Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
sábado, 29 de maio de 2010
2087) Dois gestos de nobreza (15.11.2009)
(Descartes e a Rainha Cristina)
Dizem os livros de História que o filósofo Diderot, um dos enciclopedistas franceses, vivia perseguido por problemas financeiros. A certa altura da vida, já famoso, precisou levantar dinheiro para o dote de sua filha, que iria se casar. Aperta daqui, aperta dali, em 1765 Diderot tomou a decisão de vender a biblioteca que tinha acumulado durante a vida inteira, e enviou cartas para seus contatos em toda a Europa, explicando sua decisão e aguardando ofertas. Um dia chegou-lhe às mãos uma carta de Catarina II, imperatriz de Rússia. Dizia ela que, sendo uma admiradora do filósofo, dispunha-se a comprar sua biblioteca pelo preço que ele solicitava. Havia apenas um porém: a imperatriz, por uma série de motivos, não podia providenciar a transferência imediata da biblioteca (alguns milhares de volumes) para Moscou. Precisava, portanto, contratar um bibliotecário de sua confiança para cuidar dos livros até que eles pudessem ser transportados para a Rússia. O bibliotecário receberia um salário anual pelos seus serviços. Por acaso Monsieur Diderot estaria interessado em ocupar esse cargo?...
De Diderot passamos para René Descartes, o famoso filósofo do “Penso, logo existo”, o inventor do eixo de coordenadas x e y (para mim a maior invenção humana entre a roda e a Teoria da Relatividade). Descartes era um filósofo meditativo, gostavava de dormir tarde e acordar tarde, o que dá uma medida de seu bom senso. Em 1649, já famoso em toda a Europa, recebeu a pior coisa que um homem sossegado pode receber: uma proposta irrecusável. Cristina , Rainha da Suécia, o queria como professor de Filosofia, e enviou um navio para trazê-lo a Estocolmo. A rainha tinha 19 anos, era culta, atlética, gostava de cavalgar no frio escandinavo. (O filme sobre ela, com Greta Garbo, é bom, mas considerado bastante fantasioso.) Instalou Descartes num palácio próximo ao seu, e determinou que ele lhe daria aulas diárias, começando às 5 da manhã, em pleno inverno sueco. Na corte, poucos nobres suportavam o ritmo da rainha, que dormia apenas cinco horas por noite. Descarte, com mais de 50 anos, não sabia como dizer não. Levantava-se todos os dias num frio mortal, tomava a carruagem que vinha buscá-lo, e dava aulas à rainha num salão gelado. (A descrição de Eric Temple Bell em Men of Mathematics é de cortar o coração.) Não durou muito: em fevereiro de 1650, morreu de pneumonia.
Estes episódios ilustram o que é a convivência entre os intelectuais e a nobreza. O intelectual geralmente é um sujeito de poucos recursos, sempre dependendo dos favores alheios. Os nobres (reis, príncipes, etc.) são como deuses: caprichosos, imprevisíveis, atemorizantes. Um desejo vira uma ordem, e ai de quem não a cumprir. Catarina da Rússia admirou Diderot o bastante para tirá-lo de uma situação financeira aflitiva. Cristina da Suécia talvez julgasse que estava fazendo o mesmo por Descartes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário