Em geral, temos da ficção científica uma imagem
futurista, voltada para a alta tecnologia, as megalópoles, os centros
nevrálgicos do poder. Faz sentido. No século 19, as grandes obras do Romance
Científico vinham de Paris (Jules Verne) ou de Londres (H. G. Wells). No século
20, as revistas e as editoras que formataram a FC norte-americana estavam quase
todas sediadas em Nova York.
A imagem que melhor sintetiza essa vocação megalopolitana
da FC é a imagem da série “Cities in Flight”, de James Blish, em que nossas
grandes cidades, protegidas por cúpulas transparentes, erguem-se no ar como
espaçonaves colossais e saem viajando pelo universo afora.
Na direção contrária, temos uma ficção científica com os
pés plantados no interior, nas regiões rurais, nos cafundós remotos, no que em
diferentes lugares é chamado de “backlands”, “outback”, “sertão”. Onde o
confronto com o futuro (e com alienígenas, e com dobras temporais, e com
portais para outras dimensões, etc.) se dá não por meio de cientistas e heróis
urbanóides, mas fazendeiros, caipiras, gente simples do interior.
(capa: Infante do Carmo)
Talvez o melhor exemplo desta vertente seja o clássico Way Station (1963) de Clifford D. Simak.
Um fazendeiro solitário, Enoch Wallace, é contactado por alienígenas para que
sua fazenda sirva de camuflagem para uma “estação de trânsito” de viajantes que
se destinam a diferentes pontos de galáxia. A estação é instalada secretamente,
ninguém fica sabendo, e Enoch passa a conviver com os viajantes mais
inesperados e estranhos.
Esta idéia básica serviu de ponto de partida para uma
série recente da Amazon Prime, Night Sky
criada por Holden Miller. Nela, Sissy Spacek e J. K. Simmons fazem um casal de
fazendeiros idosos que descobriu, no subsolo de sua fazenda, a entrada de um
portal que proporciona a visão de outro planeta, e talvez o acesso físico a
ele. No decorrer da série, descobrimos que eles não são os únicos, e que no
mundo inteiro, geralmente em lugares remotos do interior, há portais
semelhantes.
Outra série recente é Outer
Range (Amazon Prime), em que o fazendeiro interpretado por Josh Brolin
descobre um imenso buraco em sua propriedade, aparentemente sem fundo, mas que
depois se percebe ser um portal para se viajar no tempo.
A FC tradicional é ridicularizada pelos críticos por sua
mania (principalmente no cinema) de fazer com que os extraterrestres, com todo
o planeta à sua disposição para pousar, se dirijam sempre à capital do Estados
Unidos. Vai de encontro inclusive a uma certa lógica que permeia toda a
Ufologia – a de que supostos viajantes prefeririam evitar centros povoados e
militarmente defendidos, e se sentiriam mais à vontade pousando em lugares
remotos e contatando pessoas isoladas.
Uma argumentação interessante sobre os usos literários disto
é desenvolvida pelo crítico Gary K. Wolfe (Locus
Magazine, março de 1999), ao comentar a obra de dois escritores
“interioranos” que ambientam suas histórias em sua região de origem: Robert
Reed (de Nebraska) e Bill Johnson (de South Dakota).
Wolfe faz comparações entre a paisagem de origem dos
autores (as planícies intermináveis do Meio Oeste) e os cenários surreais que
imaginam. Faz também uma curiosa análise de um dos contos mais conhecidos de
Bill Johnson, “We Wil Drink a Fish Together”, sobre uma complicada interação
envolvendo caipiras locais, alienígenas e agentes do governo. Ele comenta, a
certa altura:
Um dos motivos pelos quais os vilarejos do interior acabam servindo
como local de acolhida para visitantes extraterrestres é simplesmente o fato de
que essas cidadezinhas sempre tiveram que lidar com alienígenas.
Qualquer visitante de fora é para eles um risco bastante visível de intervenção
cultural, mas ao mesmo tempo são esses visitantes que mantêm viva a economia
local. Com exemplos como os de Robert Reed e Bill Johnson, já podemos especular
sobre o que define a Ficção Científica das Grandes Planícies: não apenas as
paisagens vastas e vazias e o céu
imenso, mas as pequenas comunidades que sobrevivem no meio de amplos espaços
hostis, desconfiadas em relação aos intrusos e orgulhosas de suas estratégias
de sobrevivência – o que não as torna muito diferentes de bases espaciais em
asteróides, estações orbitais e colônias interplanetárias. (trad. BT)
(BING – Prompt: “Desenho
hiper-realista, preto-e-branco. Uma paisagem caipira, do interior, com uma
casinha de agricultor, cerca, riacho, e parada ali perto uma pequena espaçonave
com um alienígena ao lado.”)
A FC é acusada por muita gente, inclusive por mim, de
alimentar um veio excessivamente militarista, explorando conceitos tipo “a
conquista do espaço”. Para estas obras, o Sistema Solar e a Galáxia são espaços a
serem conquistados, invadidos, dominados por bem ou por mal. Em sua faceta mais
paranóica, os invadidos somos nós, mas isto faz pouca diferença. Para esses
autores, a FC é um ramo da ficção militarista, de guerra, de conquista, mesmo
quando somos nós os conquistados.
Do lado oposto, há esse tipo de FC interiorana, o qual se
conecta com outro, que sempre me interessou: as histórias de presença
alienígena entre nós, mas uma presença discreta, despercebida, porque eles são
parecidos conosco, biologicamente adaptáveis (à nossa atmosfera, alimentação,
etc.), e podem perfeitamente passar por seres humanos como nós.
E não estão aqui para invadir ou guerrear. Vieram a
trabalho, ou a estudo, ou apenas por curiosidade; mantêm-se incógnitos porque
rapidamente descobrem que aqui na Terra o destino de um extraterrestre desmascarado
será, na melhor das hipóteses, o cárcere num laboratório subterrâneo de
pesquisas, e na pior o linchamento sumário no meio da rua.
E é nesse filão literário que as histórias de FC se
aproximam do que podemos chamar de “ficções do imigrante”, um tipo de ficção
que nos EUA tem um papel mais importante do que o que tem na literatura
brasileira. Os EUA já se orgulharam de ser um “melting pot”, um cadinho onde se
misturaram irlandeses, ingleses, alemães, holandeses, judeus, mexicanos, italianos,
o escambau. Esses migrantes todos produziram uma literatura vasta, ou foram
objeto dela.
O extraterrestre é um imigrante a mais, um tanto esquivo,
um tanto arredio, sempre observador, cumprindo sempre alguma agenda secreta
(cada história tem premissas diferentes) mas não propriamente hostil. Tudo que
ele quer é ser aceito, é que o deixem em paz.
Há um romance de Algis Budrys, Hard Landing (1993) em
que um grupo de extraterrestres se acidenta na Terra, perde a nave e não
consegue voltar. Eles se misturam à população, e cresce daí uma história de
suspense, porque cada um deles (são quatro astronautas durões, cheios de
recursos) tem um comportamento dierente, e há uma tensão maior entre eles do
que entre eles e os terrestres.
Budrys, autor de excelentes romances como Rogue Moon (1960) e Who? (1950), nasceu na Lituânia, e veio criança para os EUA; seu
pai era exilado político. Ele diz:
Uma boa parte da minha vida, quando criança, se passou em carros, ou
trens, conversando com gente estranha, falando em vários idiomas, nunca parando
quieto em lugar nenhum.
O migrante será sempre um Outro, será sempre visto, em
qualquer país, como alguém que “não é um de nós”, um estrangeiro, um estranho,
um extra-terrestre, um alienígena. Alguém que “não é daqui da nossa terra”. Essa perspectiva pode ser usada para
histórias que transcorrem no anonimato das grandes cidades, é claro; mas parece
que muitos escritores preferem se focar no choque cultural das pequenas
comunidades diante da chegada rara e repentina de um Estranho.