segunda-feira, 18 de agosto de 2025

5195) I. A. -- a salsicha literária (18.8.2025)



 

Entre o “texto literário produzido por uma Inteligência Artificial” e o “texto literário produzido por uma pessoa” existe um parentesco indiscutível, e ao mesmo tempo uma distância abissal. Ainda não sei qual dos dois é maior, se o parentesco, se a distância. 

Um está para o outro assim como uma salsicha está para um bife. 

Minha impressão é que o texto da I. A. (Inteligência Artificial) obedece aos mesmos princípios produtivos da acumulação de carnes de toda natureza, que são moídas, homogeneizadas e embutidas em formatos-padrão, por meios puramente mecânicos. A interferência humana vai somente na linha da criação e eventual supervisão desse processo. Uma vez posto em movimento, o processo procede por si só. 

Muita gente prefere negar a existência da Inteligência Artificial. Ou melhor: negar-lhe o direito à existência, na esperança de que diante de muitas negativas as empresas que investiram centenas de bilhões de dólares nessa tecnologia fechem as portas e peçam desculpas. 

Como se diz na Paraíba: “cochila!...”. 

“Cochila!” quer dizer “perca as esperanças!”, mas duvido que alguma I. A. saiba disso. Dificilmente terá pirateado algum texto onde essa expressão apareça. 

Minha resistência pessoal à I. A. é pela sua incapacidade robótica de distinguir, entre os hectares de texto que consulta em fração de segundo, entre Baden Powell, o fundador do escotismo, e Baden Powell, o violonista dos “afro-sambas”. 

 


Amigos meus já consultaram o Chat GPT a meu respeito e obtiveram a resposta de que nasci no Rio de Janeiro em 1965, e sou autor de meia dúzia de livros cujos títulos li de cima a baixo e nunca vi mais gordos. 

Quem pode confiar numa engenhoca tão incompetente?!   

O pior é que quando dizemos “você está errado” o robozinho abre um sorriso parvo e diz: “Peço desculpas! De fato eu estava errado na minha resposta.” E fica por isso mesmo. Ainda bem que é consulta sobre literatura! Se fosse consulta médica (como tem muita gente fazendo) o paciente já estaria rumo ao crematório. 



A I. A. é um mero processo estatístico de cortar-e-colar textos alheios baseando-se em índices de probabilidade, mas é um processo meramente mecânico. Não existe uma inteligência por trás. Não existe uma mente humana (ou um conjunto delas) olhando, interpretando, avaliando, decidindo. Existe uma impressão de presença humana, muito espertamente preparada por quem manipula esses algoritmos. Mas ela é tão humana quanto aquelas gravações dos saites das empresas, aquelas aveludadas vozes femininas que nos dizem: “Por favor, permaneça na linha! Sua ligação é muito importante para nós!”. Você acha que ela está sendo sincera?... 

Ferramentas desse tipo não parecem com uma inteligência criando; são um mero desenvolvimento dos corretores ortográficos que ficam nos sugerindo a complementação de palavras. Quando numa caixa-de-diálogo eu digito “BRA...”, ele me sugere “Brasil”, “Braulio”, “Brasa”... Ele pesquisa em fração de segundo quais as palavras que mais frequentemente foram escritas por quem digitou essas três letras iniciais, e pergunta: “É isso aqui que você está querendo dizer?” 

Corretores ortográficos dessa natureza têm uma orientação estatística. Tendem a sugerir as palavras que aparecem com maior frequência. E no caso dos geradores de texto tendem a sugerir as frases que aparecem com mais frequência nas centenas de milhões de páginas que acumulam nos seus arquivos.  

(Aqui entraria uma digressão interminável sobre a legitimidade ou não do uso desses milhões de páginas sem autorização dos autores; mas esta é outra discussão. Eu, que sou autor, considero isto um roubo, aquilo que a gente chama “tomar na mão-grande”. Há milhares de ações correndo na Justiça, no mundo inteiro, mas não sou otimista quanto ao resultado. Tem muito dinheiro pesando no lado de lá da balança.) 


O uso dos ChatGPTs e similares me lembra a anedota que se conta sobre Horace Gold (1914-1996), o antigo editor da revista Galaxy, uma das principais publicações de ficção científica dos anos 1950-60. Diz-se que Gold, um reescrevedor incansável dos contos alheios que publicava, era capaz de transformar uma história medíocre numa história boa, e uma obra-prima numa história boa. Ele medianizava tudo. 

Um artigo de Kyle Chayka no The New Yorker, “A. I. Is Homogenizing Our Thoughts”, comenta assim os “Modelos de Linguagem em Larga Escala” (LLMs, Large Language Models): 

A Inteligência Artificial é uma tecnologia das frequências médias. Os Modelos de Linguagem em Larga Escala (LLMs) são treinados para detectar a ocorrência de padrões dentro de imensos volumes de dados; as respostas que encontram têm portanto uma tendência para o consenso, tanto na qualidade da escrita, que é repleta de clichês e banalidades, quanto no calibre das idéias.


 

É uma reiteração do mais frequente, do que foi utilizado mais vezes e com isto demonstra o quanto é útil.  

É útil mesmo?  Sem dúvida. Se eu quiser redigir uma “Carta de Anuência” confirmando minha participação num projeto, basta fornecer à I. A. os dados do projeto e ela redige para mim esse texto que tem forçosamente que ser reto, enxuto, padronizado, sem nuances, sem lugar para dúvidas. 

Se eu precisar de um contrato de locação de imóvel, de uma autorização para viagem de um menor de idade, de um relatório de viagem de trabalho, é só fornecer os dados em-bruto e o programa organiza tudo, bonitinho, com um texto enxuto e esclarecedor. (Ou pelo menos é esta a esperança de quem usa.) 

Por esse motivo os usos principais dos LLMs, ao que se diz, estão nas atividades ligadas a Tecnologia, Negócios, Direito, Comércio etc. – onde a produção de textos não visa a originalidade, mas a clareza / objetividade / eficiência / etc. 

Nessas áreas, pelas estatísticas que vi circulando por aí, o uso de Inteligência Artificial chega a 75%; curiosamente (ou talvez não) na área da Literatura ocorre uma das menores percentagens de uso da I. A.  Penso eu: “É claro, porque a literatura, embora tenha seus usos para clareza e objetividade, lida também, e muito, com a polissemia, a ambiguidade, a elipse, a metáfora, ou seja, usos subjetivos da linguagem”. 


A questão é que dentro da área da Literatura, mesmo sendo uma das menores percentagens, ela chega a 40%. É muito. É muita literatura mediana sendo produzida, mas... Vamos pegar o feijão-com-arroz literário de dez anos atrás, de trinta anos, de cinquenta anos atrás. Não estarão ali, com frequência aterradora, e como consequência apenas de escolhas humanas, os mesmos clichês, as mesmas expressões consagradas, as mesmas idéias cediças, os mesmos lugares-comuns ideológicos, as mesmas opiniões padronizadas que circulam numa população ansiosa por aceitação, acolhida, reconhecimento sem muita polêmica? 

A I. A. não inventou o texto-salsicha, apenas turbinou sua produção. 

O algoritmo das Inteligências Artificiais é de uma natureza específica, mas as escolhas humanas têm também o seu algoritmo, se as observarmos numa escala de milhões de exemplos. Somos mais estatísticos do que imaginamos. Nossas “opiniões pessoais” são mais coletivas do que gostaríamos de admitir. A Inteligência Artificial está surgindo, talvez, para nos dar uma sacudida. Quando percebemos o quanto ela na verdade é burra e cega, percebemos também o quanto, ao longo dos séculos, nossa mente humana coletiva também tem sido cega e burra. 


(Em breve: um artigo em defesa da I.A.)