Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 29 de maio de 2010
2086) Machado e Nelson (14.11.2009)
Difícil encontrar dois indivíduos tão diferentes e tão parecidos. Ambos eram grandes fazedores de frases, cada um ao seu modo. Alguém já disse que uma frase é algo parecido com uma espada. Se assim for, a frase de Machado era um florete, a de Nelson uma katana de samurai. Viveram do jornalismo em épocas de jornalismos muito diferentes, mas todos dois herdaram do jornalismo a fluência, a aparente facilidade de escrever, o diálogo direto com o leitor, sem falar nos truques narrativos do folhetim.
Ambos eram fascinados pelo adultério, aquela vozinha incansável que lhes sussurra coisas de dentro do travesseiro quando estão tentando dormir. Para a maioria das pessoas o adultério é um perigo terrível mas remoto, como a possibilidade da queda do avião em que estamos ou de incêndio do prédio em que residimos. Para esses indivíduos especiais, no entanto, o adultério é fonte perpétua de deleite e tortura. A idéia do adultério próprio é um Paraíso sem Deus, onde o todo-poderoso é ele, com Eva ao seu dispor, e fazendo o papel de serpente e de folha de parreira. O adultério da companheira é um Inferno de Dante, com todos os Nove Círculos só para si.
Machado era pudico e Nelson era devasso, e cada um fez ao seu modo a crônica do pudor e da devassidão que os cercavam. Alguns leitores acostumados a emoções fortes criticam o pedestrianismo dos enredos de Machado, onde só acontecem coisas banais, domésticas, e os meros crimes de morte podem ser contados nos dedos. Por comparação, os enredos de Nelson são um prolongamento da página policial dos matutinos. Fervilham de tragédias e escândalos que fariam o Bruxo tremer, assustado com tal desvendamento de segredos que ele levava noites inteiras para encaixar nas entrelinhas.
Curiosamente, Nelson (que não praticou a poesia, ao que eu saiba) escrevia tão bem para o teatro quanto no romance, no conto, na crônica. Sua matéria-prima eram situações humanas, expostas através de ações e diálogos. Já Machado foi perfeito no conto e no romance, mas nunca consegui acreditar no seu teatro, e acho sua poesia meio fraquinha (eita, agora lá vêm 200 emails me excomungando!). Alguns sonetos aceitáveis; nenhum que seja classe A (sim, nem mesmo o da Carolina, o do Natal, o do vagalume).
Não sei se Nelson admirava ou desdenhava (e em que termos) a obra de Machado, cujo nome não é mencionado no índice remissivo de O Anjo Pornográfico de Ruy Castro. Talvez tivesse pelo autor de Dom Casmurro aquela admiração tácita de quem escreve bem por quem escreve bem, independentemente de afinidades; e uma dose encorpada de menosprezo por um sujeito que talvez lhe parecesse um fraco, um tímido, um “cauteloso pouco-a-pouco” na expressão de Mário de Andrade. Se compararmos as trajetórias de vida dos dois, a de Machado é um gráfico horizontal que só de longe em longe é perturbado por um estremeção. A de Nelson daria algo parecido com um resumo sismográfico do Japão nos últimos cem anos.
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