sexta-feira, 13 de julho de 2018

4366) Adivinhações juninas (13.7.2018)




O São João nordestino é cheio de tradições que nós conhecemos “desde a mais tenra infância” e nos acostumamos a considerar nossas, tipicamente nossas, afetivamente nossas.

O que esquecemos às vezes é que essas tradições, por mais que deixem uma marca na nossa memória afetiva (na minha deixaram muitas, e profundas) não são pessoais, são coletivas. E vêm de longe.

Por exemplo: a tradição das “moças casadoiras”, na véspera do São João, antes de irem dormir, deixar uma mesa posta para uma pessoa, na sala de jantar, com a casa fechada e as luzes apagadas. As moças ficam à espreita (alguém imagina que elas estão dormindo, por acaso?) porque reza a lenda que o “fantasma” do futuro noivo virá aparecer, atraído pela ceia.

Outro exemplo: segurar nas mãos uma bacia cheia dágua, junto à fogueira, para tentar ver o próprio reflexo à luz do fogo. Reza a lenda que se a pessoa conseguir se enxergar direito, estará viva no próximo São João. Se não, não.

Sempre racionalizei esta última superstição desse modo: se a pessoa está com saúde  e mantém a bacia firme, ela se vê refletida. Já uma pessoa que balança a bacia o tempo todo (prejudicando o reflexo) é porque está enfraquecida e pode morrer. (Uma racionalização meio tênue, mas, enfim...)

A música junina guarda essas tradições.

Como em “Advinhação” (sic), de Aldemar Paiva, gravada por Marinês:

Botei a mesa com tanta alegria,
dormi pensando e meu amor não veio...
Não veio, não veio...
E tristeza se meteu no meio...
Não quero mais saber de adivinhação,
não posso mais sofrer nem esperar em vão;
desculpe São João mais resolvi
pedir a Santo Antonio um pistolão.
(Aqui, com Marinês:

Ou no clássico eterno “Brincadeira na fogueira”, de Antonio Barros e Cecéu:

Tem tanta fogueira, tem tanto balão...
Tem tanta brincadeira, todo mundo no terreiro
faz adivinhação.
Meu São João eu não, meu São João eu não
eu não tenho alegria...
Só porque não vem, só porque não vem
quem tanto eu queria...
Danei a faca no tronco da bananeira
não gostei da brincadeira
Santo Antonio me enganou...
Saí correndo, lá pra beira da fogueira
ver meu rosto na bacia
a água se derramou!

(Aqui, com o Trio Nordestino:


São tradições nossas? Sem dúvida. Mas são nossas inclusive num sentido mais amplo, um sentido que nos aproxima de culturas e épocas muito diferentes. São de todos. Nossa festa junina assimilou rituais antigos que em princípio nada têm a ver com ela.

Na minha antologia Detetives do Sobrenatural (Casa da Palavra, 2014) incluí o conto de Manly Wade Wellman “A Ceia Silenciosa” (“Dumb Supper”, 1954). É uma aventura do seu “detetive do sobrenatural”, John the Balladeer: um cantador repentista que trazendo às costas seu violão com cordas de prata anda pelas estradas dos Montes Apalaches, defrontando-se com mistérios do outro mundo.

Wellman (1903-1986) era profundo conhecedor do folclore e da cultura popular dos EUA, e utilizava esse material em seus livros.

No conto, John the Balladeer se perde na floresta à noite, durante uma tempestade, e acaba chegando a uma casa misteriosa onde encontra uma mulher jovem, que está com uma mesa posta para uma pessoa. John acabou de ouvir, na vendinha do vilarejo, uma história sobre um crime acontecido ali, anos atrás. E a mulher lhe pede que empunhe o violão e cante, para chamar alguém.

Mas eu não conseguia parar de olhar para o modo como ela tinha arrumado aquela ceia silenciosa. Sabendo que ninguém fazia mais aquele tipo de coisa, e tendo ouvido falar nela naquela mesma noite, eu estava maravilhado em encontrá-la. Minha mente ficou repassando o que tantos professores diziam sobre esses costumes, que eram coisas provenientes da Velha Europa, em que ceias silenciosas eram preparadas no início dos tempos. (p. 146)

O “noivo” acaba aparecendo; há um desfecho terrível em que o crime antigo acaba se esclarecendo, mas para mim o grande detalhe do conto é a tradição de preparar a ceia para atrair o “fantasma”.

Virando a página:

Somerset Maugham (1874-1965) é para mim um dos grandes contadores de histórias da língua inglesa. Seu conto “Honolulu” (1921) se passa no Havaí, onde o narrador conhece um jovem capitão de navio e sua bela namorada.

O capitão conta que tempos atrás o imediato do navio se apaixonou pela namorada dele (que viajava a bordo), e botou-lhe um feitiço no qual ele, sendo ocidental, se recusava a crer. A namorada (que era havaiana, como o imediato) insistia com ele: enquanto o imediato estivesse vivo, o feitiço estaria funcionando – e ele acabaria morrendo.

A moça então explica ao capitão que se o sujeito

... fosse persuadido a olhar dentro de uma cabaça, cheia de água a ponto de produzir um reflexo, e esse reflexo fosse destruído ao se agitar a água, ele morreria, como se tivesse sido atingido por um raio; porque aquele reflexo é a sua alma.

Assim é feito, o imediato morre, e o capitão escapa.

Nem vou entrar aqui no gigantesco capítulo antropológico do uso da imagem como equivalente da alma ou da vida: a imagem no espelho, a imagem na fotografia, a imagem num pequeno boneco.

Volto ao ponto anterior: essas tradições são nossas porque são de todos. De todos os lugares e de todas as épocas. Antropólogos não têm feito outra coisa, de James Frazer a Lévi-Strauss, senão traçar esses mapas comparativos de imagens recorrentes. Tão recorrentes que fizeram C. G. Jung propor a teoria de um “inconsciente coletivo” que alimentaria todas as culturas humanas, como um profundo lençol freático de coisas que nos emocionam antes que sejamos capazes de explicá-las.












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