Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 30 de maio de 2010
2097) A primeira revista de FC (27.11.2009)
(ilustração: Marcelo Grassmann)
Há um certo consenso, entre os historiadores de ficção científica, de que o gênero ganhou existência editorial própria a partir de 1926, com a criação da revista Amazing Stories, de Hugo Gernsback, onde o termo “science fiction” começou a ser usado. Claro que antes disso já havia uma literatura inteira: Julio Verne, H G. Wells, todo esse pessoal das “voyages extraordinaires” francesas e dos “scientific romances” britânicos. Mas os norte-americanos gostam de contar a História Universal a partir dos seus próprios feitos. (Os brasileiros, se pudessem, fariam o mesmo.) E há muito tempo que virou uma espécie de esporte acadêmico indicar revistas em outros países que, com certa flexibilidade de critérios, pudessem ser indicadas também como “a primeira revista de FC”, ou pelo menos uma precursora (a primeira revista de contos fantásticos).
A pesquisadora sueca Ahrvid Engholm trouxe agora, através da lista de mensagens Rede Global Paraliterária (RGP), um título que me parece imbatível. Trata-se de Relationes Curiosae, revista publicada em Hamburgo (Alemanha) em 1682 e traduzida para o sueco e republicada em Estocolmo no mesmo ano. A revista tinha um título alternativo em alemão, "Gröste Denckwürdigkeiten der Welt", e sua edição sueca teve 48 números, que estão arquivados na Biblioteca Nacional de Estocolmo. Diz ela: “Tenho fotocópias de alguns números escolhidos, ilustrações, capas, etc. Ao que parece, a edição alemã, editada por um tal E. W. Happel, também está preservada em bibliotecas alemãs. O Google dá várias indicações. (...) Quanto ao conteúdo da revista, ela consiste em histórias fantásticas do começo ao fim. Histórias sobre dragões, sereias, pessoas morando na Lua, carruagens que andam sozinhas, pessoas vivendo no fundo da terra, fogo que não se apaga, etc. De acordo com o estilo da época, as histórias são contadas como se fossem contos de fadas. Por exemplo: ‘Fala-se que na Inglaterra, naquela época, as pessoas ficaram espantadas com estranhas criaturas que surgiram do fundo da Terra... Os anciãos decidiram que as criaturas deviam aprendem a língua local e viver no meio deles’. Ou então: ‘Era uma vez um grupo de bravos cavaleiros que enfrentaram um dragão maligno...’”
A literatura fantástica é antiga como o mundo, está presente na literatura oral, nos mitos, lendas, fábulas. Rastreamos sua presença em publicações impressas pós-1500 porque o paradigma realista se impôs a tal ponto que o que antes era a regra tornou-se a exceção. Essas histórias recuaram para segundo plano diante do crescimento do romance burguês, factual, analítico, “realista”. A descoberta da Prof. Engholm não será necessariamente a última. Mas ela traz mais um elemento importante na história dessa literatura que tenta reproduzir a totalidade do Universo, até porque, como disse Jorge Luís Borges, “ainda não sabemos se o Universo pertence ao gênero realista ou ao gênero fantástico”.
2096) As escolhas de Sofia (26.11.2009)
Eu estava no interior do HD Universal, que é um complexo de galáxias onde está gravada a Memória do Universo. Não recordo como fui transferido para lá; mas, mais importante do que o “como” é o “por quê”. Num espaço esférico cheio de luz e sem sombras, vi-me cercado por uma dúzia de vultos altos, de aspecto vagamente humano, que se comunicavam comigo através de corpúsculos telepáticos (sim, amigos, o pensamento não consiste em ondas, e sim em partículas). Sintonizado com sua mente coletiva, fui informado da razão de minha presença ali. Disseram-me que a Humanidade terrestre havia atingido um ponto de saturação informacional. Já tinha coisa demais; era preciso deletar uma parte de nossa cultura, a fim de que ela tivesse espaço para continuar se desenvolvendo.
Me informaram que era um trabalho feito periodicamente, assim como limpamos nosso disco rígido e esvaziamos nossa lixeira. Minha presença ali era para representar a raça humana no momento de tomar decisão – numa área, garantiram-me, sobre a qual eu estava perfeitamente capacitado para opinar. “Um desses movimentos culturais será deletado e sumirá para sempre da memória humana”, explicaram-me os vultos em uníssono. “Cabe a ti decidir qual deles: a Bossa Nova ou a Jovem Guarda?”. Meditei durante alguns milênios (menos por indecisão do que pelo deleite de saborear milênios) e proferi meu veredito: “Entre o barquinho e o calhambeque, fico com o calhambeque”. Retornei ao mundo, ao Brasil, ao Rio, e ninguém jamais tinha ouvido falar em Vinícius, Tom Jobim, João Gilberto, Menescal & Bôscoli... Até Fernanda Takai, coitada, tinha sumido (o Pato Fu tinha agora em seu lugar uma vocalista loura e saradona). Em compensação, o Aeroporto do Galeão se chamava agora Aeroporto Ronnie Cord.
Cometi um crime, leitores? Talvez, no que tange à cultura brasileira. Mas fui sincero comigo mesmo. Vivi o alvorecer, o zênite e o crepúsculo dos dois movimentos, e por alguma razão (que não me cabe diagnosticar) meu cérebro sempre me inclinou para a Bossa Nova e meu coração para a Jovem Guarda. Acho João Gilberto um gênio, mas quem me emociona é Erasmo. Entre o Zimbo Trio e Renato e Seus Blue Caps, divulgo o primeiro entre meus amigos gringos, mas é o segundo que escuto em casa. Tudo isto porque nunca saberemos o que vai marcar afetivamente nossa infância e adolescência.
Questionado sobre os tchecos que têm saudade do comunismo, Lech Valesa (O Globo, 10.11.2009) observou: “Há pessoas que têm nostalgia do passado, da época do primeiro amor, que por coincidência total foi na era do comunismo. Essas pessoas podem ter nostalgia dessa época, mas isso não significa que tenham saudade do comunismo. Além disso, as pessoas que eram crianças e adolescentes nessa época não sabem avaliar direito como era, o que havia de errado no sistema”. Nossas lealdades afetivas se formam à revelia de nossas idéias, e muitas vezes não conseguimos distinguir entre umas e outras.
2095) No coração do colonialismo (25.11.2009)
Publicado em 1899, O Coração das Trevas de Joseph Conrad é o necrológio oficial do Colonialismo, esse formidável zumbi que, por mais que seja morto, levanta-se da tumba, e continua malassombrando o século 21 com jeito de quem ainda vai estrebuchar até o 22.
Os manuais históricos nos dizem que o colonialismo é a internacionalização do capitalismo. Depois de explorar ao máximo o proletariado em seus próprios países, o Grande Capital começa a se defrontar com as reivindicações (quando não as revoluções armadas) dos operários locais. O que faz? Estica seus tentáculos e vai explorar os indígenas desavisados de continentes remotos, onde existe alguém disposto a trabalhar 14 horas para ganhar um dólar e ficar feliz da vida.
O livro de Conrad é uma obra fundadora do romance moderno. Não passa de uma noveleta (minha edição, da Penguin, tem 111 páginas), mas sua essência concentrada reverbera ainda hoje, na poesia de T. S. Eliot, na ficção científica de J. G. Ballard, no cinema de Francis Coppola, em milhares de outros ecos.
A idéia básica de Conrad (conscientemente ou não) é de que o Colonialismo é uma espécie de Dr. Jekyll cujo Mr. Hyde não se manifesta através de uma poção, mas de um navio. Basta afastar-se do mundo civilizado para que o nobre doutor retroceda a um passado bestial gravado em seus cromossomos.
A civilização só se realiza às custas do não-civilizamento de alguém. Li em alguma parte que “um lorde inglês é um produto refinadíssimo da civilização, e para produzir cada um deles é necessária a fome e a escravidão de centenas de orientais”.
Uma boa análise de Conrad é a de Luiz Costa Lima em seu ensaio O Redemunho do Terror (Ed. Planeta, 2003). Ele cita (p. 199) Conrad, que diz: “A criminalidade da ineficiência e o puro egoísmo, ao se apoderarem do trabalho civilizador na África, são uma idéia justificável”.
É essa a idéia sugerida por Conrad ao editor a quem propõe a publicação de Heart of Darkness. O colonialismo consiste num processo onde se combinam, de um lado, um discurso desinteressado, iluminista, civilizatório, e do outro uma prática rapace, primitiva e massacrante. O colonialismo se expande com o pretexto de expandir a civilização, as luzes, a cultura, as liberdades democráticas. Na verdade, diz Costa Lima (p. 154), “a expansão do horror não se dá por motivos ocasionais senão que deriva de um sistema cujo centro precisa de gerar uma periferia”.
A criação dessa nova periferia, sob o pretexto de civilizá-la, é (p. 212) “resultante da atuação de um modo de racionalidade, a econômica, que estimula a avidez contra os não-brancos, trazendo-lhes o sofrimento físico, a espoliação, a humilhação moral e o sentimento de inferioridade”.
O coração das trevas é um produto da mesma civilização que criou o Século das Luzes. As luzes são para consumo interno das mansões e palácios. Lá fora, que reine o escuro, atenuado apenas pelos olhos das feras que espreitam.
2094) De Chandler para Hitchcock (24.11.2009)
(Raymond Chandler)
Depois de se tornar um romancista de sucesso, Raymond Chandler virou roteirista de Hollywood, um desses prêmios punitivos com que o sucesso nos atraiçoa de vez em quando. Ganhou um bom dinheiro, passou a beber o dobro e a se desesperar o triplo.
Fez algumas coisas boas; talvez se deva a ele algo do muito que há de bom em Pacto Sinistro (“Strangers on a Train”) de Hitchcock. É justamente numa carta sua para Hitchcock, datada de 6 de dezembro de 1950, que encontramos um conselho que embute uma crítica velada, mas uma crítica formulada com as precauções de quem sabia estar lidando com uma prima-dona.
Diz Chandler:
“Na qualidade de amigo, e de alguém que só lhe deseja o melhor, sugiro que ao menos uma vez, em sua carreira longa e vitoriosa, você construa seu roteiro à base de uma história sólida e bem tramada, e não sacrifique nenhuma parte dessa solidez para obter um ângulo de câmara fora do comum. Sacrifique a posição da câmara, se necessário. Sempre haverá oportunidade para fazer uma tomada igualmente boa. Mas nunca haverá a chance de encontrar uma motivação igualmente boa”.
Chandler diz (muito diplomaticamente) que muito da obra de Hitchcock consistia em planos visualmente fascinantes, movimentos ou ângulos de câmara que encantavam espectadores e críticos, às custas da verossimilhança ou da coerência da história.
Hitchcock era um excepcional narrador cinematográfico, no que diz respeito a contar as coisas através de imagens. A motivação (as razões humanas subjacentes à trama, que fazem os personagens se comportarem de uma forma e não de outra) ficavam muitas vezes em plano secundário.
Vemos isso em muitas das sequências clássicas hitchcockianas: o que acontece na tela é implausível e um tanto improvável, mas está contado com tamanho brilho (câmara, montagem, música, etc.) que esquecemos as críticas e nos deixamos arrebatar pela cena. Isso ocorre em seus melhores filmes: Intriga Internacional, O Homem que Sabia Demais, Pacto Sinistro, Psicose, etc.
Chandler levava a motivação a sério, muito mais do que a média dos escritores do romance policial “noir”, onde os personagens tomavam atitudes intempestivas e imprevisíveis o tempo inteiro. A crítica que ele faz a Hitchcock é a mesma que (segundo observa Scott Westerfeld, no Blog em que transcreve essas cartas) se pode fazer a um escritor que deixa a motivação em segundo plano apenas pelo gosto de criar uma frase brilhante, uma comparação fora do comum.
O que ocorre, na maioria dos casos, é que escritores e cineastas de tendência estilística se deixam cativar por essas pequenas façanhas de brilhantismo técnico, mas o público, embora as perceba, percebe também que quando elas aparecem é sempre às custas de algo que subjaz ao estilo, e que é a história propriamente dita, ou seja, o que Chandler chama de motivação. É como uma escada de madeira onde um degrau é de celofane colorido: mais vistoso, mais chamativo, mas sem firmeza.
2093) Contracapa de torpedo (22.11.2009)
(www.imagesavant.com)
& Hitler, Buffallo Bill, Salvador Dali, Nietzsche, Billy Blanco, Stálin, Cantinflas: o bigode como assinatura & o câncer é a vingança do cigarro & existem feiúras agradáveis e belezas repulsivas & uma piscina sob o tapete & os punhos fechados, os olhos abertos, o coração abrindo e fechando & o ciúme é a soma do medo de perder com a raiva de dividir & viver com um artista é como morar num prédio de Niemeyer & a beleza do mundo está na lente dos óculos & a síncope musical é como uma coluna arquitetônica sem o seu terço médio & quem vê a laranja intacta não conhece a laranja & o tempo não é linear como o espaço, é turbulento, caótico, probabilístico, browniano & formigas de aço cortando e carregando folhas de plástico & precisa uma cama com oito pés, porque o rojão aqui é pesado & por que não temos cinemascope na vertical? & estruturalisticamente, é demonstrável que os quatro evangelistas mais divergem do que coincidem & purpurinas verbais, lantejoulas estilísticas, silicones narratológicos, e uma cadeira na ABL & desligo a televisão com a mesma angústia com que fecho uma janela em pleno dia & minha memória é um campo minado onde nunca sei que lembrança aleatória vai fazer meu dia voar pelos ares em estilhaços de culpa e expiação & a toda hora tem um mistagogo enfiando uma falcatrua nas entranhas do país e arrebanhando o ouro gordo da sua boa fé & ao invés das artes de Marte quero mil vezes os venenos de Vênus & fazer uma pergunta é criar uma porta; fornecer uma resposta é abri-la & eu queria a glória dos Irmãos Lumière, aquela de criar, mesmo sem crer & um jogo de sinuca bidimensional, com círculos que se entrechocam e ao atingirem o lugar correto transformam-se em esfera e rolam pelo papel afora & nem mesmo as anêmonas de amônia que nadam nos gases de Júpiter estão livres do medo, da esperança, da solidão e do amor & perdido no deserto, e a única sombra à vista é a minha, que não pode me abrigar & um inferno composto de quartos úmidos, inverno sem fim, cinzeiros cheios e café frio & às vezes é melhor declarar guerra a um país vizinho e alistar os criminosos & com quantos círculos se pode preencher um círculo maior? & a polícia só toca a campainha ao amanhecer & esquecer não é deletar, é diluir & em que ano será implantado o primeiro controle remoto de TV subcutâneo? & espatifou um cálice entre os dedos cerrados e só percebeu no dia seguinte & quando um notório mentiroso diz uma verdade evidente, qual dos dois contamina o outro? & um homem com teclas de piano no lugar dos dentes & sim, eu sei que o prédio está se incendiando, mas não tem quem me faça sair de casa com os cadarços desamarrados & a rã salta no poço há mil anos presa no loop de um poema & não se pode acertar sempre, mas não se deve errar tanto & um país pode enlouquecer sem que nenhum dos seus habitantes o perceba & o ser humano come realidade e bebe fantasia &
2092) O Vaticano e os extraterrestres (21.11.2009)
Referi dias atrás um depoimento de Dom Hélder Câmara sobre a ficção científica, no qual o simpático Arcebispo de Olinda afirmava que “o Homem por entre as estrelas é uma coisa que não escandaliza Deus”. A Igreja Católica, que infernizou a vida de Copérnico e Galileu, acabou aceitando a idéia de que é a Terra que gira em torno do Sol, e não o contrário. Ao que parece, essa aceitação não diminuiu muito a credibilidade da Bíblia. Os que deixam de acreditar nela, em sua imensa maioria, a abandonam em benefício de uma hipótese religiosa alternativa, não de uma crença científica. O maior adversário do Cristianismo não é a Ciência, são as religiões que oferecem hipóteses mais sedutoras (ou prometem mundos-e-fundos com maior cara-de-pau).
Agora, o noticiário dá conta de que o Vaticano sediou, a partir deste 10 de novembro, a Semana de Estudos de Astrobiologia, organizado pela Pontifícia Academia de Ciências. É o tipo do evento que eu esperaria ser patrocinado em qualquer outro lugar, menos ali. Transcrevo abaixo a programação, conforme divulgada nos jornais:
“A programação foi organizada em oito módulos: A Origem da Vida (como as moléculas se organizaram para que a vida começasse); Habitabilidade Através do Tempo (como a Terra manteve a vida ao longo de sua história geológica); Ambiente e Genomas (como a vida e o ambiente interagiram no tempo geológico); Detectando Vida em Outros Lugares (perspectivas e técnicas para encontrar vida em ambientes fora do Sistema Solar). Estratégias de Busca para Planetas Exosolares (explica as técnicas usadas para encontrar planetas ao redor de outras estrelas e determinar suas propriedades); Formação de Planetas Exosolares (como os planetas se formam como parte do processo de formação das estrelas); Propriedades dos Planetas Exosolares (modelos de computador, dados astronômicos e alguma especulação sobre as propriedades desses planetas); e Inteligência em Outros Locais e Vida Sombria (existência de formas de vida inteligente e também baseadas em uma bioquímica diferente da terrestre).”
Existe dentro da Igreja Católica, como existe em qualquer organização religiosa suficientemente grande e complexa, um grupo de pensadores que trata de preparar uma interface entre a doutrina religiosa tradicional e as descobertas científicas. Nem sempre esses grupos trabalham em paz. São incomodados o tempo inteiro pelos grupos mais conservadores, os fundamentalistas da escritura, aqueles para quem qualquer nova informação que contradiga ou pareça contradizer o texto sagrado deve ser perseguida. A notícia afirma que no ano passado o jornal oficial do Vaticano trazia um artigo intitulado “Aliens São Irmãos”, onde se afirmava que buscar formas de vida extraterrestres não contradiz a crença em Deus. Aos poucos, a Igreja se desprega do modelo geocêntrico e busca ampliar sua jurisdição espiritual para abranger outros sistemas e outras galáxias. Já não era sem tempo.
sábado, 29 de maio de 2010
2091) “O Coração das Trevas” (20.11.2009)
Há quem diga que o século 19 terminou com a guerra de 1914-1918. Há também quem diga que ele se encerrou (e com ele a Era do Colonialismo) em 1899, quando Joseph Conrad publicou em forma serializada, no Blackwood’s Magazine, sua novela Heart of Darkness. O livro, de certa forma, sepultou qualquer resíduo de crença que um europeu sensato pudesse ter sobre os benefícios da cruzada européia para espalhar o capitalismo, a civilização e os bons modos por entre os povos selvagens do mundo. O que o livro de Conrad nos diz é que “o homem que nesta terra miserável vive entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”. A civilização prevalece em seu próprio centro, mas quanto mais se afasta dele mais é impotente para vencer a selvageria. Não é que os homens civilizados sejam derrotados em batalhas pelos selvagens; é que eles próprios, quanto mais se afastam da civilização, mais selvagens se tornam.
Marlow, o narrador, recebe o comando de um barco a vapor e a incumbência de subir um rio, a partir da foz, em busca de um tal de Kurtz, encarregado de um entreposto comercial no meio da selva. Durante a viagem, fica chocado com a crueldade, avareza e mediocridade mental dos europeus que encontra, e com a degradação física em que vivem os negros. Quanto mais se aproxima de Kurtz, mais ouve histórias a respeito do seu carisma, da sua eloquência e dos seus nobres propósitos. Os indivíduos que o conheceram têm a impressão de ser ele um homem de personalidade notável. Ao mesmo tempo, circulam histórias contraditórias sobre sua ambição e seus métodos cruéis e implacáveis no comércio clandestino de marfim. O encontro de Marlow com Kurtz confirma as duas versões sobre este.
A maior parte das pessoas (eu, inclusive) tomou conhecimento da história de Marlow/Kurtz através do filme de Francis Coppola Apocalipse Now, que mantém grande parte do enredo de Conrad, transpondo-o para o século 20 e para a selva do Vietnam. Com Martin Sheen no papel de Marlow e Marlon Brando no de Kurtz; podemos dizer, também: “e com a Guerra do Vietnam no papel do colonialismo europeu do século 19”.
Kurtz é mais um dos heróis trágicos que, no transcorrer de uma demanda, se transformam em sua própria negação. Intelectual, pintor, artista plástico, orador de talento (embora só saibamos disso indiretamente, através dos testemunhos dos que o conheceram), ao mergulhar no coração das trevas ele se torna um carrasco dos indígenas, traficante, assassino, e se entrega a prazeres bestiais que são insinuados e sugeridos por Conrad. Marlow, que viaja centenas de quilômetros rio acima, enfrentando os selvagens, para resgatar Kurtz, deixa-se fascinar e horrorizar por esse europeu que, como em certos filmes de ficção científica, transforma-se pouco a pouco em monstro, e revela que a monstruosidade já estava no seu próprio DNA, já era a condição essencial da tarefa pseudo-civilizatória a que se entregou.
2090) Conselhos de Raymond Chandler (19.11.209)
(Chandler, por Michael J. Balzano)
Até hoje não sei o que é melhor em Raymond Chandler: se os seus romances policiais ou as suas cartas.
A publicação das cartas de gente famosa é uma fábrica de anticlímaxes. Sua única utilidade, em geral, é provar a um zé-ninguém como eu que Fulano e Sicrano também não passavam de zés-ninguéns.
Chandler é diferente. Suas cartas têm toda a precisão e originalidade que encontramos em seus livros, além de uma visão do mundo ao mesmo tempo amarga e compassiva. Chandler era um cínico afetuoso, um realista capaz de gestos românticos. E um escritor que sofreu e lutou para chegar a sê-lo.
No blog de Scott Westerfeld (http://scottwesterfeld.com/blog/?p=1889), alguns conselhos de Chandler (que começou a escrever aos 45 anos) aos escritores-em-botão. Numa carta de 1948, diz ele:
No blog de Scott Westerfeld (http://scottwesterfeld.com/blog/?p=1889), alguns conselhos de Chandler (que começou a escrever aos 45 anos) aos escritores-em-botão. Numa carta de 1948, diz ele:
Minha teoria é de que os leitores apenas pensam que o que lhes interessa é a ação. Na verdade, embora não saibam, ligam muito pouco para isto. O que os atrai, e me atrai, é a criação de emoção através de descrição e diálogo. O que eles lembram, e que não sai de sua cabeça, não é, por exemplo, que um homem foi assassinado, mas que no momento de ser morto ele estava tentando pegar um clip na superfície polida de sua mesa, e o clip escapulia dos seus dedos, de modo que havia uma contração no seu rosto e sua boca estava entreaberta numa espécie de sorriso tenso, e a última coisa que passava pela sua cabeça naquele instante era que iria morrer. Ele nem sequer escutou alguém batendo à porta. O maldito clip continuava escapulindo dos seus dedos e ele teimava em não querer empurrá-lo até a borda para fazê-lo cair sobre sua mão aberta.
Esses detalhes circunstanciais tornam uma cena algo único, e portanto algo mais vívido e mais verdadeiro. Leitor burro é inseguro, precisa encontrar a todo instante uma confirmação do que já sabe – se o cara que vai morrer é um milionário, por exemplo, ele não pode estar pegando um clip, tem que estar contando dinheiro, ou algo assim.
O leitor inteligente sabe que muitos momentos de nossa vida se concentram assim, em detalhes totalmente insignificantes, que passam a significar não pelo que são, mas pelo foco que nossa atenção lhes concede.
Uma cena notável de Heart of Darkness de Conrad é quando o barco a vapor segue pelo rio e é atacado pelos selvagens; o timoneiro é atingido por uma lança no convés e Marlow, o narrador, agarra-o durante a queda. No momento seguinte ele sente que seus pés estão molhados e quentes, e percebe que está com os sapatos encharcados de sangue. Ele larga o corpo do timoneiro:
Uma cena notável de Heart of Darkness de Conrad é quando o barco a vapor segue pelo rio e é atacado pelos selvagens; o timoneiro é atingido por uma lança no convés e Marlow, o narrador, agarra-o durante a queda. No momento seguinte ele sente que seus pés estão molhados e quentes, e percebe que está com os sapatos encharcados de sangue. Ele larga o corpo do timoneiro:
“Eu estava morbidamente ansioso para trocar meus sapatos e minhas meias. (...) Puxei o cadarço, freneticamente. (...) Arremessei o sapato no rio, por cima da amurada”.
Detalhes assim, paradoxalmente, tornam mais real a morte de um indivíduo (pela reação que provocam em outro), muito mais do que uma frase grandiloquente ou uma descrição melodramática.
2089) Um cotidiano à fantasia (18.11.2009)
A fotógrafa mexicana Dulce Pinzón abre no fim deste mês uma exposição em Nova York na qual retrata imigrantes mexicanos nos EUA executando trabalhos cotidianos com uniformes de super-heróis. Ela forneceu as fantasias e fez as fotos enquanto os mexicanos trabalhavam. Vai daí que vemos o Homem Aranha pendurado em cordas, limpando pelo lado de fora as vidraças de um arranha-céu; o Tocha Humana no balcão de um restaurante, flambando comida na frigideira; O Coisa empunhando uma britadeira numa construção civil; Batman com uma lanterna, no escuro de um estacionamento, iluminando o caminho para os clientes; o Incrível Hulk descarregando um caminhão de carga; o Super Homem fazendo entregas de bicicleta, a capa esvoaçando ao vento; a Mulher Gato servindo de babá para crianças louras; o Dr. Fantástico, o “homem elástico”, trabalhando de garçon, pegando um prato no balcão com um braço alongado e entregando na mesa com o outro.
Como se vê, as fotos são cuidadosamente ensaiadas e preparadas para “passar uma idéia”, harmonizando o super-poder de cada herói à tarefa de cada trabalhador. Diz a artista que os verdadeiros heróis são as pessoas que trabalham nos serviços simples do cotidiano, recebendo salários baixos e enviando parte deles para ajudar suas famílias na terra natal. As fotos podem ser conferidas aqui: http://tinyurl.com/yjnpewq.
OK, tudo não passa de uma encenação momentânea para produzir uma obra de arte. Mas isso alarga uma fresta importante em nossa cultura, fresta que talvez tenha sido aberta durante a década de 1960, com a Contracultura, o movimento hippie, etc. Naquele tempo, vigorava, na maioria dos países, uma certa padronização de roupas. Tenho fotos de meu pai em Campina Grande na década de 1940: cerca de cinquenta homens, numa solenidade de inauguração, ao ar livre, no pingo do meio-dia, todos eles vestindo ternos brancos. Hoje em dia, se você pegar um ambiente semelhante e pessoas semelhantes, cada um vai estar vestido como lhe apraz: manga de camisa, roupas de todas as cores. Alcancei o tempo em que caixa de banco não podia usar cabelo grande nem barba, e tinha que trabalhar de camisa social branca e gravata. Uma das imagens mais surpreendentes que me lembro de ter visto foi a da linha de montagem de uma fábrica inglesa nos anos 1980: uma porção de operários junto à esteira rolante, aparafusando peças, sendo que um deles é um punk com um gigantesco cabelo moicano pintado de roxo.
Chamo a isto uma tendência irreversível. As pessoas irão cada vez mais carnavalizando seu cotidiano, teatralizando suas indumentárias, indo ao trabalho, aos passeios ou ao cinema com roupas de super-herói ou “de personagem”. Sinais disso são o crescimento exponencial de decorações como piercings, tatuagens, etc. O mundo de daqui a algumas décadas será um baile à fantasia. Vou deixar prontos por aqui meu camisolão e cajado de Profeta.
2088) O suicídio do goleiro (17.11.2009)
(Robert Enke)
Os jornais desta semana estão cheios de comentários sobre o suicídio do goleiro Robert Enke, do Hannover e da seleção alemã. O jogador, de 32 anos, sofria de depressão sem dizer a ninguém, exceto à esposa. No dia 10 passado, ele parou seu carro perto de um cruzamento com a via férrea, deixou a porta aberta e caminhou até os trilhos, onde foi atingido pelo trem. A polícia e a família encontraram uma carta de despedida deixada por ele em casa.
Muitas vezes nos queixamos (eu inclusive) da “marra” ou da pretensão de muitos atletas, no futebol e em outros esportes. O futebol está “assim” de jogadores arrogantes, cheios de empáfia, que se consideram semideuses, sem falar nos que, por serem evangélicos, afirmam estar em contato permanente com Jesus e que é Jesus quem lhes proporciona os gols que fazem e os títulos que ganham. (O que me dá a impressão de que existem milhões de “Jesuses” por aí, cada qual patrocinando um jogador diferente.) A verdade é que sem inventar essas couraças protetoras nenhum deles resiste à enorme pressão que sofre. A gente se esquece às vezes do sacrifício que é para um rapaz (que em geral, no nosso futebol, vem de família humilde) para enfrentar a via-crucis das divisões de base, onde milhares são chamados para que meia dúzia deles sejam escolhidos. Arranjar um empresário. Conseguir teste num clube. Agradar o técnico. Encontrar espaço no elenco (formado sempre por “macacos velhos”, escolados, no meio dos quais o garoto de 17 vai ter que se afirmar). Discutir contrato. Dar entrevistas justificando qualquer bobagem. Ser aplaudido pela torcida. Ser vaiado pela torcida. Passar 90 minutos levando pontapés e cotoveladas de sujeitos tão determinados e tão a-perigo quanto ele próprio. E por aí vai.
Meus amigos cantores e músicos vivem se referindo à pressão de subir no palco, ao nervosismo de enfrentar platéias... Bobagem. Sei que é verdade porque sinto a mesma coisa, quando é o meu caso, mas num show o artista está diante de gente que saiu de casa para aplaudi-lo. Estou com esta idade e não me lembro de ter visto um show, entre os milhares a que já compareci, em que o artista saísse do palco embaixo de vaias e de bagaços de laranja. No futebol, isso acontece dia sim dia não.
Adriano, hoje no Flamengo, comentou, após a morte de Enke, o período difícil que teve a partir de 2004, quando, depois da morte de seu pai, começou a beber. Deixar o rígido futebol europeu e voltar ao Rio foi uma decisão criticada por parte da imprensa (“falta de profissionalismo”), mas em última análise deve ter sido uma decisão sábia. Existem momentos em que o sujeito está tão pressionado para mostrar desempenho que só dorme se beber. Se isto acontece até com intelectuais maduros, com um enorme acervo de desculpas filosóficas pré-moldadas, por que não com um rapaz de vinte e poucos anos, que só sabe correr atrás de uma bola? Não tem bola que valha uma vida.
2087) Dois gestos de nobreza (15.11.2009)
(Descartes e a Rainha Cristina)
Dizem os livros de História que o filósofo Diderot, um dos enciclopedistas franceses, vivia perseguido por problemas financeiros. A certa altura da vida, já famoso, precisou levantar dinheiro para o dote de sua filha, que iria se casar. Aperta daqui, aperta dali, em 1765 Diderot tomou a decisão de vender a biblioteca que tinha acumulado durante a vida inteira, e enviou cartas para seus contatos em toda a Europa, explicando sua decisão e aguardando ofertas. Um dia chegou-lhe às mãos uma carta de Catarina II, imperatriz de Rússia. Dizia ela que, sendo uma admiradora do filósofo, dispunha-se a comprar sua biblioteca pelo preço que ele solicitava. Havia apenas um porém: a imperatriz, por uma série de motivos, não podia providenciar a transferência imediata da biblioteca (alguns milhares de volumes) para Moscou. Precisava, portanto, contratar um bibliotecário de sua confiança para cuidar dos livros até que eles pudessem ser transportados para a Rússia. O bibliotecário receberia um salário anual pelos seus serviços. Por acaso Monsieur Diderot estaria interessado em ocupar esse cargo?...
De Diderot passamos para René Descartes, o famoso filósofo do “Penso, logo existo”, o inventor do eixo de coordenadas x e y (para mim a maior invenção humana entre a roda e a Teoria da Relatividade). Descartes era um filósofo meditativo, gostavava de dormir tarde e acordar tarde, o que dá uma medida de seu bom senso. Em 1649, já famoso em toda a Europa, recebeu a pior coisa que um homem sossegado pode receber: uma proposta irrecusável. Cristina , Rainha da Suécia, o queria como professor de Filosofia, e enviou um navio para trazê-lo a Estocolmo. A rainha tinha 19 anos, era culta, atlética, gostava de cavalgar no frio escandinavo. (O filme sobre ela, com Greta Garbo, é bom, mas considerado bastante fantasioso.) Instalou Descartes num palácio próximo ao seu, e determinou que ele lhe daria aulas diárias, começando às 5 da manhã, em pleno inverno sueco. Na corte, poucos nobres suportavam o ritmo da rainha, que dormia apenas cinco horas por noite. Descarte, com mais de 50 anos, não sabia como dizer não. Levantava-se todos os dias num frio mortal, tomava a carruagem que vinha buscá-lo, e dava aulas à rainha num salão gelado. (A descrição de Eric Temple Bell em Men of Mathematics é de cortar o coração.) Não durou muito: em fevereiro de 1650, morreu de pneumonia.
Estes episódios ilustram o que é a convivência entre os intelectuais e a nobreza. O intelectual geralmente é um sujeito de poucos recursos, sempre dependendo dos favores alheios. Os nobres (reis, príncipes, etc.) são como deuses: caprichosos, imprevisíveis, atemorizantes. Um desejo vira uma ordem, e ai de quem não a cumprir. Catarina da Rússia admirou Diderot o bastante para tirá-lo de uma situação financeira aflitiva. Cristina da Suécia talvez julgasse que estava fazendo o mesmo por Descartes.
2086) Machado e Nelson (14.11.2009)
Difícil encontrar dois indivíduos tão diferentes e tão parecidos. Ambos eram grandes fazedores de frases, cada um ao seu modo. Alguém já disse que uma frase é algo parecido com uma espada. Se assim for, a frase de Machado era um florete, a de Nelson uma katana de samurai. Viveram do jornalismo em épocas de jornalismos muito diferentes, mas todos dois herdaram do jornalismo a fluência, a aparente facilidade de escrever, o diálogo direto com o leitor, sem falar nos truques narrativos do folhetim.
Ambos eram fascinados pelo adultério, aquela vozinha incansável que lhes sussurra coisas de dentro do travesseiro quando estão tentando dormir. Para a maioria das pessoas o adultério é um perigo terrível mas remoto, como a possibilidade da queda do avião em que estamos ou de incêndio do prédio em que residimos. Para esses indivíduos especiais, no entanto, o adultério é fonte perpétua de deleite e tortura. A idéia do adultério próprio é um Paraíso sem Deus, onde o todo-poderoso é ele, com Eva ao seu dispor, e fazendo o papel de serpente e de folha de parreira. O adultério da companheira é um Inferno de Dante, com todos os Nove Círculos só para si.
Machado era pudico e Nelson era devasso, e cada um fez ao seu modo a crônica do pudor e da devassidão que os cercavam. Alguns leitores acostumados a emoções fortes criticam o pedestrianismo dos enredos de Machado, onde só acontecem coisas banais, domésticas, e os meros crimes de morte podem ser contados nos dedos. Por comparação, os enredos de Nelson são um prolongamento da página policial dos matutinos. Fervilham de tragédias e escândalos que fariam o Bruxo tremer, assustado com tal desvendamento de segredos que ele levava noites inteiras para encaixar nas entrelinhas.
Curiosamente, Nelson (que não praticou a poesia, ao que eu saiba) escrevia tão bem para o teatro quanto no romance, no conto, na crônica. Sua matéria-prima eram situações humanas, expostas através de ações e diálogos. Já Machado foi perfeito no conto e no romance, mas nunca consegui acreditar no seu teatro, e acho sua poesia meio fraquinha (eita, agora lá vêm 200 emails me excomungando!). Alguns sonetos aceitáveis; nenhum que seja classe A (sim, nem mesmo o da Carolina, o do Natal, o do vagalume).
Não sei se Nelson admirava ou desdenhava (e em que termos) a obra de Machado, cujo nome não é mencionado no índice remissivo de O Anjo Pornográfico de Ruy Castro. Talvez tivesse pelo autor de Dom Casmurro aquela admiração tácita de quem escreve bem por quem escreve bem, independentemente de afinidades; e uma dose encorpada de menosprezo por um sujeito que talvez lhe parecesse um fraco, um tímido, um “cauteloso pouco-a-pouco” na expressão de Mário de Andrade. Se compararmos as trajetórias de vida dos dois, a de Machado é um gráfico horizontal que só de longe em longe é perturbado por um estremeção. A de Nelson daria algo parecido com um resumo sismográfico do Japão nos últimos cem anos.
2085) Piadas comunistas (13.11.2009)
O humor é a melhor forma de resistência à opressão (às vezes, a única). A melhor época do humor brasileiro foi o período entre 1964 (o golpe militar) e 1985 (eleição de Tancredo Neves). Há diferentes razões para isso. O humor alivia a tensão de quem solta uma boa gargalhada. Ao mesmo tempo, desinfla e esvazia a pompa de quem quer parecer importante demais, poderoso demais. O humor é uma torção do discurso habitual, virando uma esquina imprevista: nada melhor, portanto, para revelar as contradições ou as falácias do discurso de alguém. O humor é basicamente cultura oral (com a devida vênia aos coleguinhas do humor gráfico), portanto nada melhor para sobreviver sem provas num ambiente repressivo, para se infiltrar por entre as junturas do sistema, para ser sussurrado “à sorrelfa, à socapa, à boca pequena” (como dizia Nilson) pelos becos e pelos botecos. Um dos aspectos mais arrepiantes e pessimistas de “1984” é a ausência de humor. As pessoas dali já estão num estágio tão avançado de repressão que desaprenderam a mangar dos tiranos.
Quem assistiu o ótimo filme alemão “A Vida dos Outros” deve lembrar a cena arrepiante em que um funcionário, num refeitório, conta uma piada satirizando o líder da Alemanha Oriental, e no meio da piada percebe que está sendo escutado (jovialmente, sorridentemente) pelo chefe da polícia política, que o encoraja a prosseguir. O cara conta de maneira chocha o fim da piada, e é rebaixado de função (vai ver que o chefe gostou da piada e o livrou do fuzilamento). Agora, estão emergindo os registros de espiões sobre piadas colhidas em cartas ou em telefonemas grampeados. A principal fonte são os arquivos de espionagem da Alemanha Ocidental, onde era recolhida qualquer informação que pudesse dar uma idéia do clima político do país comunista vizinho.
Há uma clássica, que já vi sendo aplicada a vários governos (inclusive o do PT): “O que aconteceria se o deserto do Saara se tornasse comunista? A princípio, nada, mas daí a pouco ia começar a faltar areia”. O desabastecimento e o racionamento são pesadelos do comunismo (e um pesadelo ainda maior para quem vive na superabundância de supérfluos do capitalismo, e teme ser rebaixado), por isso os alemães orientais afirmavam não descender do macaco, como o resto da Humanidade: “Um macaco não sobreviveria com uma cota de duas bananas por ano”.
A Stasi (polícia política) mantinha 91 mil funcionários e 189 mil informantes civis, vigiando a população dia e noite. Um artigo no Der Spiegel (http://tinyurl.com/yjdwgl2) comenta essa época. Para os alemães orientais, Chernobyl não passou de um programa do governo soviético para tentar submeter a população ao Raio-X. Outro alvo preferido do humor alemão era o Trabant, o precário automóvel que era o orgulho da indústria automobilística comunista. Dizia-se que o próximo modelo iria ser lançado com dois canos de escape em vez de um: “Assim ele pode ser usado como carrinho de mão”.
sexta-feira, 28 de maio de 2010
2084) Um fato fantástico (12.11.2009)
H. G. Wells afirmou certa vez que uma história sobre um porco capaz de voar por cima das cercas era fantasia, mas se todos os porcos pudessem fazer o mesmo passava a ser outra coisa.
Wells não definiu (pelo menos na citação que li) que outra coisa seria essa, mas talvez sua frase tenha sugerido a Anthony Boucher, um dos melhores críticos norte-americanos de FC (responsável pela primeira tradução de Borges nos EUA, em 1948) uma importante recomendação:
“O autor tem direito a uma única premissa fantástica, que dará origem a toda a sua história. Ele pode usar uma pessoa capaz de atravessar paredes, mas não pode usar na mesma história outra pessoa que é invisível”.
Um conselho perceptivo e sensato, embora grande parte da FC e da Fantasia contemporâneas se obstine em desobedecer a ele.
Wells escreveu romances sobre um homem invisível, uma máquina do tempo, marcianos invadindo a Terra, um médico que tenta transformar animais em seres humanos. Qualquer um desses livros é um primor de narrativa. Fico imaginando que salada seriam se o autor tivesse tentado escrever sobre um médico que tenta transformar animais em seres humanos invisíveis, ou sobre marcianos que invadem a Terra utilizando máquinas do tempo.
Cada premissa fantástica estabelece uma “quebra” com o realismo narrativo. Cada uma propõe um mundo semelhante ao nosso com exceção de um aspecto, e apenas um. Quando os aceitamos, o restante da narrativa decorre numa espécie de comparação constante entre o mundo como o conhecemos e essa outra direção narrativa sugerida por aquele detalhe.
Postular dois deles ao mesmo tempo é bifurcar a atenção do leitor, pedindo-lhe que vire ao mesmo tempo duas esquinas opostas, que aceite a existência de dois elementos improváveis e, mais do que isto, heterogêneos. É pedir-lhe que olhe em duas direções ao mesmo tempo.
Pego como exemplo um livro que tem esse defeito (não obstante ser um bom livro, envolvente, bem escrito), um dos meus preferidos na adolescência: O Dia das Trífides de John Wyndham (1951), que tem dois elementos fantásticos.
O primeiro é a existência das trífides, plantas inteligentes, capazes de se mover sobre três “pernas” e dotadas de um aguilhão venenoso, que são uma ameaça para os seres humanos. Por sorte as trífides não enxergam.
O segundo elemento fantástico é a ocorrência de uma chuva de meteoros que dura uma noite inteira. Na manhã seguinte, todas as pessoas que os contemplaram estão cegas. E então os seres humanos e as trífides ficam em igualdade de condições.
Duvido que José Saramago não tenha lido a mesma edição que li (Colecção Argonauta, Lisboa), nos anos 1960, e que o livro de Wyndham não tenha inspirado seu Ensaio sobre a cegueira.
O Dia das Trífides é um ótimo romance de FC sob vários critérios, e seu único defeito é a ocorrência de duas premissas fantásticas tão distantes (plantas inteligentes, cegueira coletiva) e tão convenientes para o autor. Bastaria uma.
2083) Nossos avatares (11.11.2009)
(Thomas Frey)
Os autores de FC e os jornalistas especulativos costumam se indagar até onde irá nossa capacidade de criar avatares de nós mesmos. Réplicas eletrônicas capazes de reconstituir nossa personalidade e de nos representar em público. Eu sou um conservador nato e não creio que será possível produzir um sósia holográfico de mim mesmo capaz de me substituir em tarefas como fazer o supermercado ou cortar o cabelo. Pra mim, o mundo feito de matéria só pode ser acessado por quem é de matéria, e ponto final. Mas admito que a expansão dos avatares ocasionará também (num processo cumulativo de causa e efeito) a expansão de um mundo em que esses avatares possam atuar.
Um dos otimistas é Thomas Frey, que num artigo online em http://www.futuristspeaker.com/2009/05/the-future-of-the-avatar/, intitulado “O Futuro do Avatar”, sugere: “Assim que um avatar passar pela metamorfose radical de uma imagem vista na tela para um ser tridimensional que nos acompanha no jantar, conduz conversações com nossos amigos e pode nos substituir numa reunião, começará o trabalho para produzir um avatar ainda mais realista, um que poderemos tocar fisicamente”. Creio que seja possível a projeção holográfica (como nos livros de William Gibson) de uma pessoa virtual, luminosa, semitransparente, capaz de aparecer (graças a projetores) andando entre os transeuntes de uma calçada, entrando num restaurante, sentando-se à mesa, ouvindo (porque microfones próximos captam as frases e as retransmitem para a “Central”) as perguntas que as pessoas de carne e osso lhe fazem, e respondendo-as (através de um software verbal, e de pequenos altofalantes estrategicamente colocados). Isso deve dar um trabalhão danado para realizar, e vai requerer alguns bilhões de terabytes (“uma Antártida de informação”, diz Gibson).
Não creio na possibilidade de um avatar informático capaz de apanhar e levar consigo uma folha de papel, girar a maçaneta de uma porta real, guardar uma moeda no bolso... O que podemos é produzir um andróide de carne-e-osso sintéticos, em cujo cérebro há um HD de alguns petabytes de memória recebendo em tempo real tudo que se passa em nossa mente. Desse modo, eu posso estar na minha casa, no Rio, descansando em meu quarto, enquanto meu avatar caminha pelas ruas de Campina Grande, cumprimenta pessoas, entra no sebo Cata-Livros para conversar miolo-de-pote com Ronaldo e pagar pelos livros com dinheiro virtual.
Qual a utilidade de avatares assim? Mandá-los à guerra para morrer em nosso lugar? Parece a piada do português que um dia estava sentado à beira da via férrea, distraiu-se, e o trem passou por cima da perna dele. Ele juntou dinheiro, um milhão de escudos, e implantou uma perna artificial. Aí noutro dia estava sentado de novo com as duas pernas em cima do trilho quando alguém gritou: “Manuel, lá vem o trem!”. Precavido, ele deixou sobre o trilho a perna de verdade e afastou a outra, murmurando: “Esta aqui me custou foi um milhão de escudos...”
2082) “Distrito 9” (10.11.2009)
O filme sul-africano Distrito 9, em cartaz na Paraíba, é um mix de novidade e clichê, crítica social e cinema descerebrado. Tem sido elogiado pela crítica como uma revolução no cinema de ficção científica. Gostei do filme, com muitas ressalvas. Ao que parece, ele surgiu de um curta-metragem, cujo sucesso levou o produtor/diretor Peter Jackson a bancar a sua transformação num filme longo, com toda a estrutura. Talvez aí tenham começado os seus problemas.
Distrito 9 começa com uma imagem que, criada por Arthur C. Clarke em O Fim da Infância, rapidamente está virando clichê, tendo sido usada com mais impacto no famoso (e medíocre) Independence Day: uma imensa nave alienígena estacionada no espaço, imóvel e silenciosa, sobre uma grande cidade. No presente caso é Johannesburgo, a cidade do apartheid, e todo o filme é uma alegoria óbvia (mas não menos eficiente ou menos interessante por isso) sobre o modo como os negros foram tratados na África do Sul. Assim como ocorreu com eles, os alienígenas (que estão enfraquecidos, quase à morte) são recambiados para um curral-favela onde passam a morar.
A primeira metade do filme é excelente, resumindo uma situação complexa através de uma linguagem de jornalismo televisivo, com entrevistas, depoimentos, imagens de arquivos. Os ETs estão isolados numa favela na periferia da cidade, mas ninguém os quer por ali, nem mesmo os negros. O governo vai fazer a remoção dos milhares de ETs, derrubar seus barracos, para que eles vão morar num lugar bem longe, onde ninguém os veja – como nós aqui no Brasil tratamos os Sem-terra, os Sem-teto e outras espécies alienígenas.
Lá pelo meio do filme o protagonista, um típico “afrikaner” (descendente dos colonizadores brancos) se deixa contaminar casualmente por um líquido que encontra no barraco de um ET e começa a se transformar num deles, por um processo que não fica muito claro em momento algum. Isto empurra o filme para o reino da pulp fiction deslavada, onde a verossimilhança científica é o que menos importa, e os fatos acontecem de acordo com a conveniência dramatúrgica do autor. Daí em diante o filme vira um bang-bang comum, com perseguições, escapadas, tiros, muitos tiros, explosões, muitas explosões, e vai descendo pouco a pouco ao nível de um Independence Day ou Transformers qualquer.
É um mau filme? De jeito nenhum. Está cheio de pequenas sacadas brilhantes, de situações bizarras e plausíveis, de uma crítica social feita menos por ideologia do que por vivência, ou seja, uma crítica que se aprende a fazer nas ruas, e não nos livros. A narrativa da parte inicial mostra como é possível comprimir muita informação e um enredo complexo em pouco espaço; pretendo comprar um novo ingresso só para rever esta parte. Distrito 9 é excelente quando é um filme da África do Sul, e perde qualidade quando tenta ir atrás do que o cinema americano tem de mais bobo: tiros, muitos tiros, e explosões, muitas explosões.
terça-feira, 25 de maio de 2010
2081) Meus personagens (8.11.2009)
Sob um sol de rachar em São Paulo, às 16h, eu caminhava subindo a Bela Cintra. Ao parar num sinal olhei para dentro do boteco ao lado. Lugar mambembe, moscas, luzes fluorescentes. Mesas de fórmica, quase todas vazias. Numa delas, um homem de meia idade, num terno elegante, aparência abatida, palitava os dentes diante de um prato agora vazio. Reconheci-o: era um personagem meu, Ambrósio Ramos. Cinquenta e seis anos, desempregado, procura trabalho como um louco antes que a mulher desconfie do que está acontecendo. Foi despedido de uma multinacional onde ganhava 30 mil por mês e gastava 40. Desde janeiro está na rua.
É um guerreiro. Degustador de bons vinhos, só o faz agora em casa, enquanto dura a adega. Na rua, quando vai levar currículo de escritório em escritório, almoça um PF com guaraná. Não tem como pedir à esposa que gaste menos. Prefere a morte. Na verdade, no momento em que meus olhos cruzaram com os seus, percebi a serena certeza que o invadia, e a terrível resolução. Não havia outro caminho. Afastei os olhos, angustiado. Virei na direção da Haddock Lobo, fiz algumas compras na Bella Paulista (minha padaria favorita) e voltei devagar.
Ao passar por lá olhei de novo, e tive uma surpresa. Uma bela mulata, de vestido curto, estampado, estava sentada na mesa de frente para ele. Ela tomava um chope e ele uma água mineral. Os dois sorriam, animados... Como pude me confundir tanto? Ele é Ronald Seedorf, jornalista holandês de passagem por Sampa. Marcou encontro com uma “escort” ali, o bar mais próximo do hotel em que se hospedava. Queria conversar, quebrar o gelo, para que quando chegassem ao elegante saguão das suítes já houvesse entre os dois o confortável misto de intimidade e curiosidade que precede o sexo. Ronald escreve sobre economia e finanças. Conhece o Brasil há anos, e adora as mulheres brasileiras. Acha que são coquetes sem artificialismo, conseguem ser sensuais e alegres ao mesmo tempo (ao contrário das holandesas), conversam sem receio sobre qualquer assunto, mesmo que não entendam...
Vou descendo a rua e paro numa sorveteria. Peço um de maracujá com amora. Fico me deliciando, e, quando estou no final, quem vejo? O casal desce a rua e pára bem ali, fazendo sinal para um táxi. Entreouço frases cordiais de despedida, um aperto de mão cordial mas distante, ela entra sozinha no banco de trás... Agora entendi quem é ele. Chama-se Pepe Borriello, mora em Curitiba, e é o sogro dela. A mulata trabalha numa entidade ambiental, casou com o filho dele há um ano. Ele lhe trouxe recados e alguma pequena encomenda; ela marcou o encontro ali. Ele escreve ficção científica nas horas vagas (é dentista) e vai embora devagar, imaginando um planeta em que a pele das pessoas muda de cor de acordo com seu estado de espírito, de modo que elas são negras quando estão dançando e se divertindo, e brancas quando estão sonhando com a dor e a felicidade alheias.
2080) Penny Drive (7.11.2009)
A música dos Beatles nunca foi divulgada eletronicamente através dos I-Pods que existem por aí devido a uma pendenga judicial entre os quatro cabeludos e a Apple, de Steve Jobs. Ao que parece, os Beatles, que nos anos 1960 fundaram a gravadora/selo/loja Apple, não gostaram nem um pouco quando o americano escolheu o mesmo nome para sua empresa de informática. Houve um certo bate-boca, um conflito jurídico, de modo que a Apple dos EUA nunca teve o direito de comercializar as canções do quarteto.
Agora, os jornais anunciam que no próximo dia 7 de dezembro a Apple Corps (dos Beatles) e a EMI Music colocarão no mercado toda a obra dos Beatles num pen-drive especial, para o qual sugiro o nome de Penny Drive. Pena que esta coluna não seja ilustrada, mas quando eu postar este artigo no meu blog colocarei a foto da belezinha: uma pequena maçã verde com um talo que, uma vez puxado para fora, traz consigo a entrada USB para ser plugada no computador. A engenhoca tem 16 Giga de memória, totalmente preenchida, segundo os jornais, com todas as canções (remasterizadas) gravadas pelos Beatles, todos os elementos visuais dos discos originais (capas, fotos, encartes, textos de contracapa, fichas técnicas) e 13 mini-documentários sobre a gravação dos discos, traçando uma pequena história dos oito anos de carreira do quarteto. O material está dotado de uma interface que permite executar tudo tanto num PC quanto num Mac.
A Apple Corps anuncia que “discussões relativas à distribuição digital do catálogo dos Beatles continuam em curso”, o que parece significar que a briga com a Apple americana continua. O preço do pen-drive não foi anunciado, mas em dezembro serão colocadas no mercado britânico 30 mil unidades, o que me parece uma gota no oceano, mesmo que o preço (ainda não divulgado) seja exorbitante. A vantagem de vender produtos dos Beatles é que, embora haja um imenso contingente de jovens que o adoram, o “núcleo duro” desse mercado é formado por cinquentões como eu, muitos dos quais numa situação financeira que lhes permite comprar até mesmo aparas das unhas de Ringo, se forem oferecidas no mercado.
No filme Homens de Preto, alguém mostra uma tecnologia alienígena revolucionária para reproduzir áudio, e o personagem de Tommy Lee Jones suspira e diz: “Lá vou eu comprar o Álbum Branco de novo”. O sujeito que gosta de uma obra musical não resiste a escutá-la através de novos recursos. Quando ouvi os discos dos Beatles pela primeira vez em CD, vi que não eram as mesmas músicas. Depois de 20 anos escutando o som analógico dos elepês, meu ouvido foi surpreendido por músicas remixadas em que um instrumento que antes era bem baixinho passava a se sobressair, enquanto outros quase desapareciam. A divisão dos canais estéreo também produzia um efeito que minhas modestas radiolazinhas de outrora não alcançavam: nunca ouvi tão bem os vocais de acompanhamento. Que venha o Penny Drive, e as novas descobertas.
2079) O jeito certo de dizer (6.11.2009)
Sempre que eu me hospedava em hotéis, costumava me referir ao número do meu quarto como um número qualquer: “Estou no quinhentos e três”, ou “No mil duzentos e um”. Depois percebi que muitos recepcionistas, mensageiros, arrumadeiras, etc., dizem esses números de maneira diferente: “cinco zero três” ou “doze zero um”. É um modo mais objetivo de dizer, porque menciona primeiro o andar e depois o número do quarto. Quando dizemos números de telefone, por exemplo, costumamos enunciar dígito por dígito: “Meu telefone é três três dois sete, quatro um nove três”. Dizemos assim porque basta informar ao interlocutor quais os algarismos que ele precisa acionar para falar conosco. Mas já vi gente que dizia assim; “Meu telefone é três mil, trezentos e vinte e sete, quatro mil, cento e noventa e três”. É uma enunciação absurda, porque é mais complicada, e na verdade não estamos nos referindo a um número contável, e sim a uma mera sucessão de dígitos isolados. Mas tem pessoas que se acostumam a ler todo número como se fosse a expressão de uma quantidade em dezenas, centenas, milhares...
Para sabermos o jeito certo de dizer as coisas, basta prestar atenção às pessoas que estão envolvidas mais de perto com aquilo. Passei anos assistindo a TV Record de São Paulo (que se pronuncia “recór”, à maneira francesa), e quando comecei a traduzir livros para a Editora Record do Rio demorei um pouco a perceber que, lá, o nome da editora se pronuncia “récor”, à maneira inglesa. Quando digo o jeito certo não quero dizer que o outro esteja errado, mas que, no interior de um grupo, define-se um modo de dizer que se torna o padrão. Esse padrão se impõe pela repetição, pelo maior alcance de quem usa um desses formatos. Quando surgiram no Brasil as Organizações Não-Governamentais, as ONGs, no Rio de Janeiro pronunciava-se “Ó-ene-gê” e em São Paulo “Ôngue”. Arrisco-me a dizer que depois da conferência Rio-92 (Eco-92), a pronúncia paulista se impôs em nossa televisão e daí para o resto das pessoas.
Algo parecido ocorreu com a Aids logo que apareceu. Ninguém sabia se era palavra masculina ou feminina, e ninguém se definia por uma pronúncia à maneira inglesa ou abrasileirada. Assim, durante anos em nossas rádios e TVs conviveram quatro pronúncias diferentes para se referir à doença: a áids, a êids, o áids e o êids. A primeira delas acabou se impondo. O mesmo vale para certas siglas criadas pela imprensa. Os fãs de ficção científica no Brasil chamam o gênero de FC (éfe-cê), e nos países de língua inglesa de SF (“éss-éff”). A imprensa criou e popularizou o rótulo “sci-fi” (“sái-fái”), fazendo referência à sigla “hi-fi” (“high-fidelity”, usada para qualificar os discos de vinil dos anos 1950). Nos EUA, costuma-se dizer que só quem usa “sci-fi” é quem é de fora do fandom, do universo dos fãs do gênero, e que basta alguém usar o termo “sci-fi” para ser identificado como um visitante, alguém que ainda não aprendeu o jeito certo de dizer.
2078) O perigo do pensamento positivo (5.11.2009)
Um artigo de Barbara Ehrenreich (publicado no New York Times e reproduzido em seu blog) vem corroborar uma série de diagnósticos sobre a recente crise dos 4 trilhões de dólares.
Como se sabe, investidores (= “indivíduos que investem em cima do dinheiro alheio como gatos investem em cima de ratos”) no mercado imobiliário norte-americano passaram anos financiando imóveis em condições “irresistíveis” para pessoas que não podiam pagar por eles. Isso era visto como um incentivo à compra da casa própria, como uma ajuda a populações de baixa renda, um trabalho social, etc. Acontece que as pessoas começaram a não pagar e os investidores começaram a falir.
Já falei aqui sobre a influência do café nesse processo, como droga euforizante (“O capitalismo e a Starbucks”, 15.11.2008).
O artigo de Ms Ehrenreich fala do efeito deletério do pensamento positivo, essa praga que arruína o mundo dizendo no ouvido das pessoas: “Todos os seus desejos serão realizados, basta querer”.
Diz ela que existe na cultura americana um esforço generalizado, que vai desde programas de TV a pastores de igreja, desde estratégias de mercado até livros de auto-ajuda, levando as pessoas a “acreditarem que elas irão conseguir o que querem, não apenas porque isso as fará sentir-se melhor, mas porque pensar positivamente nas coisas, visualizá-las, ardentemente, com concentração, fará com que elas aconteçam”. É o bom e velho otimismo norte-americano erigido em força mágica.
Ela prossegue:
“Todo mundo sabe que você só consegue um emprego que pague mais de 15 dólares a hora se for uma pessoa positiva, uma pessoa livre de dúvidas, sem visão crítica, e sorridente. (...) Os livros nos aeroportos gritam contra o negativismo e advertem o leitor a ser otimista o tempo inteiro, cheio de confiança. As empresas reforçam isto proporcionando aos seus funcionários palestras motivacionais cheias de histeria”.
É algo entranhado na cultura dos EUA, essa crença maníaca de que não apenas as coisas podem dar certo, mas darão certo mesmo, se quisermos pra valer.
Daí, segundo Ehrenheich, que “ninguém estava psicologicamente preparado para tempos duros, quando eles chegaram, porque, de acordo com as premissas do pensamento positivo, pensar em problemas é atraí-los”.
E toda essa bolha de trilhões de dólares era administrada por “uma nova classe de bilionários e centi-milionários que moram em Lear-Jets e se hospedam em hotéis de milhares de dólares a noite, e que podem mandar um avião particular comprar seu vinho preferido ou trazer o animal de estimação que deixaram para trás”.
Isto quer dizer que devemos ser derrotistas, lúgubres, medrosos? De jeito nenhum. Essa é a burrice equivalente no extremo oposto. Mas não tenho dúvidas de que a economia mundial entrou nesta crise devido, em grande parte, a essa crença absurda de que basta querer para conseguir, de que nossos desejos existem para serem satisfeitos, se os desejarmos com força suficiente.
2077) Os melhores movimentos de câmara (4.11.2009)
(A Arca Russa)
O saite FilmCritc (www.filmcritic.com) gosta de fazer aquelas listinhas dos “dez melhores” a respeito de tudo. Bom passatempo para a gente lembrar filmes vistos há muitos anos, e também para dar mais atenção a detalhes que às vezes passam despercebidos.
A lista dos “Dez Melhores Movimentos de Câmara do Cinema” me fez parar antes de ler e tentar fazer minha própria lista. O problema com essas listas é que alguns elementos são tão esmagadoramente óbvios que acabam aparecendo em todas.
Duvido que na lista do FilmCritic não apareça a sequência inicial de A Marca da Maldade de Orson Welles, um complexo travelling percorrendo numerosos ambientes e enquadrando numerosos atores durante um atentado a bomba, e a sequência final de O Passageiro: Profissão Repórter de Antonioni, em que a câmara literalmente atravessa uma janela gradeada e sai de dentro de uma casa.
Há um filme de Hitchcock cujo nome agora me escapa e que mostra à distância um avião voando serenamente entre as nuvens; a câmara (que supomos estar noutro avião que voa ao lado) se aproxima dele, chega a uma janela, atravessa-a, e em seguida segue pelo corredor do avião, mostrando os passageiros em suas poltronas.
De Hitchcock lembro também o arrepiante recuo da câmara em Frenesi, quando o criminoso ataca a moça e a câmara recua, sai do apartamento, sai do corredor, sai do prédio e estaciona na rua, por entre os ruídos pacatos do trânsito, e só nós sabemos o que está acontecendo por trás daquelas paredes.
Duvido que apareça na lista do FilmCritic algum dos impressionantes movimentos de câmara na mão executados por Dib Lufti em Os Deuses e os Mortos (1970) de Ruy Guerra. Dib empunhava uma das câmaras 35mm daquela época, enormes e pesadas. Há uma cena em que dois sujeitos brigam de faca dentro de uma casa: um deles foge pulando a janela, o perseguidor vai atrás, e Dib pula a janela também de câmara em punho, sem tremer a imagem e sem perder o enquadramento.
Fui consultar o saite, e dos que citei eles lembram apenas o de Orson Welles. A abertura de O Jogador de Robert Altman também é citada, mas faz tempo que vi esse filme e não me lembro dessa longo travelling da sequência inicial (agora vou ter que ir na locadora, pegar, olhar, ver o filme todo até o fim, porque é bom demais...).
O travelling gerou a estética do plano-sequência e gerou inclusive os filmes-sequência, em que não há cortes, como o Festim Diabólico de Hitchcock, A Arca Russa de Alexander Sokurov (2002) e o recente filme brasileiro Ainda orangotangos de Gustavo Spolidoro (2007).
O que há de mais fascinante nisso é que essa estética abre mão de uma das coisas mais dinâmicas que o cinema tem, que é justamente a montagem, o corte, o picote, a justaposição, o ping-pong de imagens. O travelling longo ou plano-sequência se assemelha àqueles textos literários sem ponto nem pausa, como o monólogo de Molly Bloom no Ulisses ou as Galáxias de Haroldo de Campos.
2076) A literatura e o jogo (3.11.2009)
Num artigo na revista eletrônica Salon (http://tinyurl.com/mwo2sy), D. A. Blyler comenta os vícios de pessoas criativas (bebida, drogas, etc.) e a certa altura discute a questão de jogo. Será que o vício de jogar prejudica a criatividade de escritores e outros artistas? Curiosamente, parece que o jogo (baralho, dados, roleta, etc.) vem perdendo terreno para outros vícios. Cem anos atrás, era tido como um dos principais “fatores de desagregação da sociedade”. Hoje em dia, critica-se a proliferação dos bingos, das máquinas caça-níqueis, etc., mas apenas em termos da formação de quadrilhas e da desonestidade do jogo em si (as máquinas são preparadas para que o usuário sempre perca, etc.). Mas o jogo como vício do indivíduo vem perdendo terreno. Conheço gente viciada em bebida, em drogas, numa porção de coisas, mas não lembro de nenhum conhecido meu que seja viciado em jogos de azar.
Já foi diferente, e acho que na literatura o maior exemplo de gênio viciado em jogo foi Dostoiévski. Dizem que seu romance O Jogador é o melhor retrato literário desse universo soturno, à meia-luz, saturado de café e cigarros. O jogo produz uma droga biológica chamada norepinefrina. É um desses casos curiosos em que a droga viciante não é ingerida pelo viciado, é produzida pelo seu próprio organismo desde que o viciado se submeta a esta ou aquela atividade. (Vejam artigo “O Jogador”, de 13.5.2003, em meu blog: http://tinyurl.com/yguo4r2).
Blyler cita um cruel provérbio francês que diz bem do caráter precipicial dessa atividade: “Existem dois prazeres no jogo: o de ganhar e o de perder”. E a frase da Mark Twain (que, pelo visto, era chegado a um carteado): “Existem dois momentos na vida de um homem em que ele deve apostar tudo: quando pode, e quando não pode”. Blyler discute o lado positivo de “ter mentalidade de jogador”, e cita como exemplo elogiável o caso (que não sei se é verdadeiro) do jovem Steven Spielberg, que teria se infiltrado num estúdio de Hollywood, montado um escritório e começado a se comportar como se fosse funcionário do estúdio, começando assim uma carreira de sucesso.
Isso, no entanto, pra mim não conta. É um lance de ousadia profissional, talvez ligeiramente criminoso (“falsidade ideológica”?...), mas na selva de Hollywood vale quase tudo. Jogo, pra mim, é jogo-de-mesa. Aquilo que fez o filósofo Diderot dizer: “O mundo é a casa dos fortes. Nunca saberei, senão no fim, o que perdi ou ganhei neste lugar, neste vasto cassino onde passei mais de 60 anos, copo na mão, chacoalhando os dados”. O jogo serve como atividade lúdico-masoquista, e também como metáfora da condição humana. Sempre estamos jogando, ou seja, depositando todos os nossos esforços em ações sempre sujeitas ao Acaso, ao Improvável, à combinação de variáveis que raramente podemos prever e mais raramente ainda podemos controlar. Um lance de dados nunca abolirá o Acaso, mas, como dizia Fritz Leiber: “gonna roll the bones!”.
2075) Universos tangenciais (1.11.2009)
Quando acordou, estava subindo ao longo de uma escada cujos degraus eram tábuas, às quais seus dedos machucados mal podiam se apegar. Entre os degraus ele via a parede que estava escalando, e que parecia feita de cascalho solto. A luz das estrelas lhe dava apenas uma vaga noção de onde se agarrar; passou-se algum tempo antes que ele percebesse que os degraus pareciam estar transversalmente presos a duas barras de ferro luzidias. Experimentou uma delas com a mão, e sentiu-a vibrar, sentiu que ela trepidava numa vibração contínua e crescente. Aos poucos uma luz pareceu vir do alto, enquanto a vibração da escada aumentava a ponto de se comunicar aos seus próprios ossos, quando ele tentava aferrar-se ainda mais aos degraus. Olhando para cima, ele viu que a escada que escalava perdia-se numa altura indefinida mas que por ela vinha descendo rumo a ele uma imensa locomotiva fumegante com um facho de luz à frente.
Acordou com um arquejo de horror e espanto. Estava sentado num gramado à beira de um rio manso. Da água emergia uma jovem loura e alva, quase nua se não fosse pelo vestido diáfano, ensopado, que se colava ao corpo. Ela o avistou e caminhou para ele, os cabelos gotejantes, enquanto ele observava os seios miúdos e firmes, o movimento seguro dos quadris. Ela ajoelhou-se ao lado dele e acariciou-lhe os cabelos, enquanto gotas dágua lhe corriam pelo rosto. Ele ergueu a mão e segurou na mão dela. Uma corrente de milhares de volts atravessou-lhe o corpo, fritando-o com a temperatura do Sol, e despertando-o.
Ao abrir os olhos, estava na cama de um quarto de hotel barato: o único móvel que podia avistar da cama era uma cômoda desconjuntada de madeira, com um espelho oval, uma bacia de metal e uma toalha dobrada. Sentou-se na cama e percebeu que estava vestindo apenas um par de calções frouxos, de pano ordinário, que nunca tinha visto. Levantou-se com dificuldade e foi até o espelho. Não era um espelho: era uma vidraça oval que dava para um poço de elevador, onde ele via os cabos metálicos subindo de um lado e descendo de outro. Um elevador parou bem à sua frente, as portas abriram-se para os lados, e ele gritou ao ver lá dentro um homem de macacão azul, com um machado enterrado no crânio, estendendo as mãos para ele. E acordou.
Abriu os olhos e percebeu que estava num vasto descampado coberto de neve; vestia casaco espesso, luvas enormes, cachecol, gorro protegendo a cabeça. A neve se estendia à sua frente, lisa, intocada, e ele percebeu que estava andando de costas, como se a certa altura de uma caminhada tivesse decidido retroceder. Seus pés pousavam sobre as pegadas às suas costas e, mal se erguiam do chão, deixavam ali a neve intacta. A certa altura, escorregou, caiu, e acordou. Estava empunhando um jornal, percorrendo com os olhos uma coluna compacta de texto escrito, e agora seus olhos estavam chegando às últimas linhas.
2074) “The Graveyard Book” (31.10.2009)
Este livro de Neil Gaiman andou ganhando prêmios importantes (Hugo, Locus, Newbery) e se não me engano é o seu primeiro romance para “jovens adultos” (um termo inglês que acho preferível a “infanto-juvenil”) depois do ótimo Coraline, que resultou inclusive num bom filme.
The Graveyard Book, ambientado numa cidade inglesa qualquer, começa com a chacina noturna de uma família inteira: pai, mãe e filha pequena. Há um bebê de um ano e meio que, por distração do criminoso e conveniência do autor, sai do berço ao ouvir o barulho, caminha pela casa, vê a porta da frente aberta e sai caminhando na direção do cemitério que fica na esquina. Ali é acolhido pelos fantasmas dos mortos, que o protegem do assassino no momento em que este, precisando “terminar o serviço” segue o bebê até o Campo Santo. O garoto recebe o nome de Nobody Owens e daí em diante é criado pelos fantasmas.
Neil Gaiman é uma espécie de Stephen King com todas as qualidades deste e sem alguns dos defeitos (a morbidez excessiva, e alguns recursos de enredo muito “crus” herdados da pulp fiction). The Graveyard Book é a crônica do crescimento de Nobody Owens, ou “Bod” e das aventuras que ele vive no cemitério e fora dele.
Gaiman afirma ter se inspirado no Livro da Jângal de Kipling, a história de Mowgli, o menino criado na floresta pelos lobos. Isto não me ocorreu durante a leitura, mas, em retrospecto, dá para ver as semelhanças. Em Kipling, temos uma humanização dos animais, cujas emoções e valores morais são semelhantes aos nossos. No Graveyard Book todos os fantasmas são humanos, mas são de épocas diferentes: do tempo dos celtas, dos romanos, da Idade Média, etc.
O mundo de Neil Gaiman tem uma linha direta de diálogo com os contos de Ray Bradbury em obras como O País de Outubro e Uma Estranha Família. Não são propriamente histórias de terror, porque seu objetivo não é aterrorizar. São crônicas nostálgicas, humorísticas, ou emotivas, que têm lugar em ambientes ocupados por fantasmas, vampiros, ogres, lobisomens, etc. Como as obras de Bradbury, as de Neil Gaiman podem ser lidas tanto por garotos quanto por adultos, pela finura de sua observação, pela simplicidade e elegância do estilo, pela imaginação incessante que desencava surpresas a toda hora.
Outro paralelo que pode ser feito é com os filmes de Tim Burton, principalmente Edward Mãos de Tesoura, Beetlejuice, O Estranho Mundo de Jack e A Noiva Cadáver. Gaiman e Burton compartilham essa zona crepuscular da imaginação em que crianças convivem com medo mas sem traumas por entre esqueletos, vampiros, bruxas, lobisomens, fantasmas.
Ninguém é tão vulnerável ao terror quanto uma criança, para quem tudo é real e qualquer coisa é possível. Não há crianças cientistas, marxistas, agnósticas. Toda criança é um homem primitivo para quem um cemitério é um lugar tão fervilhante de vida quanto a rua por onde caminha, a escola onde estuda. Toda criança é uma casa mal assombrada.