terça-feira, 30 de julho de 2024

5087) A tradução digital (30.7.2024)




(capa: Lee Rosenblatt) 
 
 
Estive em São Paulo num bate-e-volta para uma palestra no Congresso SINTRA 2024, o encontro do sindicato de tradutores e intérpretes do Brasil. Graças ao convite de Isabel Vidigal e Valéria Gauz, tive a chance de falar para uma platéia atenta e generosa mas, mais do que isto, acompanhei palestras e debates sobre as armadilhas e as loterias da tradução literária (com Marcelo Backes), o trabalho dos intérpretes simultâneos, a atuação dos intérpretes de línguas indígenas na Amazônia (num valioso depoimento de Jaime Mayuruna)... Para não falar nos encontros e reencontros com amigos e colegas de várias partes do Brasil. 
 
Um tema percorreu de ponta a ponta as palestras no palco e as confabulações durante os coffee breaks: a tradução digital, através das variadas máquinas de Inteligência Artificial disponíveis. Foi uma questão vividamente presente nas palestras de Danilo Nogueira, Dirce Waltrick do Amarante e Sandra Garcia. 



(Saul Steinberg)
 

A questão mais recorrente é: a tradução por I. A. vai substituir a tradução humana? Vai nos desempregar? 
 
Lembro muito bem o arrepio de horror que na década de 1980 percorreu a espinha de todos os bateristas brasileiros quando começaram a aparecer em nossos palcos as primeiras baterias eletrônicas. 
 
Lembro das primeiras câmeras fotográficas digitais transformando qualquer dona-de-casa ou qualquer adolescente num virtuose da Agência Vogue, e causando um reboliço de protesto nos fotógrafos do celulóide-e-papel.
 
E o mesmo furacão de ameaças percorreu de ponta a ponta o acampamento dos ilustradores de pena, guache e nanquim diante do desembarque das naves-mães alienígenas do Corel Draw com seus “18 milhões de cores” e do Photoshop. 
 
E aí recorro à advertência do decano Danilo Nogueira: “Você não vai perder seu trabalho para a tecnologia, e sim para uma pessoa capaz de usar a tecnologia melhor do que você”. Porque a tecnologia já veio, já chegou e já está aí. O zum-zum-zum em torno dela não é mais do que o pipôco do foguetão visto à distância: é o barulho de algo que já aconteceu e é fato consumado, mesmo que muita gente só perceba agora. 
 
Sempre cabe a ressalva de que tecnologias desempregam, sim, porque geralmente fazem um trabalho de modo mais rápido, mais previsível, mais econômico. No entanto, os que dominarem a tecnologia têm mais chance de se manterem à tona. 
 
Quem está fazendo essas traduções são máquinas, e com isto dizemos: softwares, algoritmos, processos capazes de reconhecer, interpretar e comparar textos, e estabelecer equivalências entre eles, baseadas em avaliações estatísticas. Essas “máquinas”, contudo, não entendem as palavras como nós as entendemos, relacionando-as com as experiências corporais e sensoriais que temos na assim-chamada “vida real”. 
 
Se eu preciso receber um dinheiro mas por algum motivo meu nome não pode constar nos documentos, eu chamo um amigo e digo: “Vem cá, quero que você seja meu laranja”. Noutro contexto, a palavra me evocaria uma fruta amarelada, acidoce e suculenta; no contexto presente, me evoca um vulto sem rosto e fora-de-foco, interpondo-se numa transação para facilitá-la. 
 
O software tradutório não precisa evocar essas referências. Ele apenas constata que geralmente quando a palavra aparece no feminino corresponde a um tipo de contexto, e quando aparece no masculino cumpre outras funções. Confirma numericamnte a coerência estatística entre esses dois usos, anota as exceções para não esquecer, mas atribui um valor provável ao termo e o oferece ao usuário. Tudo isto em alguns segundos. 
 
Os cientistas, ansiosos para nos tranquilizar, asseguram: “A Inteligência Artificial é burra, é cega, não tem a menor idéia do que está fazendo. Apenas foi ensinada a fazer, e faz”. 
 
Dirce Waltrick do Amarante, em sua palestra no congresso do SINTRA, fez uma boa analogia com o conto de Philip K. Dick “Autofac” (1955, em Galaxy). Nele, “autofábricas” continuam a produzir e distribuir produtos, às cegas, para uma humanidade que não necessita mais deles, depois de um conflito mundial. Quantidades imensas de matéria-prima são desperdiçadas em produtos inúteis enquanto gêneros de primeira necessidade são escassos. Para tentar quebrar o círculo vicioso de produção às cegas, os sobreviventes tentam sabotar as “autofábricas” enviando mensagens de reclamação cheias de palavras inexistentes, para provocar um “bug”. 



("Galaxy", novembro 1955)

 
O recurso usado pelos personagens de Dick lembra as ações do detetive Lemmy Caution no filme Alphaville (1964, Jean-Luc Godard), que ao tentar fugir da cidade dominada por um onipresente supercomputador começa a recitar poesia, com o intuito de provocar um curto-circuito lógico na mente antipoética da máquina. 
 
Essa “cegueira” da Inteligência Artificial com que estamos começando a conviver tem a ver com o seu estágio ainda engatinhante. As I.A. atuais produzem resultados incomparavelmente superiores ao de máquinas que vínhamos usando, como Babel Fish, Google Translator e outras. É o instrumento ideal para o mundo corporativo, para traduzir ofícios, contratos, regulamentos, estatutos, regimentos internos, relatórios, manuais de instruções. 
 
Serve também para essa prolífica indústria editorial de aeroporto, em cujas livrarias o que mais se vê são livros tipo Seis Conselhos Para Ser Um Vendedor Campeão, As Bases do Empreendedorismo, Quem Faz o Sucesso é Você, Nunca Aceite Um Não Como Resposta, Seu Guia Para Técnicas de Vendas, A Administração Para Todos, Liderando Equipes e Conquistando Resultados, A Arte da Persuasão, Batendo Metas e Expandindo Horizontes, Princípios Organizacionais Para um Novo Milênio... 
 
Para traduzir textos com essa substância, que não passa de um purê verbal, a Inteligência Artificial é o melhor instrumento. Porque o mundo humano-biológico está repleto de instâncias em que pessoas de carne e osso precisam verbalizar como verbalizam os produtores automáticos de texto. Textos ansiosamente denotativos, em busca de uma precisão e de uma nitidez que, pelo seu raciocínio, se alcança usando as palavras mais previsíveis nas construções verbais mais estatisticamente consagradas. 
 
Tradutores literários (por enquanto) não precisam temer a concorrência dessas máquinas, porque o purê que uma máquina escreveu em inglês ou russo outra máquina consegue traduzir em italiano ou português. 
 
E vamos ser realistas, no mundo circulam mais textos administrativos, jurídicos, informativos, técnicos, burocráticos, etc. do que textos literários. E, mesmo no interior deste último segmento, a prosa pedestre é mais numerosa do que a prosa estratosférica. Usam-se mais as fórmulas consagradas do que as propostas inovadoras. Para cada romancista com voz própria, existem dez ou vinte sem rosto e sem estilo, meros recicladores do que já leram. 
 
Surge então uma situação curiosa, e não totalmente confortável. Quando a Inteligência Artificial erra, é corrigida pelos que a utilizam. Ela pede desculpas, admite que não compreendeu alguma forma de dizer (por ser excepcional, inventiva, original, etc.), e transfere essa forma para seu pecúlio de aprendizado. E com isso torna-se mais flexível, mais perceptiva. Não se torna mais inteligente. Torna-se apenas um algoritmo que ao invés de lidar com mil variantes lida com um milhão. Torna-se estatisticamente mais aparelhada para mimetizar a inteligência humana. 



(gráfico de Sandra Garcia)


Sandra Garcia advertiu, em sua palestra, que as imensas usinas de dados que alimentam os sistemas de Inteligência Artificial consomem hoje 14% da energia elétrica produzida, o que é mais do que o consumo total de muitos países. 
 
Não devemos nos animar pensando que dentro de poucos anos teremos algoritmos produzindo traduções satisfatórias do Mar Paraguayo de Wilson Bueno, ou do Tarantula de Bob Dylan, ou do Eunoia de Christian Bok. Não é para isto que tamanha energia está sendo gerada. A Inteligência Artificial não nos ameaça com péssimas traduções literárias nem com traduções cada vez melhores. 
 
Esse despautério de energia é para produzir softwares e algoritmos cada vez mais sofisticados e mais capazes de interagir consigo mesmos e entre si, ou para calcular estratégias militares, para conceber planejamentos de engenharia e indústria com melhores relações custo-benefício...
 
A literatura, para nosso bem e nosso mal, não manda no mundo. Ela não passa de um molusco agarrado ao casco de um transatlântico e tentando dar-lhe ordens. 



 
 





sábado, 27 de julho de 2024

5086) A verdade dos fatos e a verdade dos sentimentos (27.7.2024)





Ted Chiang, autor de tantos textos brilhantes de ficção científica, tem no livro Expiração (Intrínseca, 2021, trad. BT) o conto “A verdade dos fatos, a verdade dos sentimentos”, em que ele descreve dois mundos paralelos e suas peculiares relações com a memória. 

 

O primeiro é um futuro próximo em que as pessoas dispõem de super-aplicativos de memorização, implantados na mente. 

 

No segundo, narra-se o choque da chegada dos brancos europeus a uma tribo indígena, com seus conceitos revolucionários, entre eles o de que uma coisa só é verdadeira se for reproduzida sempre do mesmo modo.  

 

No que podemos chamar “Narrativa A”, a história futurista, foi inventado um sistema chamado “Remem”, que permite gravar e indexar memórias de tudo que uma pessoa vivencia. Chamam a isso “bio-logs” – uma espécie de diário áudio-visual com ações, conversas, cenas que a pessoa presenciou ou de que participou. Como se cada cérebro tivesse uma câmara-com-gravador permanentemente ligada. 

 

São aquelas engenhocas maravilhosas da FC. Já pensou?!  Poder gravar tudo, acessar tudo, consultar tudo?! 

 

Milhões de pessoas, algumas da minha idade, mas em geral mais jovens do que eu, vêm mantendo bio-logs, diários biográficos de suas vidas, há anos e anos, usando câmeras pessoais que capturam continuamente vídeos de seu dia a dia. As pessoas consultam esses diários por uma grande variedade de motivos, desde o desejo de reviver seus momentos favoritos até descobrir a causa de alguma reação alérgica. (...) 

 

O Remem monitora as conversas buscando referências a eventos passados, e exibe vídeos desses eventos no canto inferior esquerdo do seu campo visual. Se você diz a alguém “lembra-se daquele casamento em que você dançou a conga?”, Remem exibe o vídeo. Se a pessoa com quem você está conversando menciona “a última vez em que fomos juntos à praia”, o Remem exibe o vídeo. E ele não funciona apenas quando se está conversando com alguém: o Remem também monitora as suas subvocalizações. Se você lê as palavras “o primeiro restaurante chinês onde você jantou”, suas cordas vocais se movem como se você estivesse lendo em voz alta, e o Remem exibe o respectivo vídeo. (pág. 222-223)

               

Parece uma beleza, inclusive porque nos permite esclarecer dúvidas, disputas, esquecimentos... O narrador, porém, percebe logo que em termos de convivência, isso pode estragar a vida. 

 

Casais, por exemplo. A todo instante ficam recorrendo aos bio-logs para determinar quem tem razão numa briga. E o narrador expõe todo o sofrimento que tem na sua relação com a filha adulta, por causa de “quem disse o quê, e como, e quando”. 

 

E ele se pergunta:

 

Era este o limite onde a busca da verdade deixava de ser uma virtude intrínseca. Quando as únicas pessoas afetadas mantêm uma relação pessoal uma com a outra, há prioridades mais importantes, e essa busca detetivesca pela verdade pode se tornar perigosa. É mesmo importante saber de quem foi a idéia daquelas férias que se revelaram desastrosas? É mesmo necessário saber, num casal, qual dos dois é mais relapso em cumprir tarefas? Eu não era um especialista em casamento, mas sabia o que os conselheiros matrimoniais geralmente dizem: apontar culpas não é a resposta. Em vez disto, as duas pessoas precisam ter em mente os sentimentos uma da outra, e encarar em conjunto os seus problemas. (pág. 229) 

 

A outra narrativa, a Narrativa B, é ambientada num vilarejo da Tivlândia (uma região da Nigéria), que recebe as primeiras investidas dos missionários europeus. Os personagens principais são o garoto Jijingi, de treze anos, o ancião Sabe, chefe tribal, e o missionário Moseby. Este último surge aos olhos dos nativos como um personagem meio cômico, por ser desajeitado, pouco atlético; mas aos poucos vai revelando recursos que fascinam Jijingi, principalmente o uso dos livros e dos papéis escritos.

 

O garoto entende a função daquilo e tempo depois está aprendendo a ler e escrever.

 

Foi somente muitas aulas depois que Jijingi finalmente entendeu onde devia deixar os espaços vazios, e o que Moseby queria dizer quando falava em “palavra”. Não se pode saber, ouvindo, onde uma palavra começa e onde acaba. Os sons que uma pessoa faz quando fala são contínuos e sem separações, como o couro da perna de um bode; mas as palavras eram como os ossos por dentro da carne, e o espaço entre elas eram as juntas onde é preciso cortar quando se quer separá-las em pedaços. Deixando espaços ao escrever, Moseby estava tornando visíveis os ossos daquilo que falava. (pág. 233)




Ted Chiang pratica a famosa “prosa vidraça” elogiada por Isaac Asimov, a prosa transparente, com pouco enfeite, cristalina, precisa. E isso é necessário porque ele é um dos autores cujo pensamento tem ao mesmo tempo ousadia e clareza.

 

Como se viu na sua coletânea anterior História de Sua Vida e Outros Contos (Ed. Intrínseca, 2016, trad. Edmundo Barreiros), cada história parte de uma inesperada premissa fantástica, exaustivamente pensada e cuidadosamente desenvolvida. Ele é um escritor de FC hard, não porque carregue nas informações tecnológicas, mas porque obedece com mestria ao método científico.

 

Enquanto isto, os personagens da Narrativa A estão às voltas com o excesso de lembranças que o software Remem descarrega em suas relações pessoais. 

 

Todo tipo de relação se baseia na capacidade de esquecer e perdoar. Minha filha Nicole sempre teve uma personalidade forte: rebelde quando criança, abertamente desafiadora depois que cresceu. Ela e eu tivemos discussões furiosas durante sua adolescência, discussões que depois fomos capazes de deixar para trás, e agora temos uma relação bastante boa. Se tivéssemos o Remem, ainda estaríamos nos falando? (pág. 236) 

 

E na Narrativa B, o jovem africano Jijingi começa a ter pequenas decepções com a arte da palavra escrita, que já domina, quando vê a transcrição datilografada de uma das histórias tradicionais da tribo, contada por Kokwa, o melhor narrador do vilarejo.

 

A versão escrita da história produziu-lhe uma decepção que ele não esperava. Jijingi lembrava muito bem que quando começou a entender o que era a escrita, imaginara que ela lhe proporcionaria a visão de uma história sendo contada, tão vividamente como se estivesse ali. Mas a escrita não era assim. Quando Kokwa contava a história, ele não usava somente as palavras: usava o som de sua voz, os movimentos das mãos, a luz que brilhava em seus olhos. Ele contava a história com o corpo inteiro, e as pessoas a absorviam da mesma maneira. Nada daquilo era transportado para o papel: ali só era possível registrar palavras. E ler somente as palavras produzia apenas uma sombra da experiência de ouvir Kokwa em pessoa, como se alguém estivesse lambendo uma panela onde foi cozinhada a okra, ao invés de comer a okra propriamente dita. (pág. 239)

 

O conto prossegue até o fim fazendo esse paralelo entre duas histórias de ambientação muito diversa, mas com um só tema: Quais as modificações trazidas por novas tecnologias de preservação da memória (a palavra escrita, o software “Remem”)?  




Chiang mostra como a memória constrói ao mesmo tempo a percepção do Eu e a percepção do mundo; e a memória não é fixa nem imutável, pelo contrário – são inúmeros os casos em que a reinterpretação de um fato passado produz uma reviravolta completa em nossas atitudes do presente. 

 

E afinal, o que é a verdade?  A lembrança dos fatos que registramos, ou a lembrança das emoções que sentimos? 

 

A certa altura, o vilarejo africano se envolve numa disputa étnica. Surge uma dúvida sobre o clã a que eles pertencem, pois apareceram versões conflitantes sobre fatos de muitos anos atrás. Jijingi e o missionário discutem, cada um sem entender direito os conceitos do outro.

 

– Mas se Umem e Anongo prestassem juramento também, isso garantiria que eles também diriam precisamente o que aconteceu. Anongo só foi capaz de mentir porque não prestou juramento.

– Anongo não mentiu – dsse Jijingi. – Ele disse o que considerava certo, tal como Umem fez.

– Mas o que Anongo disse não era o mesmo que a testemunha disse.

– Mas isto não quer dizer que ele estivesse mentindo. – Então, Jijingi lembrou algo a respeito da língua dos europeus, e entendeu a confusão de Moseby. – Nossa língua tem duas palavras diferentes para o que na língua de vocês quer dizer “verdadeiro”. Existe o que é certo, mimi, e o que é exato, vough. Numa disputa, os envolvidos dizem o que consideram certo; eles falam mimi. As testemunhas, no entanto, juram dizer exatamente o que aconteceu; eles falam vough. Quando Sabe escuta o relato do que aconteceu ele pode decidir qual a ação que será mimi para todo mundo. Mas se os envolvidos não falam vough, isto não é considerado uma mentira, desde que eles falem mimi.

Moseby, visivelmente, desaprovava isto.

– Na terra de onde eu venho, todo mundo que depõe numa corte tem que jurar que vai falar vough, inclusive os querelantes. (pág. 250-251)

 

O que é a verdade? Nossa verdade pessoal está sempre carregada de emoção, sentimento, vontade, desejo, recusa. A memória pessoal não é objetiva nem imparcial. Lembramos as coisas do jeito que nos parece certo, principalmente no que precisa de interpretação. “Ele reagiu de forma muito agressiva.” “Ela age com indiferença.” “As pessoas aqui me tratam de maneira distante.”  “Fiz tudo que era necessário.”

 

Os psicólogos fazem uma distinção entre memória semântica – o conhecimento de fatos gerais – e memória episódica – a lembrança de experiências pessoais. Estamos usando complementos tecnológicos para a memória semântica desde a invenção da escrita: primeiro livros, depois as ferramentas de busca. Por outro lado, historicamente temos resistido ao emprego desses auxílios no que diz respeito à memória episódica; são muito poucas as pessoas que mantêm diários pessoais ou álbuns de fotos, comparadas às que possuem livros. (pág. 243)

 

E o personagem de Ted Chiang, checando memórias afetivas de infância com sua família, comenta:

 

Ao discutir o papel da verdade numa autobiografia, o crítico Roy Pascal escreveu: “De um lado existe a verdade dos fatos, e do outro a verdade dos sentimentos do autor, e a área em que as duas coincidem não pode ser indicada por antecipação por nenhuma autoridade externa”. Nossas lembranças são autobiografias privadas, e aquela tarde com a minha avó aparece com destaque na minha “autobiografia” devido aos sentimentos que estão associados a ela. E se uma filmagem me revelasse que o sorriso de minha avó era de fato um sorriso artificial, que na verdade ela estava aborrecida porque sua costura não estava saindo bem? O que é importante para mim nessa lembrança é a felicidade que está associada a ela, e eu jamais quereria colocá-la em risco. (pág. 245)



 

 

 

 



quarta-feira, 24 de julho de 2024

5085) A exceção e a regra (24.7.2024)

 


 
Uma expressão popular diz que “toda regra tem exceção”. Há mesmo uma derivada desta: “Fulano é a exceção que confirma a regra”. 
 
Georges Perec usou de maneira muito pessoal esse conceito ao conceber seus romances sujeitos a regras arbitrárias e asfixiantes, aquilo que os franceses chamam de “contraintes”, ou restrições.


 
No imenso romance A Vida Modo de Usar (1978) Perec concebeu e executou uma porção de regras e as seguiu de maneira obsessiva. As regras são arbitrárias, ou seja, ninguém o obrigou a empregar essas regras e não outras; mas ele as criou e obrigou-se a segui-las, por impulso estético, por desafio intelectual, por divertimento maníaco. 
 
Como alguém que diz: “Vou escrever uma carta onde todas as palavras têm que começar com a letra C”. Guimarães Rosa escreveu uma carta assim para seu amigo João Cabral de Melo Neto.  Ninguém o obrigou a fazer isso. 
 
Leia aqui, na página do Templo Cultural Delfos, a “Carta ao Cônsul Cabral”:
https://www.elfikurten.com.br/2016/03/joao-guimaraes-rosa-carta-ao-consul.html
 
A literatura tem espaço para desafios desse tipo, e o maior desafio é produzir com isto uma história que se torne interessante para o leitor, que o faça ter vontade de continuar lendo sem parar, e não fechar o livro dizendo: “Ah, entendi. A regra é essa, e ele vai fazer isso até o fim... Tchau!...”. 
 
Não é só a regra. É o modo como a vida humana, mesmo submetida a regras bizarras, continua sendo a coisa mais interessante em um romance.  
 
Perec dizia, contudo, que não é apenas a regra que é obrigatória, mas a exceção. Nesse livro, por exemplo, ele descreve um edifício parisiense com dez andares e dez aposentos por andar; em tese, o livro deveria ter 100 capítulos, mas só tem 99.  Por que?  É a exceção obrigatória. 
 
Perec escreveu o famoso La Disparition (1969; traduzido no Brasil por Zéfere como O Sumiço) sem empregar a letra E em momento algum.  É possível, contudo, que em algum ponto do livro apareça, leve, serelepe, demente, uma letra E para ser essa famosa “exceção que confirma a regra”. Eu ainda não a encontrei. 
 
Perec comparou esse tipo de recurso à idéia do “clinâmen”, um nome latino atribuído a um conceito da filosofia grega, acho que formulado por Epicuro. 



(Epicuro)


A teoria dos gregos dizia que os átomos se movimentavam no espaço afastados uns dos outros, e num movimento uniforme, inalterável. Desse modo (questionava alguém) como os átomos poderiam ter começado a se misturar, produzindo a matéria como a conhecemos? 
 
A resposta é que em algum momento um átomo se desviava imprevistamente e se chocava com os átomos mais próximos, e daí começava um amontoamento, um turbilhão de choques, os átomos se recombinavam e a matéria surgia desse processo. Isto era o “clinâmen”. 
 
Ou seja: para que haja ordem é necessária a presença de um fator de desordem, de contradição, de desobediência à regra, de voluntarismo. 
 
Isto talvez não se aplique à Ciência e à moderna teoria atômica, mas é interessante quando aplicado à literatura, onde as regras são outras e, o que é melhor: são inventadas pelos escritores, e não impostas pela Natureza.
 
Siga a regra: mas deixe uma portinhola aberta para que por ali se infiltre a exceção. Para que? Para tornar a regra mais nítida. Como naqueles filmes em preto-e-branco onde “do nada” surge uma imagem de um objeto colorido (O Selvagem da Motocicleta, A Lista de Schindler, etc.). 



E também para mostrar que o mundo não comporta apenas o previsível, mas o inesperado. A natureza não consiste apenas numa Ordem, mas numa sucessão de Ordens e Desordens, equilíbrios e desequilíbrios, onde o excesso de um é compensado pelo surgimento do outro. 
 
Numa entrevista de 1981, Perec assim justificava a necessidade de “temperar” suas regras exigentíssimas com alguns deslizes propositais: 
 
É preciso, e isto tem muita importância, destruir o sistema das restrições, das regras. Esse sistema não tem que ser rígido, ele tem que conter um elemento de jogo... É como se diz: tem que ranger um pouco. Ele não tem que ser completamente coerente, é preciso que haja um clinâmen – algo que aparece na teoria de Epicuro sobre os átomos: ‘O mundo funciona porque, no seu início, existe um desequilíbrio’. Segundo Paul Klee, ‘o gênio é um erro no interior do sistema’”.
 
Uma grande parte das explicações do mundo o descreve como uma luta eterna entre o Bem e o Mal. A literatura vem glosando essa “batalha” há milênios: heróis e vilões, mocinhos e bandidos, gente do Bem e gente do Mal... 
 
Tudo isto existe, é claro, mas o mundo não se resume a isto. O Bem e o Mal são conceitos que se aplicam à vida humana, mas não ao universo como um todo. 
 
Não existe bem ou mal nas reações nucleares que fazem brilhar as estrelas, nem na força da gravidade, nem nas aglomerações de matéria que produzem planetas, cometas, etc.  O que existe ali é um cabo-de-guerra permanente entre a Ordem e a Desordem. 
 
A Ordem (vista do ponto de vista humano) pode ser uma coisa boa ou uma coisa ruim; a Desordem, idem. Os interesses humanos, sejam coletivos ou individuais, vivem mergulhados nessa oposição. 
 
Quando há um excesso de Desordem, é preciso que alguém imponha ali um pouco de regras, para que haja algum tipo de comunicação, de união coletiva, de esforço coordenado, de redução de esforços e otimização de resultados. O excesso de Desordem, o caos, leva à Entropia: à dissipação de energia do universo. 
 
Quando há um excesso de Ordem, é preciso que surja algum elemento perturbador, que desequilibra o que está imóvel, que vem “desafinar o coro dos contentes”, que pega aquela ordem adormecida e a desperta, extrai reações, faz com que ela volte à vida. O excesso de Ordem, o imobilismo, leva à Entropia: a dissipação de energia do universo. 
 
A Ordem absoluta não se distingue muito do Caos absoluto. Falta a ambos o elemento de contradição que põe o universo em movimento. 
 
A Vida (o surgimento de seres vivos) pode ser o clinâmen do universo. 




 
 


domingo, 21 de julho de 2024

5084) "Entrevistas Transcendentais": Federico Fellini (21.7.2024)




O Estúdio 5 de Cinecittà é um enorme caixote de cimento pintado de bege. Uma caixa de sapatos com um pé direito altíssimo e paredes totalmente lisas. O motoqueiro pára junto à calçada, eu desço, devolvo o capacete que usei.
 
Caminho na direção da entrada, pensando que daqui a dez mil anos este estúdio estará sendo desenterrado. Arqueólogos da humanidade futura tentarão encontrar algum sentido na profusão de artefatos primitivos que encontrará lá dentro: dragões, sofás, cavalos de madeira, bebedouros, barcos, câmeras, holofotes, espadas, animais mecânicos, camarins, esqueletos, castelos inacabados.




Uma assistente me faz entrar. Eu a acompanho na escuridão por entre tapadeiras enormes, e sinto que do outro lado delas há uma equipe; ouço gritos, ordens, barulho de equipamento sendo transportado. Chegamos a uma parede de compensado, ela abre a porta. Lá dentro, num recinto espaçoso e bem iluminado, há duas poltronas tendo entre si uma mesinha com água mineral e copos. Numa das poltronas, Federico está sentado, folheando um documento de muitas páginas. O ar condicionado é forte; ele traja camisa escura, calças de flanela, um casaco, um cachecol. Larga os papéis, ergue-se apoiando-se nos braços da poltrona, e me aperta as mãos com simpatia. Sentamos, e a assistente sai, fechando a porta atrás de si. 
 
 
-oOo-
 
 
BT – Muito grato por me receber, ainda mais quando está em pleno trabalho, iniciando a filmagem de um novo projeto. 
 
FF – Não se preocupe. Nesta fase inicial quem menos trabalha sou eu. Os marceneiros estão pondo de pé uma estação de trem, que não sei ainda como vou usar. Ou melhor: tenho uma cena pronta na cabeça, a chegada de um personagem, de madrugada, a uma cidade desconhecida. Não sei ao certo o que vai lhe ocorrer, mas ele desce para tomar um café ou comprar um jornal, distrai-se, e o trem parte sem ele. 
 
BT – E depois?
 
FF – Depois... não sei. Enquanto estiver filmando isto, mandarei construir um hospício. Talvez ele se lembre de que seu pai está internado ali e resolva fazer-lhe uma visita. Alguns dos meus filmes nascem assim, de pequenos episódios que vão se juntando. O importante é ter as idéias com um mínimo de antecipação, para que os técnicos possam trabalhar: marceneiros, figurinistas... 
 
BT – Ao longo de sua carreira, seus enredos foram se tornando mais episódicos, menos articulados, e talvez menos previsíveis. 
 
FF – Sim. Penso que fui mais literário na primeira metade de minha carreira, preocupava-me muito com a história, a verossimilhança dos pequenos acontecimentos, a verdade emocional dos personagens... Isto vinha na frente. Depois creio que fui me afastando da literatura e me aproximando da pintura, ou das histórias em quadrinhos, e descobri o prazer de contar muitos episódios curtos, sucessivos, mas sem a obrigação de obedecer a um arco mais amplo. Não faço isto por deliberação, é espontâneo. São duas maneiras legítimas de narrar. Existem outras. 



(Casanova de Fellini
 

BT – O que mantém fiel seu público pode ser também o seu gosto pelo barroco, o extravagante... Pelos tipos humanos bizarros, as situações caricaturais, os fenômenos inexplicáveis... 
 
FF – Sim, isto acabou se tornando o principal clichê a meu respeito, para muitos produtores, críticos, etc.  Aparece um anão soprando bolhas de sabão, e eles gritam: “Felliniano!...”  Aparece uma mulher gorda na janela, escovando os dentes, com os seios enormes de fora, e gritam: “Felliniano!...”  Não nego que tudo isto me fascinava quando garoto. Sou fiel a este fascínio, ainda filmo para recapturar o maravilhamento dos meus dez anos diante de coisas assim. 
 
BT – Uma imagem recorrente em seus filmes é a imagem de pessoas caminhando por ruas desertas, de madrugada... Faz um certo contraste com a exuberância geral de suas imagens. 
 
FF – E talvez seja uma imagem que me é muito cara, que me lembra inclusive tempos da juventude, quando não tinha dinheiro, não tinha trabalho, andava de madrugada meio sem destino, outras vezes saindo de um trabalho que entrava pela noite... O que quer? O mundo é feito disto, multidões ruidosas e coloridas durante o dia, e durante a madrugada pessoas sozinhas caminhando devagar, sem pressa de chegar a lugar algum... Quando vejo uma rua com todas as portas e janelas fechadas, à luz dos lampiões, ela me parece uma mente adormecida, e tudo que acontece ali é como um sonho... A madrugada é o espaço do sonho, porque todos dormem. A rua deserta é uma rua que só existe em nós, e para nós. Por isso também me seduz a névoa, a neblina de Rimini, que envolvia as casas, as torres, os edifícios... tudo ficava suspenso no interior dessa nuvem branca, que a luz dos postes elétricos mal conseguia atravessar. 



(Mulheres e Luzes)
 

BT – Eu percebo no seu cinema, como no de Luís Buñuel (que em outros aspectos não se assemelha ao seu) um interesse humano pelos tipos que parecem fisicamente ou moralmente repulsivos, mas que, examinados de perto, não o são tanto assim. 
 
FF – Sim, embora o cinema de Don Luís seja, de certo modo, mais ácido e menos sentimental do que o meu; tenho consciência disso. O que nos aproxima talvez seja o horror ao moralismo, à hipocrisia. O moralismo, no fundo, não passa de uma tentativa de humilhar alguém para afirmar a nossa própria superioridade. Talvez isso tenha origem no fato de que tanto eu quanto Buñuel somos latinos, emotivos, passamos parte da juventude sob o peso de regimes totalitários, e da lavagem cerebral promovida pela Igreja. Com isto, adquiri um grande desprezo pelo moralismo, porque os que se dizem moralistas não se preocupam com nenhum valor moral elevado, e sim com a possibilidade de acumular poder para si mesmos quando humilham e condenam os demais. Só pensam em si, como o homem que só dá uma esmola se houver alguém olhando. E no fundo têm todos essa visão tribunalesca do mundo, uma corte onde eles investigam, interrogam, julgam, condenam ou perdoam... Não é assim que vejo a vida. 
 
BT – Os moralistas sempre o perseguiram, não é verdade? Alguns dos seus filmes foram considerados indecentes, a Igreja se manifestou... 
 
FF - Meus filmes são castos. Raramente mostro uma cópula, ou nudez exagerada. Há exceções motivadas pelo tema, como em Casanova, mas o sexo ali é coreográfico, performático, não se destina a excitar alguém. Nos meus filmes há sexo, mas como um aspecto da vida. É isto que os moralistas não me perdoam. O escândalo da La Dolce Vita não tinha a ver com nudez ou intercursos sexuais. Minhas orgias são desajeitadas, amadorísticas... A sensualidade, por outro lado, aparece na cena da Fontana di Trevi, uma cena de pessoas vestidas dos pés à cabeça, e que mal se tocam. É a água que fornece o erotismo. Os moralistas entenderam (sabe-se lá como) o quanto a água é erótica. 



(A Doce Vida)


BT – Mesmo os seus personagens negativos são mostrados com certa ressalva – o ladrão, o brutamontes, o sedutor, o vigarista... Isto aparece em Mulheres e Luzes, Abismo de um Sonho, A Trapaça, Cabíria, La Strada... 
 
FF – Quero mostrar quem eles são, mas todos nós estamos mais próximos uns dos outros do que imaginamos. Existem pessoas essencialmente malignas, no mundo, mas são raras nos meus filmes. O que mostro, geralmente, são pessoas movidas por impulsos contraditórios, ou por desejos mais fortes que seu bom senso, ou pelo medo que nos amesquinha, ou por situações em que se metem e não conseguem voltar atrás... Roubam, enganam, trapaceiam, porque é o que lhes parece mais fácil no momento, o atalho mais curto para obter o que pretendem, e são um pouco como crianças, sempre acreditam que ninguém está vendo, e que no fim escaparão impunes. 
 
BT – Em geral são castigados. Lembro do sedutor Franco em Os Boas Vidas, quando é desmascarado ao tentar seduzir a esposa do dono da loja. Ou as derrotas sucessivas do personagem de Broderick Crawford em A Trapaça
 
FF – São castigos que na verdade não procuram ter efeito moral, “vejam como o vício será punido!”... Não, é apenas para mostrar de que modo eles se metem nas enrascadas, porque têm uma percepção defeituosa da vida, são egoístas como crianças mimadas, nunca acham que podem estar errados, e geralmente estão. E qualquer um de nós passa de vez em quando por vexames desse tipo. Com menor gravidade, espero. Eu próprio já meti os pés pelas mãos tantas vezes! Não, eu não seria capaz de roubar a bolsa de Cabíria, com todas as suas economias dentro, mas sou capaz de imaginar o que se passa no espírito sombrio daquele indivíduo. Daí aquela longa cena, antes do roubo final... Estão à beira do barranco, ao entardecer... ele já sabe o que fará... está em plena tragédia... por isso nada diz, não faz um gesto, enquanto ela ainda está vivendo a própria fantasia. 



(Noites de Cabiria) 
 

BT – Sim, e nesta cena estamos todos no ponto de vista do ladrão. A única que ainda acredita na fantasia de Cabíria é ela mesma. São personagens patéticos, como é patético o adúltero compulsivo de Mulheres e Luzes. 
 
FF – O adultério tem a ver com a vaidade do homem que, com ingenuidade semelhante, nunca acredita que pode estar errado. Ele sempre acredita que a mulher jovem com quem conversa está tremendo de desejo por ele mas é obrigada a manter uma aparência virtuosa. Não é diferente da mocinha ingênua de Abismo de um Sonho, que larga o marido numa situação bem constrangedora, para perseguir o galã das fotonovelas; tanto ela quanto o sedutor vivem uma fantasia tão intensa que não conseguem perceber a realidade. 
 
BT – O senhor sempre se interessa, num certo sentido, pelas emoções fortes, sem deixar de lado as sutilezas.
 
FF – Se as emoções fortes são verdadeiras, as sutilezas irão aparecer, principalmente no cinema, porque estamos no domínio da câmera, da iluminação e do ator, e nenhum diretor tem domínio total sobre todos estes elementos, ao mesmo tempo.  E nenhum diretor necessita desse domínio. Temos que buscar a verdade emocional da história antes de tudo, e o resto virá por si só. E não me refiro simplesmente ao lado mais externo das emoções, o riso, o choro, a raiva, a paixão... Mas às emoções profundas, que nos movem, que nos impelem a agir deste ou daquele modo... Isto é um trabalho fascinante para quem escreve, quem dirige, quem interpreta... No momento de uma cena forte, de um close-up, há mil sutilezas que é preciso permitir que brotem, sem que o roteirista ou o diretor as tenham que prever, necessariamente. O momento principal do cinema é quando o diretor diz: “Ação!...  Tudo que acontece antes é mera preparação, e o que acontece depois é acabamento. 
 
Dito isto, respondo: sim, gosto de situações exageradas, até meio absurdas, gosto de emoções grandes demais. Não sou um retratista, sou um caricaturista.   



BT – Gosta mais das máscaras do que dos rostos... 
 
FF – Gosto de rostos que parecem máscaras, porque sinto neles uma verdade maior do que naqueles rostos pálidos, plácidos, organizados, que se parecem todos uns aos outros... Estes são os rostos da nossa era, a era das máquinas, em que tudo parece feito de acordo com a mesma fôrma. Gosto do que é único, e o que é único geralmente nos parece extravagante ou bizarro. Em todo caso, gosto de compor com os rostos. Nos meus primeiros filmes tive que aceitar às vezes os atores que as circunstâncias me impunham, mas meu desejo era sempre compor um personagem: um rosto, uma roupa, um ambiente, uma voz... Muitas vezes o ator tinha o rosto que eu queria mas a voz não tinha nada a ver, eu era forçado a encontrar alguém que tivesse a voz adequada e fazer a dublagem. 
 
BT – Lembro-me de ter lido, quando adolescente, que nos seus filmes o senhor dizia aos atores que conversassem qualquer coisa durante a filmagem, ou dissessem números, porque o diálogo só iria ser escrito depois. 
 
FF – Mas sim! É uma técnica como qualquer outra. Em algumas cenas só me veio à mente o que os personagens estariam falando quando vi a cena na moviola, sem som, e pela expressão do rosto deles uma certa troca de palavras me veio à mente. Não funciona em toda cena, é claro, pois existem aquelas onde os atores precisam estar dizendo coisas específicas, ou a história não faria sentido. Mas em outras... 
 
BT – Já vi queixas de que essa técnica da pós-sincronização prejudica as cenas, porque as palavras não coincidem com os lábios. 
 
FF – Tenho impaciência com quem fica tentando provar que o que passa na tela é uma mentira. Mas claro que é uma mentira! A arte é uma mentira, uma invenção, um sonho...  Fiquem eles com a verdade deles, podem ficar de pé na sala e gritar que as ruas são feitas de papelão, e que as balas são de festim. Há gente que vai para o cinema com um cronômetro ou um binóculo para encontrar o que eles chamam de “erros” – para ver se os movimentos das mãos de um instrumentista correspondem aos sons que se ouve na banda sonora. 
 
Eu não filmo para gente assim. Filmo para gente capaz de olhar um ator e não se perguntar de quem é aquela voz. É uma composição, é como usar uma tela transparente, com projeção ao fundo mostrando o Monte Olimpo ou o fundo do mar. É claro que é um truque! 


(Oito e Meio) 


BT -- O senhor tem este fascínio pelo extraordinário, pelo fora do comum, e sempre me perguntei por que motivo nunca dirigiu um filme de ficção científica, porque sei que gostava de ler esse gênero. 
 
FF – Mas, quem não gosta? Amadureci como artista escrevendo roteiros de quadrinhos à imitação de Alex Raymond e de Lee Falk, quando o governo fascista proibiu a importação das tirinhas. Eu escrevia, e um colega imitava o traços daqueles artistas, de quem ainda espero receber o perdão. Sim, escrevi Flash Gordon, escrevi Mandrake, mas colocar isto numa tela de cinema envolve outras questões. Tudo nasce da minha admiração pelo insólito, o grandioso, o despropositado... Sou um homem de Rimini, e Nova York para mim é uma metrópole interplanetária, uma construção cenográfica suspensa no tempo e no espaço, como aquelas cidades envoltas em cúpulas transparentes que viajavam pelo Sistema Solar. Sempre fui fascinado pelo mundo impossível criado pelos americanos. Ali, já assisti, numa tela gigantesca, uma projeção de “Satyricon” num daqueles “Square Gardens”, depois de um concerto de rock, com dez mil jovens fumando haxixe e fazendo o amor, e acho que nesse momento a Roma Antiga e a Roma Futurista dialogaram e se fundiram uma à outra, com uma pequena ajuda de minha parte. 
 
BT – Tem prazer ao assistir seus próprios filmes, com um olho na platéia, para ver como ela reage? 
 
FF – Às vezes, mas em geral tenho um certo incômodo, como se estivesse mostrando algo muito íntimo para uma multidão de desconhecidos, que facilmente podem me achar ridículo ou patético. O verdadeiro prazer está no ato de filmar. O grande momento do cinema é o dia de filmagem, à frente desse exército quixotesco que é toda equipe de cinema, com sua confusão, suas brigas, sua cumplicidade, seus mexericos, seus erros, seu perfeccionismo... Seja no estúdio ou na rua, um dia de filmagem é sempre um mergulho num mar desconhecido, para trazer de volta alguma coisa que nem sempre é o que buscávamos. Descobri isto através de Rossellini, nos meus primeiros trabalhos de cinema, pórque até então eu era um homem de gabinete, da escrita, do desenho, da produção de revistas ou de programas. E ao acompanhar as primeiras filmagens, principalmente em Paisà, percebi que o momento da filmagem era como um happening, como uma obra de arte efêmera que valia por si só, embora tivesse como propósito a realização de um produto que iria ser exibido meses depois. 



(Fellini ator) 

 
BT – O senhor chegou a trabalhar como ator num filme de Rossellini, um pequeno papel sem falas...
 
FF – E quanto menos se falar sobre isto, melhor.
 
BT – Mesmo assim, continuou aparecendo, mesmo que no papel de si próprio: Os Palhaços, Entrevista, Roma...
 
FF – Sim, mas é o que lhe falei, para mim não existe fronteira entre o que aparece na tela e o que está por trás da câmera. A fronteira existe apenas como uma abstração, uma convenção, tal como as fronteiras da vida real – se excetuarmos esses horríveis muros de pedra ou de arame farpado separando os países. A câmera pode apontar apenas numa direção, mas o cinema existe em 360 graus, é um círculo em que tudo se confunde. 



(Entrevista 


BT – Ou um circo...
 
FF – A palavra vem daí, círculo, circo, um espaço que inclui artistas, personagens e público: os que fazem, os que aparecem na tela e os que assistem. São espaços diferenciados mas contínuos, e vivem em função uns dos outros. Quando apareço filmando nos meus próprios filmes não estou posando de vanguardista, nem “quebrando a quarta parede”, estou sendo até meio saudosista, lembrando de um passado longínquo em que a arte era feita nas ruas, nas praças, no meio do povo, sem essa distinção artificial imposta pela indústria e pelo comércio artístico. Não sou contra o comércio, inclusive porque vivo dele, mas não podemos manter viva uma parte desse espírito? 
 
BT – Eu tenho um apreço especial por Entrevista, inclusive aquele final em que acontece o ataque dos índios e logo em seguida um temporal, e todos saem correndo, para se proteger da chuva... 
 
FF – Filmar em equipe exige uma capacidade de sonhar coletivamente. Sempre me surpreendo quando digo, por exemplo, “preciso de um balão colorido que se eleva no ar levando consigo dez pessoas”, e dias depois tenho nas mãos não só o balão como as pessoas, dispostas a subir nele somente porque essa idéia maluca me ocorreu! É diferente da relação que temos com certos financiadores incapazes de entender a imaginação. Querem explicação para tudo, exigem cortes no orçamento... A cena tem que mostrar uma mulher que chega ao consultório médico, e quando entra vê dois médicos gêmeos, vestidos iguais, por trás da mesa. O produtor lê isso, faz uma marca na página e pergunta: “Mas, por que dois gêmeos?... Não bastaria um?...”  É com esse tipo de questão que a gente tem que lidar o tempo inteiro, é de enlouquecer. 



(Oito e Meio


A assistente entrou já faz algum tempo, espera junto à porta, muito compenetrada, em seus óculos, seu cabelinho curto, sua minissaia. Séria como o mármore, que raramente sorri; tem idade para ser neta de Federico, e olha para ele com um olhar de mãe. Ele percebe, faz-lhe um sinal de positivo, ergue-se, eu também me levanto, abraçamo-nos, ele me agradece: “Grazie, trouxe-me belas lembranças, não deixe de ver o filme!..”  O filme é A Viagem de Mastorna, um percurso calvinesco de um homem que perde o trem e se perde na estação, no mundo, e se maravilha com o mundo, e não quer mais voltar para o que havia antes. 




 (A série "Entrevistas Transcendentais" é formada por textos que são imaginários mas pretendem ser fiéis ao espírito dos supostos entrevistados. Eu não entrevistei estas pessoas.)

Agatha Christie:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/05/4583-entrevistas-transcendentais-agatha.html

Philip K. Dick:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/08/4608-entrevistas-transcendentais-philip.html 

Julio Cortázar:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/12/4651-entrevistas-transcendentais-julio.html 

Augusto dos Anjos:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2021/01/4660-entrevistas-transcendentais.html 

Alfred Hitchcock:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/12/4894-entrevistas-transcendentais-alfred.html 

Edgar Allan Poe:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/06/4957-entrevistas-transcendentais-edgar.html 


 
 
 
 




quinta-feira, 18 de julho de 2024

5083) As Bibliotecas Fantásticas (18.7.2024)



 
Alguém já descreveu a tendência pós-moderna da literatura como um Labirinto de Espelhos, para se referir à frondosa ramagem fractal das histórias que têm como tema outras histórias, os livros a respeito de livros, os escritores que têm escritores como personagens, e assim por diante. 
 
Nesse contexto de verdadeira bibliomania, ao qual não me considero imune, estão as Bibliotecas como o símbolo maior desse universo feito apenas de coisas que deram certo. Por pior que seja um livro, o simples fato de ter sido publicado e depois conservado numa biblioteca já lhe dá uma vantagem incalculável sobre todas as obras geniais que nunca chegaram ao papel. 
 
E assim como os homens imaginam livros, podem imaginar bibliotecas, como faz José Roberto Torero nesse precioso livrinho de cabeceira, As Bibliotecas Fantásticas (São Paulo: Padaria de Textos, 2023). 
 
É um livro de invenções – tal como as Cidades Invisíveis (1972) de Ítalo Calvino, que em vez de imaginar bibliotecas imagina cidades, cidades improváveis, cidades impossíveis, cidades cuja realidade é apenas a realidade conceitual e estética de um desenho, de uma pintura. 



(ilustração: Eloar Guazzelli)


Desenhos estão no livro de Torero (ilustrado por Eloar Guazelli), reforçando o caráter lúdico e imaginativo dessas coleções de livros, cada uma delas obedecendo a uma diferente contrainte, uma diferente restrição, uma característica que a define e limita, mas limitando-a dá-lhe a possibilidade de ser infinita dentro do âmbito do seu conceito. 
 
Como por exemplo a biblioteca de Mjeiak, a biblioteca soterrada sob a areia de um deserto; a busca de um livro depende totalmente da memória do bibliotecário, que aconselha cavar o chão “à esquerda da terceira duna”, ou algo parecido. 
 
Ou a biblioteca de Tuzla, uma cidade afligida pela superpopulação e pela carência de empregos, e que resolveu colocar pessoas servindo de prateleiras para os livros. Quando alguém percorre a biblioteca, as “estantes” interferem o tempo todo, fazendo propaganda dos livros que suportam, para que sejam levados para leitura. 
 
Ou a biblioteca de Komok, onde os livros estragados não são simplesmente jogados fora; as páginas em bom estado são arrancadas e coladas no interior de outros livros. 
 
Assim, se você está lendo o Gênesis, pode se deparar com uma página sobre o Big Bang. Se estiver folheando um adocicado romance, pode tropeçar numa página do Kama Sutra. Se está lendo um tratado de física nuclear, uma poesia sobre Chernobyl; no meio de um ensaio sobre política, a biografia de um torturador; e assim vai. (p. 43) 

 




(ilustração: Eloar Guazzelli) 

 
O perfil de cada biblioteca tem muitas vezes algo de metáfora da escrita, da criação literária, ou do próprio ato da leitura. Pode ser também uma alusão ao mundo exterior à escrita, como é o caso da Biblioteca Tríplice de Jerusalém, dividida em três setores independentes – um apenas com Bíblias, outro com Torás, outro com Corões. A convivência, num só edifício, parecia a princípio acenar com a possibilidade de integração pacífica. Mas... 
 
Certa vez, um desses bibliotecários sugeriu que houvesse uma única entrada e se misturassem as três coleções. No dia seguinte foi encontrado com três adagas nas costas. (p. 89) 
 
O uso da biblioteca como alegoria do mundo, como um microcosmo que reflete o mundo, foi proposta de forma definitiva por Jorge Luís Borges, que em “A Biblioteca de Babel” (1941) a usou numa fábula perversa sobre linguagem, probabilidades, estatística, ordem e caos. A idéia de uma biblioteca contendo todas as combinações possíveis de todas as letras do alfabeto assusta pela sua enormidade, mas assusta ainda mais pelas suas “léguas e léguas de cacofonias insensatas”. Como se nos dissesse que qualquer arremedo de ordem e de significado que ocorre no Universo não surge por desígnio divino nem por imposição das leis naturais, e sim por mero acaso, mera fatalidade estatística. 
 
Outra biblioteca que rapidamente adquiriu o status de símbolo em tempos recentes foi a do mosteiro cristão de O Nome da Rosa (Umberto Eco, 1980), um gigantesco repositório das ciências, da filosofia e de outras disciplinas, tesouro ciumentamente preservado pela Igreja e que nos episódios finais é consumido pelo fogo. 
 
Mesmo ambientada na Idade Média, a narrativa de Umberto Eco é um comentário ácido sobre a cultura universitária contemporânea. Em seu Viagens na Irrealidade Cotidiana (Ed. Record, 1984, trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade), ele faz uma divertida comparação entre o isolamento físico e mental dos mosteiros da Idade Média e os nossos modernos campus universitários, ambos repletos de sabedoria e ambos inacessíveis a uma população despreparada e desinformada. 
 
O livro de Torero tem a vantagem de, em vez de propor uma gigantesca metáfora, propõe dezenas de metáforas pequenas, localizadas, algumas totalmente absurdas ou bizarras, outras que às vezes acabam soando, mesmo em sua possibilidade fantástica, como uma boa idéia. 



(ilustração: Eloar Guazzelli)


É o caso da leitura interrompida que ele indiretamente aconselha através da Pequena Biblioteca do Farol de Tourlitis, onde a luz giratória da torre é a única disponível para a leitura do visitante. 
 
Assim, ele lê um tanto e logo vem a escuridão, quando ele aproveita para pensar no que leu, relembrar alguma expressão mais saborosa, imaginar as intenções do autor e repetir as frases dos personagens. Na volta da luz, ele lê mais um pouco e logo volta para o breu, quando não lê, mas, de certa forma, relê.  (p. 135)
 
Pergaminhos, papiros, cascas de árvores... a substância física das bibliotecas geralmente é a mesma, mas ele também pervê inovações capazes de abrir terrenos insuspeitados da leitura. Como na Biblioteca do Meio do Caminho, especializada em livros que ainda estão sendo escritos, onde  
 
...por meio de uma avançada tecnologia tipográfica (ou, talvez, de uma magia antiquíssima) os leitores podem ver as letras  surgindo nas folhas assim que os autores as escrevem. E também podem vê-las sendo apagadas, riscadas, corrigidas.  (p. 78) 

No prólogo ao livro, diz Alberto Manguel:
 
Portanto, não deve ser uma surpresa que uma biblioteca imaginária faça o papel de espelho em constante mutação, refletindo o que é vivido por nós como fato ou sonho, como pensamento ou como realização material. As palavras nos permitem nomear o que é tangível e o que não é, a girafa e a mantícora, e dar vida ao que caprichosamente sonhamos em nossa imaginação. (p. 6-7) 
 
Toda biblioteca é fantástica, quando mais não seja pela sua heterogeneidade, seu acúmulo de pensamentos que se desconhecem uns aos outros, sua preservação de idéias pelas quais ninguém pergunta ou responde, pela latência de grandes verdades à espera de seu redescobrimento, pela multiplicação de versões de tempos que já se foram, pela garantia de que faz parte da essência humana esse diálogo permanente com o passado. 
 
E ergamos um brinde às bibliotecas de empréstimo, às bibliotecas ambulantes, às bibliotecas de circulação. Elas nos ajudam a pular as fichas dos catálogos ou os ficheiros eletrônicos, nos deixam manusear os livros propriamente ditos, devorá-los com os olhos, estabelecer com eles aquela primeira relação de paixão e curiosidade sem a qual a leitura vale muito pouco, e depois levá-los para passar uns dias conosco. 
 
Porque (é o que nos ensina o triste exemplo da Biblioteca Inexpugnável de Ulan-Kalai),
 
...se os livros não são emprestáveis, a biblioteca é imprestável. (p. 150)