segunda-feira, 24 de junho de 2024

5075) "Vidas Secas" na Netflix (24.6.2024)




O pessoal andou comemorando alguma data relativa ao cinema brasileiro, e isto induziu a Netflix a colocar na prateleira alguns títulos clássicos. Dei-me o presente de rever Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), que eu não assistia de novo há décadas. 
 
Por essas convergências naturais da História, os nomes de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) e Glauber Rocha (1939-1981) foram sempre “pronunciados com o mesmo fôlego” naquela época. Ao se discutir cinema feito no Brasil, quem mencionava um tinha sempre que falar no outro, geralmente para compará-los, e mostrar o quanto eram diferentes (e eram). 
 
Ainda assim, foram grandes amigos e combateram juntos na mesma trincheira. É curioso que em muitos movimentos de criação artística surjam lado a lado dois artistas que servem de polos opostos, de pontos de referência para atrair discípulos e seguidores. Nelson era o clássico, Glauber era o vanguardista. Nelson era o herdeiro do cinema de rua Neo-Realista italiano. Glauber era o contemporâneo do cinema de rua da Nouvelle Vague francesa. Nelson era amigão de todo mundo. Glauber confrontava todo mundo. 
 
E Nelson tinha um vínculo programático com a literatura brasileira, uma espécie de missão auto-imposta de levar para a tela as nossas grandes narrativas literárias. Glauber devorava literatura, era um fã confesso de Guimarães Rosa e José de Alencar; mas não se dava o trabalho de adaptar ninguém. As referências na tela eram muitas, mas as histórias eram só dele. 


 
(Nelson Pereira dos Santos)

 
Nelson Pereira dos Santos, que teve uma carreira profissional muito mais extensa, adaptou, entre outros, Machado de Assis (Um Azyllo Muito Louco, 1970), Guimarães Rosa (A Terceira Margem do Rio, 1994), Jorge Amado (Jubiabá, 1987; Tenda dos Milagres, 1977), Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1963; Memórias do Cárcere, 1984), além de dirigir trabalhos para TV sobre a obra de Gilberto Freyre e a de Sérgio Buarque de Hollanda. 
 
Muitos amigos meus tinham de Nelson a visão de um cineasta meio conservador, tradicionalista. Pudera. Seu cinema era sempre comparado aos delírios barrocos de Glauber, às anti-narrativas desconcertantes de Julio Bressane, ao escracho udigrudi de Rogério Sganzerla. 
 
Éramos jovens e impacientes por novidades, tínhamos fascinação pelas experiências narrativas, pelos modos de narrar que estavam nascendo ao mesmo tempo que a nossa consciência das formas narrativas. Queríamos fragmentação, descontinuidade, incessantes surpresas, transgressões inesperadas. Quanto mais doidice melhor. 
 
O cinema de Nelson não era careta, nem alérgico ao experimentalismo. Ele transformou O Alienista de Machado de Assis num longo happening, carnavalizando as ruas de Paraty em Um Azyllo Muito Louco, 1970. Filmou a aventura de Hans Staden entre os canibais brasileiros, em Como Era Gostoso Meu Francês (1971), pedindo que a equipe técnica trabalhasse sem roupa, para não constranger os atores. Criticado por muita gente, fez desde ficção científica absurdista (Quem é Beta, 1972) até cinebiografia de dupla sertaneja (Na Estrada da Vida, 1980). 
 
Considerado por todo mundo um clássico, Vidas Secas, estreado em agosto de 1963, é um filme que em seu momento deve ter sido tão surpreendente e inquietante quanto o foi Deus e o Diabo na Terra do Sol, quase um ano depois. 



 
O livro de Graciliano Ramos é todo fragmentado em episódios, tanto assim que ainda hoje se discute se é um romance ou uma coletânea de contos interligados. É um desses romances que acompanham um grupo de personagens não envolvidos em nenhuma “jornada do herói”, em nenhuma “demanda”.  Não estão cumprindo um arco narrativo que se encerrará de forma triunfante no desfecho. Nada disso. 
 
É o que eu chamo de “romance horizontal”, ou “romance ao rés-do-chão”. Muitas coisas acontecem, mas não vão num crescendo, rumo a um clímax. Apenas se sucedem. O filme de Nelson segue esse formato, com saltos às vezes surpreendentes de um episódio para outro. E são esses episódios que ficam em nossa memória, mesmo que um deles raramente conduza ao episódio seguinte. 
 
Fabiano e a mulher falando ao mesmo tempo, num diálogo de surdos. Fabiano a cavalo e encourado, quebrando mato na caatinga. A discussão com o Soldado Amarelo, a surra na cadeia. A morte da cachorra. A morte do papagaio. A morte da vaca. O encontro com os jagunços. O sofrimento para calçar sapatos e ir à vila. Não há um vetor dramatúrgico necessário entre esses episódios; são meio aleatórios, poderiam vir em qualquer ordem, pois não há um Fim em vista. 




 
Em mundos assim, habitado por gente a um fio de distância da morte, o tempo apenas se prolonga, sem conduzir a lugar nenhum. Uma fatalidade sublinhada pela simetria entre a primeira e a última imagem: a família se aproximando durante vários minutos, sob o sol cegante, sob o rangido angustiado do carro de boi; e no final afastando-se numa caminhada interminável, do mesmo jeito, no mesmo sofrimento, como se todas as cenas intermediárias não tivessem conduzido a coisa alguma. 
 
Sempre se elogiou muito, e com razão, a fotografia de luz estourada que Glauber Rocha e Valdemar Lima usaram em Deus e o Diabo... Ele já provém de Vidas Secas, com aquela brancura cegante. Um amigo comentou comigo, há muitos anos, que ver Vidas Secas era como dilatar a pupila no oculista e sair à rua no pingo do meio-dia. Luís Carlos Barreto (ótimo fotógrafo que depois foi fagocitado por um produtor de grandes projetos) ajudou a criar essa marca visual. O filme tem uma imagem encandeada, ofuscada por um sol imóvel e branco; e faz contraste com o alívio da penumbra nos interiores, que só entende quem já precisou se esconder daquele sol. Uma paleta xilográfica, talhada a gume de faca, de pretos-e-brancos agressivos, retomada recentemente em Sertânia (2019) de Geraldo Sarno. 





 
Um aspecto do filme que até hoje não me convence é a escalação de Átila Iório para o papel de Fabiano. O ator parece tolhido, bloqueado, preso numa camisa de força. Isso é ainda mais visível nas suas interações com Jofre Soares e Maria Ribeiro, ambos vigorosamente integrados aos seus personagens. Iório se esforça pra reproduzir a postura servil de Fabiano, sua passividade embrutecida, mas os diálogos soam falsos, e nem se trata de uma questão de sotaque nordestino. São falas decoradas e aplicadamente repetidas, mas são falas sem vida. O ator é mau? De jeito nenhum: logo depois deste filme ele faria o que talvez seja o grande papel de sua carreira no cinema, o Gaúcho de Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964), onde ele faz uso de seu vigor físico, e de um jeito de falar escrachado, provocativo, cheio de veracidade. 



 
E assim é Vidas Secas, uma sequência de episódios que se sucedem sem parecer que avançam nem no tempo nem no espaço. Uma noite de folguedo de bumba-meu-boi diante de coronéis e autoridades. Sinhá Vitória contando despesas e ganhos com o auxílio de caroços arrumados no chão. O fazendeiro rude (Jofre Soares) à mesa, pegando no dinheiro e na comida com a mesma mão. Os animais tratados com brutalidade desnecessária. A criança fatigada pela caminhada deita-se no chão, e o pai exclama; “Anda, condenado do diabo!” (uma exclamação tipicamente de Graciliano). 
 
E o menino que pergunta à mãe o que é inferno, fica sabendo que é um lugar ruim, e fica olhando em volta e repetindo: “Inferno. Inferno. Inferno. Inferno. Inferno.”  Como no verso terrível de Cruz e Sousa ("Pandemonium"). 
 
 
 
 
 





sexta-feira, 21 de junho de 2024

5074) A foto do instante irrepetível (21.6.2024)



(foto: Stanley Forman, 1975, Prêmio Pulitzer)

 
Um dos subgêneros mais interessantes da Fotografia é a famosa foto do “Instante Irrepetível”. A foto de algo que estava acontecendo diante do fotógrafo, ele clicou, e aquele brevíssimo segundo ficou capturado para sempre. 
 
São aquelas fotos que a gente olha e pensa: “Caramba... um segundo antes, ou um segundo depois, e seria impossível ter feito esta foto.” 
 
Dizemos também: “Puxa vida, que sorte haver um fotógrafo por perto, para captar um momento fugaz como esse!...” 
 
É o que acontece com a foto no início deste texto, em que Stanley Forman captou a queda de uma adolescente (que morreu) e um garoto (que sobreviveu), quando uma escada de incêndio se partiu ou se desprendeu de seus suportes, a julgar pela imagem.  Um segundo a mais, e não haveria foto. 



(foto: Robert H. Jackson, 1962, Prêmio Pulitzer)
 
 
Outro bom exemplo é a foto acima, de Robert H. Jackson. Ela também ganhou o Prêmio Pulitzer de melhor foto do ano, e registra o instante em que Jack Ruby matou a tiros Lee Oswald, o presumido assassino de John Kennedy. Não é uma foto “artística”, mas é o equivalente fotográfico a um furo de reportagem. 
 
Fotos desse tipo são feitas por profissionais que estão o tempo todo com a câmera pronta e engatilhada. Sua tarefa é estar atento, perceber a situação que se arma à sua frente, erguer a câmera, apertar o botão no momento certo. 
 
Comigo não vai acontecer nunca. Mesmo que eu veja a dez metros de altura um disco-voador com a bandeira do Treze, vou ter que parar na calçada, enfiar a mão no bolso da calça, tirar o celular, ligar, premir a impressão digital, tocar no ícone da câmera, erguer o aparelho... e a esta altura o Ovni já sumiu, ou ergueu uma bandeira do Campinense. Perdi a foto. 






(fotos: Josef Koudelka) 

 
Estas duas fotos do mestre Josef Koudelka mostram instantes assim. O menino praticamente deitado em cima do burro e os homens soltando foguetões são provavelmente cenas com que ele se deparou, fez uma porção de cliques e escolheu divulgar o que lhe pareceu mais bacana. Acredito que sejam fotos espontâneas, sem interferência dele. Talvez as pessoas nem percebessem que estavam sendo fotografadas. 
 
É diferente de uma “foto provocada”, como esta abaixo, do mesmo Koudelka, em que percebemos com clareza a interação provocativa, até brincalhona, entre o fotógrafo e os fotografados: 



(foto: Josef Koudelka) 


A foto “do instante” nem precisa ser uma grande foto, do ponto de vista da luminosidade, enquadramento e outros recursos. Às vezes é meio borrada, ou meio inclinada, mas não importa – é o registro do momento!  Um instante que nunca vai se repetir, e que alguém registrou. 
 
Será que é? Porque depois que a gente se acostuma com os truques e as espertezas dos fotógrafos, a gente começa a desconfiar. OK, essa pessoa estava ali, fez esse gesto... Mas será que não foi tudo combinado? Será que o fotógrafo não concebeu essa cena na cabeça, e depois conseguiu pessoas dispostas a “posar” com essa aparência de casualidade? 
 
Não é preciso que o modelo da foto seja alguém contratado pelo artista. Pode ser gente da rua, pessoas que não o conhecem, ou que nem sabem estar sendo fotografadas. É o caso das fotos abaixo, de Henri Cartier-Bresson, um craque nessa captação dos momentos bonitos do cotidiano. O fotógrafo vê uma poça dágua lisa como um espelho. O que faz ele? Fica discretamente de emboscada, esperando o pulo inevitável dos transeuntes. 






(fotos: Henri Cartier-Bresson) 


O fotógrafo fica à espera de que a foto aconteça, porque há um elemento (a poça dágua) que vai deflagrar a foto. Nas fotos abaixo, de Robert Doisneau (o autor da famosa foto do rapaz beijando a moça, em Paris, nas comemorações do fim da guerra), ele deixou a pintura da mulher nua, exposta na vitrine, como isca. E registrou as reações. 
 
Numa foto temos uma mulher indignada com “aquela pouca vergonha”; na outra temos uma mulher muito séria, mostrando outra pintura, enquanto o homem olha à socapa o quadro da mulher pelada. 





(fotos: Robert Doisneau) 


Essas lembranças me vieram à mente por conta de uma moda recente nas redes sociais. Fotógrafos registram quadros nas paredes do museus ou de galerias de arte, e na frente do quadro a presença de uma pessoa vestida nas mesmas cores, ou no mesmo estilo, ou reproduzindo, de alguma maneira, as formas do quadro que contempla. 
 
Tem vários exemplos; peguei alguns de autoria de Stefan Draschan: 








(fotos: Stefan Draschan) 


Isto é casual? É combinado? Pode ser qualquer uma das duas coisas. 
 
Para ser casual, seria preciso que o fotógrafo se postasse à frente de um quadro cujos elementos (cores, grafismo, etc.) pudessem aparecer nas roupas de alguém; ou ver a roupa de uma pessoa e segui-la museu afora, esperando por um quadro que “desse match”. 
 
Acho mais possível que sejam fotos construídas. Se fosse comigo, eu fotografaria algumas dezenas de quadros, expostos em lugares de fácil acesso, e mostraria aos meus amigos e amigas, sugerindo que arranjassem alguma roupa “rimando” com o quadro. 



(foto: Henri Cartier-Bresson) 

 
Isso é fake news, é charlatanismo, é má fé?  De jeito nenhum. É uma foto construída. Ela é feita para dar a impressão de foto casual, mas é um acaso fingido. O que conta ali não é a pretensão de ter flagrado um momento raríssimo, mas a revelação de uma simetria inesperada. 
 
Gostamos disso porque gostamos de tudo que rima, tudo que repete um efeito, tudo que cria uma semelhança entre duas coisas não-relacionadas. Não importa se foi aleatório ou se foi planejado, desde que o efeito pareça ser espontâneo. 
 
A pintura já fingia descobrir acasos. Veja-se este quadro de Norman Rockwell, “The Voyeur”. É uma cena imaginada e pintada com tinta a óleo, provavelmente durante dias inteiros, ou semanas. E no entanto seu charme principal é a aparência de espontaneidade, de descontração, de ser aquilo um momento fugaz da vida real que um artista registrou, não importa como. 



(Norman Rockwell, "The Voyeur") 

 
Algumas fotos parecem tão bem sincronizadas que fazem a gente erguer a sobrancelha, com desconfiança. Esta foto de Tomás de Micheli, em que Lionel Messi aparece com uma auréola angelical formada pela marca do pênalti, é certinha demais, conveniente demais. Já vi gente discutindo que foi posada pelo jogador, outros dizendo que a “auréola” foi feita digitalmente. 



(foto: Tomás de Micheli)

 
E daí? Não sei o que De Micheli argumenta em favor de sua foto, mas para mim o que vale aí não é o lado instantâneo, e sim o lado alegórico. Uma foto imaginada, planejada, executada para criar uma idéia; ela “parece” usar uma coincidência de posição, mas não é isto o seu valor principal. 
 
Um caso completamente diferente é o da foto abaixo, em que a camisa do rapaz e o forro do banco do ônibus são idênticos. Foto “armada”? Pode ser. Foto casual? Pode ser. Mas no caso de ser armada a foto não tem nenhum sentido simbólico ou alegórico como tinha a foto de Messi. É uma foto mais banal do que as fotos dos museus de Stefan Draschan. Uma foto cujo único foco de interesse é a igualdade entre os dois tecidos, e isso só teria graça verdadeira se fosse produto do Acaso. 



 
 






terça-feira, 18 de junho de 2024

5073) Drummond: "Poema da Purificação" (18.6.2024)




(Carlos Drummond de Andrade) 
 
 
O Brasil anda fervilhando de gente religiosa, a julgar pelos jogadores de futebol que atribuem a Deus os seus gols e suas copas, pelos empresários que mandam os empregados começarem o dia rezando pelos lucros da firma, pelos incontáveis shows de canção gospel, samba gospel, blues gospel, carnaval gospel e assim por diante. 
 
Não custava nada alguém organizar uma antologia poética de Carlos Drummond de Andrade reunindo todos os seus poemas que falam de Deus, meditam sobre Deus, usam Deus como personagem, examinam o conceito de Deus, agradecem a Deus, questionam Deus... Todos não, porque talvez se tornasse um volume proibitivamente grande. Mas fizesse uma seleção, porque são muitos poemas, e chega a nos parecer que são muitos poetas. 
 
É curiosa a relação de nossos literatos com a religião. Penso no caso de Machado de Assis, tido por muitos como nosso maior prosador, tanto quanto Drummond é tido como nosso maior poeta. Machado não podia evitar falar em Deus; qual de nós pode, mesmo o mais cético e descrente? Mas o tom com que ele fala! 



(João Cabral de Melo Neto)
 

Já outro cético famoso, João Cabral de Melo Neto, era uma figura trágica porque confessava: “Meu problema é que eu não acredito em Deus, mas tenho medo de ir para o inferno.” Um cínico aconselharia Cabral a fazer o contrário: não acreditar, mas ter certeza de que iria para o Céu. 
 
Entre céus e infernos arde o coração desses poetas, e ardia também o de Carlos Drummond em plena filosofia de seus 28 anos, quando estreou em livro com Alguma Poesia, onde se lê esse belo e enigmático “Poema da Purificação”. 
 
Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio. 
 
Este verso sempre me inquietou e me pacificou. Tudo bem, fala-se de combates, de guerras olímpicas entre as divindades, e mesmo um leitor que não acredita na existência de anjos não tem dificuldade em acreditar que eles lutam entre si. As guerras existem. 



(G. K. Chesterton)
 

Não estou sendo blasé – estou apenas glosando o católico Chesterton: 
 
Os contos-de-fadas não fornecem à criança a sua primeira noção do que é um monstro (“bogey”). O que eles fornecem à criança é a sua primeira idéia real de que é possível derrotar o monstro. As crianças sabem o que é um dragão, bem no seu íntimo, desde que começam a ter imaginação. O que os contos-de-fadas lhes dão é um São Jorge capaz de matar o dragão. 
(Tremendous Trifles, 1909, trad. BT) 
 
No meu raciocínio, a criança pode até mesmo não acreditar em gigantes, mas se o conto-de-fadas for bom, ela irá acreditar que eles podem ser derrotados. 
 
Carlos Drummond de Andrade, independentemente de sua fé (ou não) na existência de anjos, escreve em seu poema que o anjo bom matou o anjo mau. Isto seria o final de um conto-de-fadas – o triunfo inevitável (segundo os contos-de-fadas, os folhetos de cordel, o cinema de Hollywood) de todas as lutas do Bem contra o Mal. 
 
A diferença entre um adulto cético e uma criança que crê (não tento ser irônico) é que nenhum final feliz é bastante para o adulto. Se o Anjo Bom mata o Anjo Mau, pensa ele, isto significa que o ato de matar pode ser, em si, um ato bom? Um não-pecado? Cabe ao Bem matar os maus? Bastaria isto para justificar a morte violenta de alguém? Se eu acredito que pertenço ao lado Bom, posso sair matando quem eu acho que pertence ao lado Mau? 
 
Podem parecer questões ociosas, mas comentei dias atrás aqui no Mundo Fantasmo o sofrido poema “Outubro 1930” em que Carlos Drummond narra episódios e sentimentos da Revolução que levou Getúlio Vargas ao poder (onde ficou por quinze anos). Brasileiros matando brasileiros. Eram os brasileiros bons matando os brasileiros maus? – perguntaria a criança de Chesterton. E responderia: “Se for assim, então tudo bem”. 
 
Essa questão não se esgotou em 1930. Nos Estados Unidos de hoje, onde a proliferação de armas de fogo e de crimes gratuitos com armas de fogo tem um índice jamais visto na História, esse é um dos argumentos mais frequentes para justificar o uso de armas. Porque (dizem) se um “Bad Guy” armado tentar invadir a sua casa, é preciso haver um “Good Guy” armado para defendê-la. Precisamos do Anjo Bom. 
 
As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram. 
 
Os rios são um escoadouro tradicional para as grandes matanças. No Massacre da Noite de São Bartolomeu, em Paris, em 1572, mais de mil cadáveres de huguenotes (protestantes) foram arremessados nas águas do Sena. O rio leva, o rio lava, o rio limpa; mas às vezes há um sangue que não descora. 
 
Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador. 
 
O poeta termina sua pequena fábula com a promessa de uma luz não identificada que vem colocar as coisas às claras, e de que um outro Anjo virá cuidar dos ferimentos do Anjo Bom. Esta seria a interpretação mais óbvia do poema. (Alguém perguntará: “Mas você não diz sempre que poemas não são charadas u enigmas para serem interpretados?”. A resposta é que este poema se desenrola como uma pequena fábula, uma pequena alegoria, uma pequena narrativa com personagens e uma possível “moral da história”.) 
 
O termo usado no derradeiro verso, “anjo batalhador” refere-se ao anjo bom que venceu, ou ao anjo mau que foi morto? Se é de anjos que estamos tratando, não é impossível que o anjo morto e atirado ao rio (que era também um anjo “batalhador”, é claro) possa ter sido resgatado, ressuscitado e curado por algum colega. Ou será que os dois anjos, o bom e o mau, não seriam apenas versões parciais de um mesmo anjo, ou cópias reversas um do outro? 
 
Afinal, Drummond já usou (ou melhor – viria a usar, anos depois de Alguma Poesia) um tema análogo em “Os Dois Vigários”, em Lição de Coisas, onde conta a história de dois padres: o casto e piedoso Padre Olímpio e o dissoluto e debochado Padre Júlio, cada um deles sendo o oposto-simétrico do outro, e no final acabam “enterrados lado a lado / irmanados confundidos / dos dois padres consumidos / juliolímpio em terra neutra / uma flor nasce monótona.” 
 
Esse dúbio final feliz guarda uma última sutileza para o leitor cuidadoso. Diz o poeta que “outro anjo pensou a ferida / do anjo batalhador”. É um uso raro, mas normal e correto, do verbo “pensar” com o sentido de “cuidar, tratar convenientemente, fazer curativo”. Existe inclusive o substantivo “penso” no sentido de “curativo protetor que se coloca sobre um ferimento” (é um termo corrente em Portugal).  




(Augusto dos Anjos)


Existe uma longa história  etimológica por trás dessas formações, mas basta considerarmos que a palavra “cuidar” vibra nessa mesma região intermediária: significa “tratar com medicamentos”, significa “preocupar-se com a situação de algo ou alguém”, significa “pensar, ajuizar, formar um conceito mental”, como quando Augusto dos Anjos nos diz: 
 
Porque o amor, tal como eu o estou amando,
é espírito, é éter, é substância fluida,
é assim como o ar que a gente pega e cuida,
cuida, entretanto, não o estar pegando!
(“Versos de Amor”, em Eu e Outras Poesias
 
Pensar a ferida do anjo é cuidar dela, tratá-la com um unguento qualquer; e pode ser também ficar pensando na ferida, ficar ajuizando aquilo, ficar fazendo-se perguntas tipo: Existem anjos bons e anjos maus? Um anjo que mata outro pode ser bom? Se um anjo mau obriga um anjo bom a matá-lo, isto não acaba sendo uma vitória do anjo mau, que tornou o outro igual a si? 
 
 




sábado, 15 de junho de 2024

5072) A mecânica do humor (15.6.2024)




Vou transcrever aqui a primeira versão que ouvi desta piada, com seu inevitável sabor datado, visceralmente ligado a um momento histórico e social.
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bombeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é travesti e faz strip-tease numa boite gay.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era travesti.
 
– Ele não é. Ele é jogador do Flamengo, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
A anedota é um gênero literário ainda pouco analisado. O próprio Sigmund Freud, citado amiúde, não escreveu propriamente sobre ela, e sim sobre o “chiste”, o “gracejo” geralmente baseado num trocadilho.
 
A obra de Freud (Os Chistes e a Sua Relação com o Inconsciente, “Der Witz und seine Beziehung zum Unbewußten”, 1905) é voltada para os desvios verbais, os trocadilhos voluntários ou involuntários, que revelam associações de idéias ocultas, reprimidas, proibidas, etc.


 

Freud escreveu sobre o chiste, mas não sobre a anedota, que é uma pequena historinha, como o exemplo acima, com leis próprias de dramaturgia.
 
Uma coisa básica da anedota é que ela é (freudianamente, também) toda baseada num mal-entendido, num duplo-sentido, numa ilusão; 90% da anedota são uma história que parece estar dizendo uma coisa, e nos 10% restantes, aquilo que chamamos de punchline ou desfecho, há uma revelação, uma surpresa, uma puxada-de-tapete absoluta, que provoca o riso.
 
Um aspecto interessante da anedota é que todo mundo que escuta uma anedota ri com o seu “conteúdo”, a historinha que foi contada. Está OK. Mas na verdade está rindo por causa de sua “forma”, essa maneira de estruturar e contar a historinha.
 
Vou dar agora uma versão mais recente da piada acima:
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bombeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é miliciano e mata gente.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era miliciano.
 
– Ele não é. Ele é pastor, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
Esta versão da piada não é minha: peguei na Internet. (“Peguei na Internet” é a fórmula atual que substitui “Aconteceu de verdade, com o marido da minha prima”, etc.)
 
Repeti literalmente a verbalização do primeiro exemplo, para ficar claro que os personagens mudam, e quem nos faz rir é a maneira econômica, direta, tensa, com que a historinha é contada, e que faz com que a “mecânica” funcione. Sem perda de tempo com detalhes desnecessários, sem referências colaterais a nada que não seja a piada em si.
 
Existe uma comparação jocosa entre duas profissões. Essa comparação, contudo, precisa ser feita de acordo com essa regra: preparação breve, desfecho instantâneo.
 
É a qualidade literária da “Rapidez”, que Ítalo Calvino elogiava tanto.


 
Essa rapidez narrativa distingue o bom e o mau contador de piadas. Quantas e quantas vezes, numa mesa de bar, alguém começa a contar uma piada que a gente já conhece! E sempre acontece uma destas duas coisas: 1) alguém conta uma piada engraçadíssima, mas a  estraga totalmente, porque não soube contar; 2) alguém conta uma piada banal que a gente já ouviu dez vezes, mas desta vez a piada bate, a gente gargalha até contra a vontade.
 
Muita gente atribui esse “jeito para contar piada” ao histrionismo, a facilidade de fazer caras-e-bocas, de imitar a voz dos personagens, e de fato muita gente se vale disso. A piada pode nem ser muito engraçada, mas “Fulano é engraçado o tempo todo”. Funciona também – mas é outra coisa. Não é isso a raiz do humor da anedota.
 
A raiz desse humor consiste em 90% de preparação e 10% de surpresa, e num modo de contar que otimiza este contraste.
 
Na primeira versão acima, a piada era engraçadíssima, sim, porque o Flamengo (eram os anos 1990) vivia numa pindaíba de vitórias que dava dó, levava goleadas a torto e a direito, vivia lutando contra o rebaixamento. A frase de Joãozinho (digo por experiência própria) era dolorosamente verossímil. Mas... a piada era engraçada porque comparava flamenguistas e travestis? Bem, esse era o objetivo da piada, mas só foi conseguido através do uso correto da mecânica: 90% de preparação e 10% de surpresa na frase final.
 
Na segunda versão (miliciano / pastor), a mecânica da piada é rigorosamente mantida, e pouco importa se os alvos do deboche são os milicianos e os pastores. O conteúdo desta piada vai mudar de dez em dez anos, ou mesmo de dez em dez dias, não importa. A mecânica dela será sempre esta: o garoto diz que seu pai tem uma profissão (circunstancialmente) vergonhosa para não dizer que tem outra, aparentemente respeitável, mas que o autor da piada quer tornar mais vergonhosa ainda.
 
Não duvido que a primeira formulação dessa anedota tenha sido algo como:
 
Na época da Terceira Dinastia, na escola de Hatseph, às margens do Rio Nilo, a professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, contasse como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é escriba do templo, meu pai é construtor de pirâmides, meu pai é fabricante de papiro...
 
Na vez do pequeno Eutychius, ele disse:
 
– Meu pai é comerciante de peles de crocodilo.
 
Todo mundo ficou horrorizado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Bashma veio falar com o menino.
 
– Eutychius, eu não sabia que seu pai era comerciante de peles de crocodilo.
 
– Ele não é. Ele é sacerdote do culto de Fahd-al-Raqq, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
As funções exercidas pelo personagem vão variando de país para país, de época para época, e têm a função social de ridicularizar a última profissão citada; é por causa disso que a gente ri. Mas quando a gente vê mais de uma piada obedecendo à mesma estrutura, a gente percebe que a gente não riria do “conteúdo” se a “forma” não estivesse bem aplicada. E para a forma ser bem aplicada, é preciso que o “conteúdo” tenha um significado social para quem escuta.
 
A piada desse tipo irá morrer e renascer mil vezes, sempre substituindo os “tipos sociais” de acordo com os preconceitos da época, a realidade social da época, os conceitos de “digno/indigno”, “sério/ridículo”, etc., da época.
 
É a mecânica da surpresa que caracteriza a anedota, que é diferente do “chiste” freudiano, embora muitas anedotas usem um “chiste freudiano” para deflagrar sua surpresa, o que também é totalmente válido.
 

 
A profissão de “redator de humor” é um grande paradoxo, por ser aquela onde mais se ri e onde mais se chora. Forçado a arrancar diariamente do cérebro uma coisa engraçada qualquer, o mísero redator vê-se muitas vezes forçado ao mais aviltante dos recursos: o furto de uma piada alheia, e isso acaba se tornando um hábito, depois uma obrigação, depois um direito natural da profissão. (Como acontece na maioria das outras.)
 
Esse furto, quando criativo, acontece assim: a gente vê uma piada engraçadíssima, e volta ao começo, relendo com cuidado, e separando o que é a roupagem circunstancial (jogador do Flamengo, vendedor de pele de crocodilo, etc.) e o que é a mecânica: De que modo é feita a preparação? De que modo acontece o desfecho? Identificada a mecânica, basta substituir os pesonagens, a época, o local, e projetar a anedota num universo facilmente reconhecível pelo público.
 
A professora pediu que cada aluno da turma falasse sobre o trabalho de seu pai, como seu pai ganhava a vida. Cada um foi dizendo: meu pai é bonbeiro, meu pai é comerciante, meu pai é motorista...
 
Na vez de Joãozinho, ele disse:
 
– Meu pai é coach de auto-ajuda.
 
Todo mundo ficou assustado e a professora mudou rapidamente para o próximo aluno. Depois da aula, a colega Glorinha veio falar com o menino.
 
– Joãozinho, eu não sabia que seu pai era coach de auto-ajuda. 
 
– Ele não é. Ele é poeta de vanguarda, mas fiquei com medo que a turma me zoasse.
 
“Pano rápido.”
 


(Billy Wilder) 
 



quarta-feira, 12 de junho de 2024

5071) Uma volta em "Avalovara" (12.6.2024)




(Primeira edição, Ed. Melhoramentos, 1973)
 
 
Sou, nessa hora, a partir dessa hora, a foz terrível das coisas, o ponto ou o ser para onde converge, com suas múltiplas faces, o que o homem conhece, o que julga conhecer, o de que suspeita, o que imagina e o que nem sequer lhe ocorre que exista. 
(Avalovara, 1973, p. 135)
 
Neste ano está sendo comemorado o centenário de Osman Lins (1924-1978), autor de uma obra que não se encaixa com justeza em nenhum gênero ou corrente literária. Estou aqui terminando a leitura de Avalovara, o romance que o projetou para o grande público e que o levou a ser traduzido em várias línguas. 
 
É um romance complexo, com uma linguagem elevada, rebuscada, mas belíssima, e narra, basicamente, os três casos amorosos do narrador, Abel, com três mulheres: na Europa, durante uma viagem; no Recife, sua terra natal; e em São Paulo, a cidade onde escolhe viver.  Um trajeto semelhante ao da biografia de Osman. 
 
A imensa maioria das críticas sobre este livro se detêm em alguns detalhes cruciais: uma espiral, um quadrado, um palíndromo com 5 palavras de 5 letras, uma personagem cujo nome é um mero sinal gráfico... São alguns dos artifícios estruturais usados pelo autor. 
 
Já existe uma boa bibliografia sobre a obra de Osman. 
 
Um ótimo livro focado quase exclusivamente em Avalovara é o ensaio de Regina Dalcastagnè A Garganta das Coisas (Brasília/São Paulo: UnB/Imprensa Oficial do Estado, 2000). Uma leitura inteligente e útil, inclusive por trazer um glossário de nomes próprios e uma cronologia interna da narrativa (que é cheia de idas e vindas). 
 
Uma boa biografia é a de Regina Igel, Osman Lins – Uma Biografia Literária (T. A. Queiroz, 1988), que fornece uma boa base informativa sobre a vida do autor, fazendo, sem exagero, paralelos entre sua vida pessoal/profissional e os seus livros. 
 
São dois bons pontos de partida para se começar a estudar a obra de Osman, que é grande e variada: quatro romances, dois volumes de contos, peças de teatro, numerosos volumes de ensaios e artigos, roteiros para televisão. Sem falar nas várias coletâneas de artigos, acadêmicos ou não, dos muitos pesquisadores de sua literatura. 



Osman Lins usou como ponto de partida para Avalovara o palíndromo Sator Arepo Tenet Opera Rotas – uma frase clássica que serviu de base também para o filme Tenet (Christopher Nolan, 2020), uma aventura de viagem no tempo. As oito letras que compõem o palíndromo (S, A, T, O, R, E, P, N) sugeriram ao autor criar oito linhas narrativas diferentes, que se entrelaçam de acordo com o movimento de uma espiral no quadrado mágico. 
 
Eu não devia fazer os comentários que se seguem, porque eles acabam sendo uma espécie nova de spoiler. São aqueles comentários prévios que assustam o leitor, “espantam a caça”, fazem a pessoa pensar que o romance de Osman é uma espécie de problema de álgebra a ser resolvido. 
 
Não é nada disso! O leitor ganharia se pensasse apenas que são oito contos entrelaçados, contos que voltam, de forma recorrente, como se o autor quisesse contar oito histórias ao mesmo tempo, pulando de uma para outra ao acaso. (Não é ao acaso – é de acordo com uma regra – regra que o leitor não tem a menor necessidade de saber, para poder fruir o livro.) 
 
Lembrei do comentário modesto e sensato do tradutor norte-americano Gregory Rabassa, que verteu o livro para o inglês. Em sua memória If This Be Treason: Translation and Its Dyscontents [sic] (New York: New Directions, 2005), ele diz (trad. BT): 
 
Aqui está um livro que merece uma segunda leitura. Na segunda vez em que percorri o texto, percebi o que estava acontecendo, e vi com prazer que minha tradução tinha captado muitas coisas sem que eu soubesse ao certo, da primeira vez, o que significavam. Essa segunda leitura amplia o livro ao revelar suas verdadeiras dimensões. É o contrário de muita literatura chamada de pós-moderna, que ao invés de se alargar, ao ser relida, simplesmente murcha e é levada pelo vento. (p. 117) 
 
O comentário é bom porque reconhece que no livro de Osman existe um planejamento arquitetônico, mas também existe força, ímpeto, energia vital, entusiasmo fabulatório. Em algum momento do livro o autor emprega a imagem da jaula de metal tendo no seu interior uma onça ou pantera; é essa a dualidade do livro, de um máximo de disciplina geometrizante trazendo dentro de si uma energia vital ansiosa para escapar –  e escapando, frase por frase. 



 
Das oito linhas narrativas (todas detalhadamente indicadas no índice final do romance), “Roos e as Cidades” conta a paixão de Abel, quando viaja pela Europa, pela alemã Anneliese Roos, que ele conhece em Paris. Roos é distante, enigmática, meio desdenhosa às vezes. E é feita de cidades: olhando-a, Abel vê nela uma reprodução da Europa, seus tesouros, mistérios, indagações, viagens, um mundo a ser descoberto: 
 
Roos... Nunca vimos o quarto nem o país do outro. Conhecemo-nos como soltos no mundo. Não sei que perfume têm seus vestidos no armário; de que modo arruma suas loções, seus cremes, que cor tem seu roupão de banho e em que posição ficam as sandálias, quando as descalça na hora de dormir. Muito menos sei como é o seu pai e em que trabalha. Se o sol, em Eltville, entra na janela do seu quarto pela manhã ou à tarde; se há, na vizinhança, algum pássaro ou cão que você ouça; se detesta o cão, se ama o pássaro. (p. 228) 
 
Dessas incompletudes é feita a curiosidade erótica e afetiva, e quando Abel volta a Pernambuco encontra ali Cecília, que trabalha como assistente social num hospital do Recife. O caso entre os dois ocorre em 1962-63, época do “Recife pegando fogo” com o governo Miguel Arraes e as Ligas Camponesas. A princípio ela também se esquiva a Abel, mas os dois acabam ficando juntos, quando ele por fim descobre que ela é hermafrodita. 
 
Nesta cena, ela está na casa da família de Abel, depois de um episódio em que os dois são espancados na rua: 
 
Suspicaz, Cecília nos espreita, as mãos cerradas. Vendo as duas velas acesas em frente ao oratório, pede à minha irmã: “Apague a lâmpada.”  Obedeço. Procuro no guarda-roupa um vestido nosso, antigo, leve e limpo, que lhe sirva. Ouço o grito. Um soluço? Soluço ou grito: vejo sem querer, à luz discreta das velas, o sexo duplo e dúbio de Cecília. Verso e reverso. Bainha e faca. (p. 263-264)  
 
O segmento dedicado a ela tem o nome de “Cecília entre os Leões”, e mereceu este comentário de Julio Cortázar, que leu o livro em francês e disse em 1983, numa carta a seu amigo Eduardo Jonquières: 
 
Me alegra que tenhas gostado tanto de Avalovara, porque mesmo que não o recorde em detalhe, ficou-me como uma grande experiência de leitura. Coisas como a imagem de “Cecília, rodeada de leões” perduram em minha má memória destes tempos. Penso às vezes que as coisas mais fortes que li nos últimos dez anos é a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Lins; quase dá vontade da gente mergulhar no português em busca de outras coisas que por acaso existam.
(Cartas A Los Jonquières, Alfaguara, 2010, p. 546, trad. BT) 
 
A história com Cecília termina de maneira trágica (como a do país naquele momento) e Abel se refugia em São Paulo, onde encontra sua terceira amada – que não tem nome, é representada apenas por um sinal gráfico, e que chamarei aqui de ‘O’.



 
Esta é a personagem mais complexa, e a ela são dedicadas quatro linhas narrativas: “História de ‘O’, Nascida e Nascida” / “ ‘O’ e Abel: Encontros, Percursos, Revelações” / “ ‘O’ e Abel: ante o Paraíso” e “ ‘O’ e Abel: o Paraíso”.
 
É uma mulher de São Paulo, e dela se diz “nascida e nascida” porque “morreu” duas vezes: ao cair no poço do elevador aos 9 anos de idade, e depois, adulta, numa tentativa de suicídio com revólver. São duas mortes simbólicas mas que a transformam também numa pessoa múltipla, porque dentro dela continuam a viver as duas já morridas.
 
As duas outras narrativas do livro são meio afastadas do enredo principal. “A Espiral e o Quadrado” transcorre na Antiguidade, em 200 antes de Cristo, quando um comerciante romano de Pompéia promete a um escravo a liberdade se ele compuser um palíndromo dentro de um “quadrado mágico” – um frase que possa ser lida igualmente da esquerda para a direita e vice-versa, de cima para baixo e vice-versa.




E a última narrativa é “O Relógio de Julius Heckethorn”, também uma história de origem européia, cujo desfecho explode no Brasil. Um músico e relojoeiro constrói um relógio de pêndulo cujo mecanismo, a cada hora, toca um trecho de uma peça para cravo de Scarlatti ( a Sonata em Fá Menor, K 462). O mecanismo é concebido de tal maneira que cada trecho da peça musical é tocado isoladamente, mas com o passar do tempo eles irão se conectando, se superpondo, até que num momento futuro, e só nesse momento, a peça será executada por inteiro – e isto coincide com o clímax do romance.
 
Não me preocupo com este tipo de spoiler porque, como observou Gregory Rabassa, ler este livro pela segunda vez duplica o prazer, porque somente agora enxergamos todos aqueles detalhes, sabemos para onde estão conduzindo, sabemos o peso e a função de cada elemento aparentemente secundário ou banal. E isso duplica o poder revelatório da escrita, fazendo o leitor sentir-se no papel de um leitor onisciente, capaz de voltar no tempo e fazer com que aquelas pessoas voltem a viver, a amar, a sofrer, a matar. A segunda leitura eleva aquele drama ao quadrado. E à espiral.