Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
domingo, 30 de maio de 2010
2094) De Chandler para Hitchcock (24.11.2009)
(Raymond Chandler)
Depois de se tornar um romancista de sucesso, Raymond Chandler virou roteirista de Hollywood, um desses prêmios punitivos com que o sucesso nos atraiçoa de vez em quando. Ganhou um bom dinheiro, passou a beber o dobro e a se desesperar o triplo.
Fez algumas coisas boas; talvez se deva a ele algo do muito que há de bom em Pacto Sinistro (“Strangers on a Train”) de Hitchcock. É justamente numa carta sua para Hitchcock, datada de 6 de dezembro de 1950, que encontramos um conselho que embute uma crítica velada, mas uma crítica formulada com as precauções de quem sabia estar lidando com uma prima-dona.
Diz Chandler:
“Na qualidade de amigo, e de alguém que só lhe deseja o melhor, sugiro que ao menos uma vez, em sua carreira longa e vitoriosa, você construa seu roteiro à base de uma história sólida e bem tramada, e não sacrifique nenhuma parte dessa solidez para obter um ângulo de câmara fora do comum. Sacrifique a posição da câmara, se necessário. Sempre haverá oportunidade para fazer uma tomada igualmente boa. Mas nunca haverá a chance de encontrar uma motivação igualmente boa”.
Chandler diz (muito diplomaticamente) que muito da obra de Hitchcock consistia em planos visualmente fascinantes, movimentos ou ângulos de câmara que encantavam espectadores e críticos, às custas da verossimilhança ou da coerência da história.
Hitchcock era um excepcional narrador cinematográfico, no que diz respeito a contar as coisas através de imagens. A motivação (as razões humanas subjacentes à trama, que fazem os personagens se comportarem de uma forma e não de outra) ficavam muitas vezes em plano secundário.
Vemos isso em muitas das sequências clássicas hitchcockianas: o que acontece na tela é implausível e um tanto improvável, mas está contado com tamanho brilho (câmara, montagem, música, etc.) que esquecemos as críticas e nos deixamos arrebatar pela cena. Isso ocorre em seus melhores filmes: Intriga Internacional, O Homem que Sabia Demais, Pacto Sinistro, Psicose, etc.
Chandler levava a motivação a sério, muito mais do que a média dos escritores do romance policial “noir”, onde os personagens tomavam atitudes intempestivas e imprevisíveis o tempo inteiro. A crítica que ele faz a Hitchcock é a mesma que (segundo observa Scott Westerfeld, no Blog em que transcreve essas cartas) se pode fazer a um escritor que deixa a motivação em segundo plano apenas pelo gosto de criar uma frase brilhante, uma comparação fora do comum.
O que ocorre, na maioria dos casos, é que escritores e cineastas de tendência estilística se deixam cativar por essas pequenas façanhas de brilhantismo técnico, mas o público, embora as perceba, percebe também que quando elas aparecem é sempre às custas de algo que subjaz ao estilo, e que é a história propriamente dita, ou seja, o que Chandler chama de motivação. É como uma escada de madeira onde um degrau é de celofane colorido: mais vistoso, mais chamativo, mas sem firmeza.
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