto pelos homens-animais; Kurtz morre de doença na viagem de volta, murmurando: “O horror, o horror”. Heart of Darkness é uma versão realista da alegoria mostrada em “A Ilha do Dr. Moreau”. O choque entre civilizados e primitivos, ao invés de civilizar estes últimos (ao invés de transformar “animais” em “homens”) gera um atrito espantosamente cruel que acaba por animalizar a todos. É da natureza do colonialismo usar um discurso missionário e civilizatório (“estamos aqui para transformá-los em criaturas superiores, iguais a nós”) e uma prática que acaba por desumanizar os próprios civilizados. No livro de Wells, Prendick foge da ilha e retorna a Londres, mas fica vendo os homens-animais em cada rosto com que cruza nas avenidas. São dois livros para se ler e se lembrar em conjunto, quase como se um fosse o espelho reverso do outro.
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
2426) “Outland – Comando Titânio” (14.12.2010)

Este filme de FC dirigido por Peter Hyams (o mesmo de 2010, o ano em que faremos contato) não é um grande filme mas tem uma narrativa tensa, que combina bem com a ambientação claustrofóbica. (Ele concorreu ao Prêmio Hugo de “Best Dramatic Presentation”, perdendo para Os Caçadores da Arca Perdida.) Pode funcionar muito bem num curso ou numa oficina de roteiro, para discussão de elementos de gênero, porque é uma mescla perfeita de três gêneros: a FC, o filme policial e o faroeste.
A história se passa numa estação mineradora, num satélite de Júpiter de onde se extrai o titânio. A estação é visitada uma vez por semana por uma nave que traz material, suprimentos, turmas de operários para revezamento, etc. Sean Connery é O’Niel, um chefe de segurança (chamado de xerife, “marshal”) recém-chegado após algumas mortes misteriosas terem ocorrido. Logo de cara ele percebe que tem alguma coisa muitíssimo errada, e que isso provavelmente tem a ver com Sheppard, o diretor da mina. Não demora muito para ele descobrir que uma droga ilegal está sendo contrabandeada para a estação, sob a orientação do diretor. A droga faz os operários produzirem o dobro, mas depois de algum tempo provoca alucinações e ataque homicidas. O’Niel prende alguns dos traficantes, mas descobre que Sheppard chamou dois matadores profissionais que deverão chegar na próxima nave, daí a 70 horas. Ele começa a percorrer os corredores pressurizados da base, falando com uns e com outros, e descobre que ninguém, entre as centenas de operários da mina, está disposto a arriscar a vida para ajudá-lo.
O filme é FC pela ambientação interplanetária, futurista. É um thriller policial pela trama em que se sucedem mortes misteriosas, uma investigação científica, o desmascaramento dos criminosos, o confronto violento. É a categorização como faroeste que coloca o crítico numa situação curiosa. Pode haver faroeste sem cavalos, cowboys, índios, etc.? Pode ser faroeste sem a ambientação rural dos EUA no século 19? Eu diria que sim. O filme partilha com o faroeste uma característica mais sutil: a ambientação da vida na fronteira (no caso, uma fronteira interplanetária), e a presença de um representante do Estado tentando manter a ordem num ambiente em que vigora a lei-do-mais-forte. Há também, colateralmente, a citação explícita a Matar ou Morrer (1952), em que um homem sozinho aguarda, sem ajuda, a chegada dos bandidos que vêm para matá-lo.
Tão típico quanto os cavalos, para o western, é esse conflito e essa superposição de dois sistemas sociais. Um drama em que homens de um rude ambiente rural têm que se dobrar a uma lei remota, concebida nos gabinetes do mundo urbano. (É este o grande tema de clássicos como O Homem que Matou o Facínora de John Ford.) O western não é só a luta entre cowboys e índios, é também a história da luta entre a pistola do Sertão e o Código Penal trazido pelos representantes de um “contrato social” mais amplo.
domingo, 12 de dezembro de 2010
2425) Vou ali comprar cigarro (12.12.2010)

Eram 18:43 de uma noite de verão quando o dr. Amadeu Felinto, dobrando o jornal que lia, ergueu-se da poltrona, vestiu de novo o paletó, caminhou pelo corredor e, chegando à sala onde sua esposa, D. Marilena, estava pondo a mesa do jantar, anunciou: “Vou ali comprar cigarro e já volto”. Ela assentiu com um gesto, continuou a distribuir talheres e pratos no leiaute costumeiro, mas, ao ouvir a porta da frente se fechando, estremeceu.
Toda mulher sabe. Está gravado nos seus neurônios com o mesmo dedo de fogo com que os Dez Mandamentos estão gravados nas Tábuas de Moisés. Se um dia, antes do jantar, um marido sair dizendo que vai comprar cigarros, ele nunca mais volta. Dobrará aquela esquina pela última vez e nunca mais será visto. Sumirá na multidão, perderá o nome e o rosto, as impressões digitais, o código genético. Virará uma sombra sem substância, como o Wakefield do conto de Hawthorne. Um espectro que uma maldição milenar e enigmática proíbe de retornar ao lar.
D. Marilena puxou uma cadeira e sentou-se, pois percebeu que a vertigem a faria desabar. As crianças brincavam no quarto; a TV estava ligada baixinho na sala; o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de D. Marilena. Só não estava tranquilo seu coração, corroído pelo mais sulfúrico dos ácidos: o pavor diante do Estava Escrito. Naqueles minutos cruciais que determinaram toda sua vida futura, ela equacionou bens contra despesas, a poupança contra as mensalidades escolares dos filhos, as prestações e seu minguado salário de enfermeira. Traçou um plano de resistência às ironias e falsa piedade das vizinhas. Localizou com presteza uma dúzia de conhecidos que em breve começariam a ligar: “A sra. precisa sair, espairecer, a vida continua...”, e para cada um rascunhou uma desculpa convincente. Não, não amaria mais ninguém depois de Amadeu. Mesmo sendo abandonada de forma tão humilhante. Até o momento daquela derradeira e fatídica frase, ele tinha sido um marido ideal. Mesmo tendo sumido para sempre, era o marido ideal.
Ergueu-se. Foi à cozinha verificar se água do café já fervera. Passou o café numa mistura de piloto automático e sonambulismo, calculando quando pediria pelo carro, pois não sabia dirigir. Descartou de início quaisquer proventos da seguradora, pois sabia que seguradoras só pagam diante de cadáveres, não de homens que saem para comprar cigarros e se transformam em ectoplasma.
Pôs o café na garrafa térmica, arrolhou-a. Foi à porta do quarto. Clarice e Amadeuzinho brincavam, nos últimos momentos felizes que teriam. Não deram pela sua presença; como reagiriam à ausência do pai? D. Marilena foi até a sala, e teve a sensação de estar vendo aqueles móveis e paredes pela primeira ou pela última vez. A porta se abriu. Dr. Amadeu entrou tranquilo, cigarro aceso nos dedos, olhou-a: “Que cara é essa?” Ela arrancou um suspiro, foi até ele, retirou um fiapo de sua lapela e disse apenas: “Demorou...”
sábado, 11 de dezembro de 2010
2424) “Praça Saens Peña” (11.12.2010)

Tenho visto poucos filmes brasileiros, mas um que me deixou pensativo foi Praça Saens Peña de Vinicius Reis. A Tijuca foi um dos primeiros lugares em que morei no Rio, quando foi inaugurada a estação Saens Peña do metrô. Criei um afeto pelo bairro; e mesmo radicado na Zona Sul, que adoro, sinto-me pessoalmente ofendido sempre que o pessoal da ZS faz piada (e como faz!) com quem é da Zona Norte. Quanto mais você se afasta da Zona Sul, mais o Rio fica parecido com qualquer cidade brasileira. Em geral, quando se diz “o Rio de Janeiro” é apenas uma abreviatura de “a Zona Sul do Rio de Janeiro”. As praias.
O filme de Vinicius Reis fala de pessoas que moram num apartamento apertado, sonhando com casa própria, pagando as contas do mês na ponta do lápis. O marido, Paulo (Chico Diaz) dá aulas num colégio e fica entusiasmado quando uma editora o incumbe de escrever um livro sobre o bairro. Começa a recolher histórias, e a certa altura aparece entrevistando Aldir Blanc, tijucano ilustre. A esposa, Maria Padilha, fica meio jogada para escanteio e acaba tendo um caso com um rapaz cujo apartamento posto à venda ela foi avaliar. A filha única do casal sente o que está se passando e perde o diálogo com os pais.
Raras cenas do filme se passam fora da Tijuca. Tudo é contado de uma maneira intimista, aparentemente banal. O filme fala de droga (um tijucano, interpretado por Guti Fraga, queixa-se de que a polícia invadiu-lhe o apartamento e fuzilou seu filho no meio da casa). Mas a violência não aparece. A não ser, reiteradamente, nas conversas. Isto é realismo. É assim que grande parte dos cariocas vivencia a violência: falando sobre ela, todos os dias.
Uma cena resume o espírito deste tipo de cinema. A mulher casada vai à noite no apartamento do rapaz solteiro. Os dois sentam de lados opostos de uma mesinha pequena, encostados à parede, com uma iluminação meio fraca, ficam tomando cerveja na lata e comendo queijo. Charme zero. O rapaz pega a faca, tira uma fatia de queijo, come, oferece a ela... E os dois vão, para usar uma expressão em voga, “se conhecendo melhor”. É o que os romancistas franceses chamavam de “tranche de vie”, uma fatia de vida, um pedaço intensamente real, pelo menos na minha realidade, que já tomei muitas vezes aquela cerva.
O cinemão, no entanto, se tiver que colocar uma cena de um casal se conhecendo melhor, impõe que seja num colorido bar na praia, ou um restaurante metido a besta com maître de black-tie e champanhe na flauta. A cena do filme de Vinicius Reis me comoveu porque me deu aquela sensação cada vez mais rara no cinema de hoje, de ver algo importante que não é tratado como espetáculo. Que parece uma coisa acontecendo de verdade. Atores, diálogos, luz, gestual, o subtexto implícito empurrando um para o outro... Parece besteira, mas é até um negócio meio amedrontador, porque a gente vê o quanto o cinema pode, quando quer, se aproximar de nossos momentos mais íntimos.
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