segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

5151) E uma canção me consola (10.2.2025)





Que mistério tem Coutinho? O documentarista, falecido há cerca de dez anos, deixou uma obra que tem sido variadamente analisada ao longo destas últimas décadas. Há quem goste muito (a maioria), há quem não goste, há quem não se interesse. 
 
Num ponto, contudo, creio que todo mundo concorda: Coutinho tinha o dom de ouvir. Tinha a capacidade de colocar diante da câmera uma pessoa de verdade (não um ator, não um político, não um intelectual, não alguém acostumado a falar em público), e extrair dela depoimentos sinceros, espontâneos, verdadeiros (ou sinceramente mentirosos). 
 
(Falei isto porque lembrei que em O Fim e o Princípio um dos entrevistados conta como foi ao Inferno e conseguiu voltar.) 




Reza a lenda que em geral Coutinho não conversava com seus “personagens” antes da entrevista. A pesquisa era feita antes, e todos os contatos com os entrevistados ficavam a cargo de sua equipe, de seus assistentes. Quando estava tudo pronto para rodar, ele aparecia, cumprimentava, e começava a fazer perguntas. 
 
Não sei até que ponto isso era uma técnica recorrente, mas já ouvi gente comentando que este método ajuda a entrevista a ter mais peso. Uma longa conversa prévia é algo bom, mas, de certa forma, atenua a tensão de quem está sendo entrevistado. Coutinho aparecia com um certo impacto, mas deixava o entrevistado à vontade com seu jeito de falar – um tanto brusco mas espontâneo. Um tom de-pessoa-para-pessoa, que geralmente dava mais verdade àquele diálogo. 



Vi estes dias, pela primeira vez (verei outras), As Canções (2011), um filme de hora e meia que mostra pessoas cantando e conversando. 
 
A idéia de Coutinho foi muito simples: seus pesquisadores ficavam parados, no Largo da Carioca, no centro do Rio, com uma placa: “Qual é a canção da sua vida?”. As pessoas chegavam perto, cantavam, deixavam as informações. Do enorme banco de dados foram escolhidas vinte pessoas. 
 
As regras eram simples: um palco escuro, uma cadeira e a equipe de filmagem. A pessoa teria que cantar uma música apenas, “à capela” (sem instrumentação), e depois explicar por que aquela canção era tão importante para ela. 





E assim se sucedem músicas variadas, do repertório de Roberto Carlos, Jorge Ben, Noel Rosa, Tom Jobim & Chico Buarque, Silvinho, Nelson Gonçalves, Wanderléa... 
 
Séculos atrás, a música era uma experiência rara: concertos em teatros, palácios, igrejas; ou então cantorias populares para gente de pés descalços, nas praças, nas feiras, nas ruas. 
 
Hoje, é este oceano de som onipresente onde nadamos. Rádio, televisão, os aparelhos-de-som em cada casa, a eterna “muzak” dos elevadores e das esperas-telefônicas, e agora a Internet e os celulares. Nunca a música foi tão massacrante quanto nos últimos 120 anos. 




Nossa vida tem trilha sonora. O repertório é determinado em parte por escolhas nossas e em parte pelo Acaso – pelo que a rua, a cidade e os eletrônicos nos oferecem para escutar. (Nos obrigam a escutar.) 
 
Coutinho pergunta: “Qual é a música da sua vida?” Ele sabe que este é um conceito familiar à maioria dos brasileiros. Gostamos de eleger músicas especiais associadas a momentos especiais da vida. Casais que se amam gostam de escutar mil vezes, de mãos dadas, “a nossa canção”. 
 
A canção fala por eles, diz por eles o que não conseguiriam dizer sozinhos. Como no mote tradicional da Cantoria de Viola: “Poeta, diga o que eu sinto; / que eu sinto, porém não canto”




As pessoas escolhidas por Coutinho cantam bem? Sim e não. “Não” porque volta e meia estão desafinando, desentoando, semitonando, falhando uma nota mais aguda ou mais grave, “mentindo” uma frase musical mais complexa. Pudera. São vozes não treinadas, não trabalhadas. Certamente renderiam melhor, com o que já têm, se submetidas à rotina de treinos de um cantor profissional. (“Profissional”, neste caso, é quem treina com afinco, não quem recebe pagamento.) 
 
E cantam “bem”, sim. Demonstram o que a crítica chama “a musicalidade nata do povo brasileiro”, a consciência das notas a serem cantadas (mesmo que na hora a garganta escorregue).  Mesmo quando perdem algumas notas, essas pessoas geralmente demonstram sensibilidade para a frase musical, sabem levá-la até o fim, têm a percepção instintiva do seu desenho rítmico e melódico. 





Acho que na música, como na literatura, a frase importa mais do que a nota ou a palavra, no sentido de que é a unidade expressiva básica. Mesmo quando há um erro de nota ou de palavra, se a frase é forte ela se impõe, e é o que importa. 
 
As pessoas tão simpáticas e às vezes pitorescas de As Canções são não-cantores cantando num ambiente estranho, sem acompanhamento musical. De vez em quando alguém dá uma desentoada braba e a música derrapa para outro tom, o que dificilmente aconteceria se tivessem um violão acompanhando. 





Não é uma performance musical – a intenção é que seja um depoimento, mas essas pessoas demonstram o prazer singelo de cantar para uma equipe de filmagem e saberem que provavelmente serão vistas numa tela de cinema. 
 
E choram. Aquela canção sempre remexe alguma coisa. A certa altura começam a segurar um choro, naquela catarse mansa de quem domina a prática de puxar as emoções para fora e dar-lhes um polimento de vez em quando. Bons documentários têm estes momentos de deixar fluir, deixar acontecer em paz, deixar o entrevistado ir se soltando e trazendo assuntos por conta própria. 
 
Coutinho (a crítica fala isto de vez em quando) tem algo do espírito de psicanalista: aquele presença pressionante e silenciosa.  E o entrevistado se sente à vontade para responder-lhe à altura quando ele faz suas intervenções bruscas, coloquiais. “Gente conversando” e não “jornalista perguntando”. 
 







3 comentários:

CORINTIANO VOADOR disse...

Você, por vezes, transcende. Você é um voador por profissão. Me emocionei, o que pode ser uma coisa vergonhosa ou sublime! No caso, sublime.

Braulio Tavares disse...

Voa, Hugo Souza.

Anônimo disse...

Bráulio, vejo nos seus textos ou artigos (sei lá),algo muito parecido com Eduardo Coutinho, vc escreve como se tivesse conversando com a gente. O melhor é ver palavras e frases como se fossem escritas e ditas por mim.